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domingo, 24 de novembro de 2024

A mulher trabalhadora na sociedade atual, por Alexandra Kollontai

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Publicamos a seguir o artigo A Mulher Trabalhadora na Sociedade Atual, de autoria de Alexandra Kollontai, uma das principais líderes da revolução socialista russa de 1917, no qual é denunciado a brutal exploração que as mulheres trabalhadoras sofrem da classe capitalista, o cuidado com as crianças e a família, além de assumirem todas as tarefas domésticas. Esta realidade impõe a todas as mulheres revolucionárias a necessidade de cotidianamente trabalhar para organizar e desenvolver lutas junto as mulheres trabalhadoras.

Executiva Nacional do Movimento de Mulheres Olga Benario


A MULHER TRABALHADORA NA SOCIEDADE ATUAL

Alexandra Kollontai 

Enquanto a mulher não tomava parte direta na produção de mercadorias, enquanto sua atividade se limitava principalmente à manufatura de “produtos de uso doméstico”, não podia haver nem sombra da questão feminina como ela é colocada hoje. Mas, a partir do momento em que a mulher pôs os pés na estrada do trabalho, em que o mercado mundial reconheceu seu trabalho, que para a sociedade ela passou a significar uma unidade de trabalho por si só, a secular ausência de direitos na sociedade, a antiga escravização no seio da família, os velhos grilhões que restringiam sua liberdade de movimento tornaram-se para ela duplamente pesados, duplamente insuportáveis…

Não foi por causa do repentino amadurecimento de um anseio por bens espirituais nem em razão de aspirações à ciência e ao saber que a questão feminina se tornou eminente; ela surgiu como consequência inevitável do choque entre às formas petrificadas da vida em sociedade e às novas relações de produção, choque esse que despertou também a pauta mais séria de nossos dias – a pauta do trabalho.

O despertar das mulheres, o amadurecimento de suas reivindicações e desejos específicos acontecem apenas quando elas se juntam ao exército da classe trabalhadora. E tal exército se expande sem parar.

O trabalho das mulheres tornou-se fator importante e imprescindível na vida doméstica: um terço dos valores que compõem o mercado mundial é produzido por mãos femininas.

O capital precisa de mão de obra barata e cada vez mais atrai para si novas forças de trabalho femininas. No entanto, enquanto a mulher burguesa passa orgulhosa e de cabeça erguida pela porta das profissões intelectuais que se abre diante dela, a mulher proletária se curva ao destino e entra na linha de produção industrial.

Em meados do século XIX, a burguesia dá seus primeiros e tímidos passos rumo à libertação financeira; ela bate insistentemente à porta de universidades, oficinas artísticas e escritórios. Enquanto isso, a sua “irmã mais nova”, a proletária, tendo experimentado todo o horror da exploração capitalista, da força de trabalho, exige do governo alguma intervenção no campo da “liberdade contratual” entre o capital e o trabalho. Não é a liberdade de trabalho que ela alcança, mas a normatização do dia de trabalho, a proibição do expediente noturno e outras medidas que determinam um limite à vida de utilização da força de trabalho feminina pelo capital. A proletária não só foi a primeira a ingressar no mundo do trabalho como continua a reinar nele em termos numéricos.

Mas no sistema de produção capitalista contemporâneo o trabalho não se configurou como fator de libertação da trabalhadora: ele despejou mais uma carga sobre seus ombros enfraquecidos, acrescentou um novo fardo às obrigações de mãe e dona de casa – o fardo do trabalho assalariado. Sob o peso extenuante dessa carga inédita, curvam-se e arruínam-se centenas de milhares de mulheres.

