José Levino
Historiador
A deturpação da realidade para servir a interesses de classe ou a objetivos pessoais não é coisa nova. Apenas o nome mudou, de mentira para “fake news”, uma forma de amenizar a sacanagem e de imitar a língua dos dominadores, no caso o inglês estadunidense. Os ideólogos da comunicação de Hitler já ensinavam (e praticavam) que a mentira repetida muitas vezes se torna verdade.
Lembro, ainda criança, vivendo na zona rural, anos 60, que houve uma campanha de vacinação de crianças em nosso município. Ouvi meu pai conversando com minha mãe de que não me levaria para vacinar, porque a vacina era coisa de comunista. Não perguntei nada, mas ficou em minha cabeça a sua fala e a minha curiosidade de conhecer o comunismo, aquele negócio que causava tanto medo. Diziam até que os comunistas carregavam as crianças para tirar o fígado. Hoje não é diferente.
Resolvi minha curiosidade, lendo, estudando e observando numa cidade maior onde fui estudar, pessoas que eram chamadas de comunistas. Observei que eram homens honrados e nunca tinham feito mal a crianças e nem a pessoa alguma. Ao contrário, eram muito boas, preocupadas com o próximo e, apesar disso, mal vistas, perseguidas e nem podiam dizer que eram comunistas. Li o livro de um padre que dizia que a literatura de Monteiro Lobato era “comunismo para crianças” e pensava: gosto dos livros de Lobato (hoje acusado de racista; desculpem, mas não percebi esse desvio), então comunismo é coisa boa. Estudei muito a Bíblia e a história dos primeiros cristãos (ate me preparei para ser padre), estudei também os fundamentos do marxismo e as experiências socialistas existentes no século vinte e cheguei às conclusões que seguem nesse texto.
Os cristãos e os comunistas
Marx não criou a ideia de comunismo. Na verdade, este era o modo de vida das comunidades primitivas e se tornou essência da doutrina cristã. O que Marx fez, foi mostrar que na sociedade capitalista moderna, a construção de uma sociedade comunista passa pela compreensão científica do capitalismo para poder preparar a sua superação e pela construção de um novo Estado, não bastando a criação de comunidades como fizeram os cristãos e os socialistas utópicos. E disse que “a religião é o ópio do povo”. Não há como negar que desde que se tornou religião de Estado, a serviço das classes dominantes, a mensagem de Cristo foi deturpada pela Igreja Católica e também pelas cisões protestantes. Marx falou da Igreja Católica em sua época, a religião que a Europa vivia, e não de forma abstrata. É tanto que defendeu a participação dos cristãos na Primeira Internacional, confrontando a posição contrária de Bakunin, líder anarquista, e fez referências elogiosas aos primeiros cristãos. Engels, inclusive, chama os cristãos sob a opressão do Império romano como exército na luta pela libertação da escravidão.
Os primeiros cristãos tinham tudo em comum e não havia necessitados entre eles, é o que relatam os Atos dos Apóstolos, um dos livros da Bíblia. Seguiam o que Jesus de Nazaré havia ensinado, respondendo ao pedido do jovem rico que queria ser seu apóstolo. O rapaz falou do seu bom comportamento, da sua fé, e Jesus lhe disse: só falta uma coisa: vende tudo o que tens, reparte com os pobres, depois vem e segue-me.
Os primeiros apóstolos eram mais radicais que os comunistas modernos em relação a isso. Contam os Atos que um casal – Ananias e Safira – queria viver numa comunidade cristã. Para isso, venderam sua propriedade, mas não entregaram tudo à comunidade, guardando uma parte para si. Ao descobrirem isso, os lideres da comunidade fizeram uma advertência pública tão veemente por conta da mentira que, envergonhados, ambos caíram mortos.
O Mestre desses primeiros cristãos, Jesus de Nazaré, nasceu de uma família de trabalhadores – seu pai era carpinteiro, numa cidadezinha do interior, viveu e aprendeu com o povo pobre durante trinta anos, inclusive com os essênios, que preservavam o modo de vida do comunismo primitivo, e de onde certamente tirou muitas lições que levou para a sua pregação de uma vida nova. O modo de vida dos essênios é idêntico ao das primeiras comunidades cristãs, como testemunha um historiador romano, que ficou conhecido apenas como José: “desprezam a riqueza e vivem em comum. Não há entre eles nenhum indivíduo situado acima dos demais. Uma lei obriga a quem entrar para a seita a entregar todos os bens à coletividade. Não há miséria, luxo ou desperdício entre os essênios. Elegem os administradores da riqueza comum e se dedicam exclusivamente ao bem-estar coletivo”.
