“O jongo é feito de muita trajetória” – Mestre Totonho
Antônio Soares, Bianca, Beatriz Caroline e Yago Lopes
SÃO PAULO – Na excursão didática da disciplina de História da África, estudantes da USP conheceram a Comunidade Jongueira do Tamandaré, um exemplo na luta por memória e valorização da cultura; uma de suas lideranças, o mestre Totonho, cantou um ponto sobre o sofrimento do tumbeiro: é assim, por meio de pontos criados pelos jongueiros que a história de resistência do período da escravatura continua presente nos cantos e danças nas rodas de dias de festejo.
“Tumbeiro,
Oi tumbeiro,
Por que judia de mim ai tumbeiro?
É diferença de cor oi negro, suncê vai trabalhar pra mim
Eu te chamo de irmão, e tu me trata como um cão, e me coloca na corrente, e me arrasta pelo chão
Trabaia negro
Negro não pode trabaiar senhor
Ai senhor, senhor tenha dó de mim, eu quero voltar para a Costa do Marfim”
(Mestre Totonho)
O que é o jongo?
É uma dança e música brasileira de origem africana e rural, presente na região do Vale do Paraíba paulista e fluminense. O jongo tem suas origens na África Central, região onde os cultos ligados pelo toque de tambores (ngoma) são uma instituição milenar e que possui dimensões sociais, políticas, terapêuticas e religiosas.
Chega no Brasil com os negros bantos escravizados nas lavouras de café da região sudeste. Durante as festas em homenagem aos santos, reuniam-se nos arredores ou no interior das senzalas, formavam uma roda, acendiam a fogueira, improvisavam versos e dançavam alternadamente ao som dos atabaques — candongueiro e tambú —, sempre em casais. Os versos cantados no jongo só são imediatamente claros para o mestre que as forjou, pois são feitos em sentido figurado. Essa linguagem cifrada é resultado da resistência à escravidão. Era uma forma de zombar dos senhores, comunicar rotas de fuga ou a aproximação do feitor entre diferentes escravarias, saudar a terra natal e os ancestrais e até mesmo de resolver conflitos internos por meio da habilidade com as palavras.
Jongo, de acordo com o historiador Robert Slenes, significa “palavra em formato de flecha” em diversas línguas bantas; na roda de jongo, a palavra tem poder. Nas goromentas (ou demandas) — categoria do jongo onde ocorre uma disputa de improvisação de pontos entre dois mestres — este significado é ainda mais explicativo, pois aquele que não conseguir desatar um ponto pela sua complexidade pode, de acordo com o que se crê, ficar amarrado, isto é, paralizado pela força espiritual contida naquelas palavras.
A linguagem bantu não era entendida pelos senhores, o jongo era uma forma de comunicação que os escravizados buscavam para se salvar desse sofrimento; segundo as filhas de Dona Mazé: “havia muitos pontos e formas de fuga nos quais o olhar do feitor estava presente”.
Mestre Totonho explica que a melodia adquire força através da mentalização do jongueiro, e por isso se fala “os feiticeiros da palavra”. Dando uma aula sobre essa manifestação tradicional da comunidade do Tamandaré, ele explica que o segredo do ponto são as várias metáforas utilizadas para enganar o jongueiro que precisa decifrá-lo; e para fazer um ponto, precisa-se de um conhecimento profundo do mundo à sua volta e também da vida dos antepassados: ser jongueiro não é só cantar um ponto, é estar em contato com toda essa tradição.
Realizamos uma entrevista com Mestre Totonho, jongueiro de longa data e que hoje transmite seus pontos para quem visita a comunidade, com muito orgulho dessa tradição, dando uma lição de preservação da memória e de fraternidade para com a cultura popular e de resistência tão importante que é a expressão do jongo.
O que o jongo significa pra comunidade?
O jongo significa como se diz um seguimento de tradição, é o que nós buscamos, fomos criados nisso, e é o segmento que vem de berço e a gente tenta preservar o que os nossos antepassados nos deixaram de riqueza aqui, que é a cultura da tradição do jongo.
Qual a relação da juventude com essa tradição da comunidade? Como vocês vêem o futuro do jongo aqui?
Nós trabalhamos para que as crianças, a juventude, eles entrem e ajudem a preservar e reconheçam pelo que nós estamos lutando – é como se fosse uma aula de ensinamento dos que ficaram essa riqueza que foi deixada no bairro. O futuro do jongo a gente tá na luta para que possamos alcançar nosso objetivo: fazer com que o jongo seja muito reconhecido, não só no Brasil, até no estrangeiro – a nossa luta é pra divulgar a cultura da escravatura, a cultura do jongo, essa raiz tão rica que é o jongo nosso.
No documentário Feiticeiros da Palavra, Dona Mazé diz: “Guará não reconhece isso [jongo], não. Aqui em Guará não existe jongueiro. Aqui não tem pobre e preto, aqui só tem branco e rico”. De 2001, ano de produção do documentário, para 2022, houve algum tipo de reconhecimento da prática por parte do município?
De uns tempos pra cá, o nosso jongo ele foi reconhecido – por aí você vê a vinda de vocês, tá sendo reconhecido – nós estamos recebendo a ajuda de diversos lugares e as pessoas estão chegando; antes não, quando a Dona Mazé citou isso, o jongo era realmente só aqui, agora não – vocês vieram de São Paulo, muita gente vem de Goiás, antigamente não.
O jongo é uma das grandes manifestações culturais do nosso povo, e mais especificamente do povo negro trazido pelos navios negreiros e de seus descendentes que aqui permaneceram, é brincadeira, dança, demanda, palavra. É também um exemplo das reformulações possíveis que podemos construir frente a uma realidade cruel e perversa, mais do que isso, o jongo nos ensina que é possível sim se construir uma resistência que começa como simbólica mas pode aprofundar-se em disputas diretas com os senhores, portanto, assim como os escravizados que cantavam os pontos sob o cativeiro, nós também podemos aprender coletivamente a “amarrar” aqueles que hoje nos acorrentam.