Não há tarefa repugnante nem seção de trabalho nociva em que não encontremos uma abundância de trabalhadoras. Quanto piores as condições, quanto mais baixos os salários, quanto mais longa a jornada, mais se empregam mulheres. Oprimida há séculos, trocada pela fome, a mulher concorda com as condições mais aviltantes, mais inferiores… Será preciso descrever o inferno no qual ela se precipita ao ingressar nas fábricas, nas atuais condições de produção? Será preciso contar como milhões de mulheres, dia após dia, são expostas à influência destrutiva de substâncias nocivas? Será preciso explicar como a jornada excessivamente longa rouba-lhes a saúde, soterra-lhes a juventude e a própria vida? O inferno das fábricas: o estrondoso retinir das máquinas, às nuvens de fumaça suspensas no ar, a atmosfera saturada de odores insuportáveis, os gritos grosseiros dos mestres, às propostas indecorosas dos administradores, às revistas de inspeção e às multas – diante desse horror, todas as desgraças do inferno dantesco parecem sedutora fantasia do poeta… E em casa? O que espera a trabalhadora após o nefasto ambiente de trabalho? Talvez, quem sabe, uma cama macia em um cômodo confortável, um jornal liberal sobre a mesa, um ingresso para a estreia de Komisarjevskaia? Nada disso: uma moradia apertada, apinhada de gente, uma atmosfera sepulcral, sem nenhum ar fresco, o choro incômodo dos filhos famintos dos vizinhos, a comida dormida e uma longa noite de pesados no estreito catre para dois. Assim descansa a proletária, assim ela recupera as forças consumidas na produção de novos bens para os senhores capitalistas.

E quando ela tem uma família para cuidar? Quando crianças pequenas esperam em casa? Sem tempo nem mesmo para aprumar a coluna depois do trabalho na indústria, a mulher é obrigada a cuidar do minucioso trabalho doméstico… Se membros cansados doem, sua cabeça pesada pende… Não há descanso para a mãe trabalhadora profissional.

Aquilo que às proletárias alcançaram em termos de elevação de sua condição econômica se deve, acima de tudo, aos esforços conjuntos da classe trabalhadora, em especial, a si próprias.

A história da luta das trabalhadoras por melhores condições de trabalho, por uma vida tolerável, é a história da luta do proletariado por sua libertação.

Em geral, o que, além do pavor diante da terrível explosão de insatisfação do proletariado, obriga donos de fábricas a aumentar o valor do salário, a reduzir a jornada diária, a introduzir condições trabalhistas mais toleráveis? O que, além do medo de “levantes dos trabalhadores”, faz com que o governo acelere a determinação de meios legais para limitar a exploração do trabalho pelo capital?

A legislação trabalhista é um dos recursos mais radicais de defesa dos interesses do proletariado. Mas será que o movimento feminista foi responsável, mesmo que indiretamente, por pelo menos uma das leis de proteção ao trabalhador? Basta lançar um rápido olhar à história da criação e do desenvolvimento da legislação trabalhista de vários países para se convencer de que esses atos reguladores despertaram pouca simpatia nas esferas feministas e que seu surgimento se deve claramente ao crescente vigor do movimento proletário.

A trabalhadora curva-se sob o peso da família, esgota-se sob a tripla jornada: trabalhadora profissional, dona de casa e mãe. E o que lhe propõem as feministas? Que saída, que alívio buscam para ela? “Jogue fora antigos preceitos morais”, sugerem elas à irmã mais nova, “torne-se uma amante livre e uma mãe livre. Adote nosso bordão – amor livre, liberdade de amar e direito à maternidade”.

A questão matrimonial e familiar, não importa se sacramentada pela igreja, oficializada pelo juiz ou construída com base em um acordo informal, só deixaria de ser crucial para a maioria das mulheres se, e apenas se, a sociedade retirasse de suas costas todas às minuciosas tarefas domésticas (inevitáveis, em virtude da existência de lares individualizados e desarticulados), se a sociedade tomasse para si às preocupações com a nova geração, se protegesse a maternidade e devolvesse a mãe à criança em seus primeiros meses da vida.

“O casamento é a fase visível da medalha da questão dos sexos, a outra face é a prostituição”, diz Bebel. Essa é o apêndice inevitável da família burguesa contemporânea, é fruta obrigatório do sistema de exploração na qual milhões de mulheres são forçadas a viver de seus próprios ganhos – de valor suficiente para que não morram de fome, mas insuficiente para uma vida digna.