Cooptação e Resistência
É certo que no ano 312 d.C, depois de séculos de perseguição com milhares de mortos, o cristianismo torna-se religião oficial do Império romano e adota a estrutura da Corte (hierarquia, culto, vestes, etc.). Nasce a Igreja Católica, integrante ou aliada das classes dominantes no fim do Império romano, por toda a Idade Média, abençoando a colonização da África e da América na era Moderna, ditando que negros e índios não têm alma e por isso podem ser escravizados.
Mas a essência da mensagem transformadora de Jesus Cristo sempre ressurgiu. Na Idade Média, os movimentos heréticos procuraram mantê-la e refundar as comunidades até serem exterminados pela Inquisição e pelas Cruzadas. Renasce durante a invasão das Américas com a criação das comunidades comunistas guaranis no Sul do Brasil e as denúncias do frei Bartolomeu de Las Casas.
Em nosso tempo, ressurge com as Comunidades Eclesiais de Base após o Concílio Vaticano II, fomentadas por bispos do povo do quilate de dom Helder Câmara, dom Pedro Casaldáliga, dom Tomás Balduíno e tantos outros.
Apesar de marginalizadas por dois papados – João Paulo II e Bento XVI – as CEBs retomam sua força a ponto de influenciar a CNBB, que lançou em 2010, juntamente com algumas igrejas cristãs, a Campanha da Fraternidade, com o tema ECONOMIA E VIDA – Vocês não podem servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro. Este tema permite a retomada da reflexão sobre a prática comunitária, coletiva, comunista dos primeiros cristãos. A essência do cristianismo permanece em pastorais como a CPT, que já deu vários mártires em apoio à luta dos camponeses pobres brasileiros pelo direito à terra para quem nela trabalha, no Conselho Indigenista Missionário, que nasceu em plena ditadura para ajudar os indígenas a resgatarem suas tradições e se organizarem, conquistando o direito a demarcação de seu território na Constituição Federal de 1988. A sua força é tão evidente, que chegou ao papado com a eleição do cardeal argentino Jorge Mário Bergoglio, simpatizante da Teologia da Libertação (papa Francisco).
No dia 11 de novembro de 2016, o papa Francisco, em entrevista ao jornal italiano La Repubblica, respondeu ao repórter que lhe perguntou o que achava de uma sociedade de inspiração marxista: “São os comunistas os que pensam como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade onde os pobres, os frágeis e os excluídos sejam os que decidam. Não os demagogos, mas o povo, os pobres, os que têm fé em Deus ou não, mas são eles a quem temos que ajudar a obter a igualdade e a liberdade”.
Em conversa com frei Betto, registrada no livro Fidel e a Religião, o então dirigente cubano afirmava que estava superado o conflito entre a Igreja Católica e o Partido Comunista Cubano e que este já retirara do seu Estatuto a proibição do ingresso de cristãos em suas fileiras. Ressaltou que atualmente os cristãos serviam de exemplo aos comunistas em sua dedicação ao trabalho, na disciplina revolucionária, na construção da nova sociedade e do homem novo de que tanto falava Che Guevara.
Sem perder a ternura
Por falar em ternura, palavra tão cara ao papa Francisco, que disse que o mundo precisa de uma Revolução da Ternura em várias ocasiões, inclusive na sua visita a Havana em 2015, não há como deixarmos de lembrar o célebre lema de Che ao discursar num congresso da Juventude Comunista de Cuba: “Hay que endurecer-se, pero sin perder la ternura jamás”!
A chamada Teologia da Prosperidade, que busca atrair fiéis com a promessa de enriquecimento, a teologia que comunga de teses favoráveis ao armamento das pessoas e estimula a violência individual, não têm nada de cristão. Não encontrarão fundamento na mensagem ou no exemplo da vida do Nazareno de quem se declaram seguidores. Mas o próprio Jesus já alertara seus discípulos para o surgimento de falsos profetas.
As correntes progressistas das igrejas cristãs, sim, buscam o exemplo do seu fundador e dos primeiros cristãos, priorizam a ação, embora não desprezem a fé, e seu objetivo final é uma sociedade sem classes, fraterna, com igualdade, justiça, partilha, em que o poder de decisão seja de todos. Isto é o buscam também os comunistas. Então, os verdadeiros marxistas e os verdadeiros cristãos têm um objetivo comum. Com respeito mútuo, podem, assim, se dar as mãos, sem nenhum medo.
Che Guevara compreendia que nenhuma força impediria a libertação da América Latina quando os comunistas e os cristãos se dessem as mãos. E seu pensamento demonstra essa proximidade. Para os cristãos, só o verdadeiro Amor é capaz de transformar a sociedade. Che afirmava que “o verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor”.
P.S Dedico este artigo ao padre Reginaldo Veloso, um servidor do povo, que dedicou sua vida à luta pela nova sociedade defendida pelos verdadeiros cristãos e pelos verdadeiros comunistas. Reginaldo Veloso Vive!