Entrevista: transporte público no ABC Paulista é negligenciado por gestões liberais

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O Jornal A Verdade entrevistou o professor da rede pública Dorival Nunes Bezerra que reside, trabalha e transita pela região do ABC utilizando transporte público e, por isso, acabou se tornando um especialista e crítico do assunto, estando presente em diversas situações e debates sobre a questão. 

Marcelino Moura


SANTO ANDRÉ – O transporte público é um direito de toda a população e, portanto, deve ser garantido à toda população. Isso inclui desde o planejamento, a pavimentação e a sinalização das vias urbanas, a manutenção e aprimoramento dos veículos, pontos e terminais até a reserva de direitos e boas condições de trabalho aos motoristas e demais funcionários do setor.

Dorival Nunes Bezerra é professor da rede pública de ensino, reside, trabalha e transita pela região do ABC utilizando transporte público e, por isso, acabou se tornando um especialista e crítico do assunto, estando presente em diversas situações e debates sobre a questão. O Jornal A Verdade fez algumas perguntas ao professor a fim de recolher suas impressões e trazer sua experiência no assunto para os leitores.


A Verdade: Uma vez usuário e crítico do assunto, como você avalia a situação do transporte público no ABC em relação aos passageiros e motoristas das companhias? 

Dorival: Quando você cita a região do ABC, na verdade é complexo, porque se trata de sete cidades e temos que considerar que a frota das linhas metropolitanas da região tem em média oito anos. Uma coisa é conduzir um veículo novo e outra com um que já tem certa idade. Ocorre um desgaste físico e emocional por parte [de quem exerce a função de] motorista. Fora isso, na região do ABC, não há o posto de cobrador. O motorista tem que dirigir um ônibus antigo, cobrar e dar assistência de mobilidade para pessoas com deficiência, o que acaba sendo prejudicial a ele e aos passageiros. Entretanto, a fim de diminuir a média de idade das frotas para cinco anos nas linhas municipais e nas metropolitanas da EMTU, a região comprou recentemente em torno de 116 carros e distribuiu entre as empresas, como a Viação Guaianazes, a Suzantur, a BR7 e a VIP em São Caetano, misturando veículos novos e velhos.
O atendimento aos passageiros é bastante relativo. Dependendo da empresa, até há a tentativa de atender da melhor forma, mas não excelência. Acho que o transporte continua deixando a desejar, principalmente ao pensarmos na pandemia, em que a demanda aumentou e as coisas [presenciais] voltaram, mas o transporte não voltou a ser como era antes em algumas cidades. Por exemplo, tabelas de empresas que tinham dez veículos estão operando com oito, mesmo havendo demanda para dez ou mais. Tem cidade no ABC em que o motorista faz, com o mesmo ônibus, dois itinerários. Por que não colocam outro ônibus para fazer o trajeto? Se sai de um trajeto pra fazer outro, aquele em que estava fica descoberto. Quanto tempo o passageiro fica esperando a mais por isso?

Quanto à secretaria de transporte, que deveria ser um órgão regulador, muitas vezes está atrelada a determinadas políticas dependendo do partido em evidência e da sua visão sobre prestação de serviço público. O transporte público, na verdade [e na prática], é só coletivo. Na nossa região, são apenas empresas privadas [que o efetuam]. Então depende das relações dos consórcios, da demanda das regiões e como esse sistema é montado pela secretaria. Penso que em Santo André existem possibilidades que poderiam ser avaliadas, testadas pelo menos como piloto em algumas linhas para verificar a eficiência. Quando se quer resolver um problema e há condição, a possibilidade de acontecer é grande. Mas, quais são e de quem são os interesses em fazer um transporte realmente eficiente?

A Verdade: Atualmente fica cada vez mais evidente o monopólio das empresas que tomam de conta do transporte público. Tendo isso em vista, você considera eficiente tal sistema, observando também os aumentos de tarifa em contraste com a precarização de linhas, pontos e veículos?

Dorival: Se partirmos do princípio de que a concorrência em tese fomenta e incentiva a eficiência, quando há o monopólio essa condição está descartada. Porque é alguém que vai operar praticamente um sistema a bel-prazer de acordo com aquilo que sua equipe gestora acha que é o adequado. Tudo vai depender de como essa pessoa enxerga o transporte, as tabelas, o planejamento e a operação dos veículos. O grande problema é que, muitas vezes, (…) as pessoas acabam [tendo que] se adequar ao horário do ônibus em vez do do transporte coletivo ficar a disposição da população.

Sobre o aplicativo, eu já cheguei a ouvir de uma empresa ‘mas é só o senhor acompanhar por aplicativo’. Quer dizer, agora sou obrigado a ter um aplicativo porque senão vou ficar uma hora, quarenta minutos no ponto de ônibus? Por que isso acontece? Porque não tem outra empresa dentro do mesmo setor que garanta um intervalo menor entre os veículos. Acabamos ficando à mercê da prestação de serviço desta que detém o monopólio. Isso, ao meu ver, é um atraso. O monopólio não vai garantir eficiência do trabalho na maioria das vezes e nem sempre a população vai ser bem atendida.

A Verdade: Como professor da rede pública de ensino, você utiliza e acompanha de perto a aplicação do benefício da categoria e do passe livre estudantil, além da retomada de atividades presenciais pós-pandemia em diversos setores. Como o transporte público no ABC tem atuado nesse cenário? Há a devida preocupação em atender os passageiros com eficiência, inclusive aqueles com direito a gratuidades ou descontos?

Dorival Nunes Bezerra é usuário do transporte público no ABC e participou de inúmeros debates sobre o assunto. Foto: Arquivo pessoal

Dorival: Em Santo André, cidade em que moro, há uma relatividade em relação à prestação de serviço das empresas que atuam dentro de um consórcio e as que não atuam. Por exemplo, no Terminal Oeste, no horário de pico, a quantidade de linhas varia de acordo com quem faz a prestação. Basta que você olhe a plataforma A, operada pela Viação Guaianazes, e a plataforma B, operada pela Suzantur. É muito comum, na plataforma B, você ver filas de ônibus parados esperando porque só tem três linhas. Na outra, que tem quatro linhas, a plataforma fica vazia ou com poucos ônibus parados, pois a atuação é mais eficiente, também por conta do corredor garantindo agilidade. O tempo médio de espera de um ônibus dessa é de mais ou menos cinco minutos fora do entrepico, enquanto na outra é bem maior. Deve haver preocupação não só com a qualidade do transporte, mas com a eficiência do mesmo e com a qualidade de vida dos transportados.

A gratuidade em Santo André continua um problema. O cartão vive emperrando, pois há a questão de que muitas pessoas não sabem manipular. Tem elementos que precisam ser repensados e eu não vejo nenhuma tentativa de minimizar esse trabalho por parte do poder público.

Fica claro que os capitalistas do setor do transporte na região do ABC paulista detém um monopólio de concessões do serviço e o precarizam a fim de não aplicar a verba pública no transporte e, com isso, lucrarem mais e restringirem o acesso à cidade aos ricos. Diminuem as frotas de ônibus em contrapartida à demanda do povo, suprimem cargos para demitir funcionários e aumentar as funções de outros e negligenciam a segurança e conforto das viagens ao deixar veículos antigos circulando. Se o transporte coletivo é público, essa gestão deveria estar nas mãos da população que o utiliza e esse direito garantido pela constituição federal deveria poder ser amplamente e facilmente acessado por todos.