Será preciso descrever todos os horrores de ser obrigada a vender o próprio corpo? Será preciso demostrar de novo que os princípios da prostituição estão profundamente enraizados na economia, que essa horrível chaga da sociedade de classes contemporânea se esconde inteiramente na crescente insuficiência de recursos das forças de trabalho femininas?

Mulheres trabalhadoras na luta por direitos, 08 de março (SP). Foto: Layane Rodrigues (JAV/SP)

“Ao destruir os grilhões do capitalismo, a trabalhadora abre o caminho para a nova mulher”

O atual sistema capitalista explorador empurra a mãe, em nome da criança, e a criança, em nome da mãe, ao caminho do “ofício vergonhoso”. Nem mesmo a tenra idade infantil consegue preservar os filhos da classe trabalhadora das pretensões predadoras da indiferente depravação burguesa.

Nessa questão, assim como todos os aspectos tenebrosos de sua vida, resta à mulher esperar pela libertação apenas a partir do crescente poder da classe trabalhadora. Somente o proletariado tem forças para pôr fim a essa hidra de cem cabeças dos nossos dias… Lutar contra a prostituição significa não apenas destruir a sua regularização atual, mas combater às bases do sistema capitalista, fazer todo o possível para extinguir a divisão de classes na sociedade, abrir caminho rumo a novas formas de convivência entre os seres humanos.

No entanto, a proletária sofre não apenas como aquela que vende a sua força de trabalho, dirão às burguesas defensoras da igualdade de direitos da mulher, mas sofre também como mãe e esposa: subjugaram-na a falta de direitos na sociedade e a submissão ao homem. E, nesse caso, é impossível que os interesses de todas as mulheres não coincidam. “Igualdade de direitos das mulheres em relação aos homens da sua própria classe” – o que a divisa favorita das feministas pode dar à mulher, a não ser igualdade com os seus camaradas proletários, também desprovidos de direitos? A quem o diploma de médico, o uniforme de funcionário público ou até uma pasta ministerial serão dados, se não às próprias burguesas, às quais esses sedutores “bens” são acessíveis?

Plenos direitos políticos? Sim, a trabalhadora precisa ainda mais do que a burguesa. Direitos políticos para a trabalhadora: essa é uma arma poderosa na luta pela libertação. Mas será que essa reforma, ainda que tão radical, será que esse ponto culminante dos ardentes desejos feministas libertará a proletária do abismo de sofrimentos e males que a perseguem tanto como mulher como vendedora da própria força de trabalho? Não! Enquanto a mulher for obrigada a vender sua força de trabalho e a suportar o jugo do capitalismo, enquanto os meios atuais de exploração destinados à produção de novos valores seguirem vivos, enquanto houver tudo isso, a mulher que escolhe o próprio marido apenas pelas inclinações de seu coração ou a mãe que olha sem medo para o futuro de seus filhos não serão livres nem independentes… Obviamente, isso não significa que os partidários do socialismo científico “adiem” a solução do tema da igualdade de direitos das mulheres até o surgimento do socialismo,

Profundamente convencido de que a completa emancipação feminina será possível apenas em uma sociedade reformada de modo radical, apesar disso, esse partido exige a satisfação das necessidades imediatas das mulheres:

O mundo feminino, assim como o masculino, está dividido em dois campos: um deles, por seus objetivos, aspirações e interesses, liga-se às classes burguesas; o outro estreitamente relacionado ao proletariado, cujos esforços de libertação abrangem igualmente a solução da questão da mulher em toda a sua completude. E os objetivos, interesses e formas de luta são diferentes para as duas categorias desses grupos que lutam pela libertação da mulher.

Ao destruir os grilhões do capitalismo, a trabalhadora abre o caminho para a nova mulher, para a cidadã, mãe e amante livre.

Que às burguesas não convoquem para às suas fileiras a igualdade de direitos das trabalhadoras, que não contem com às mãos destas a fim de conquistar para si os bens sociais que hoje são patrimônio exclusivo de alguns homens burgueses. Ao se apartar de suas companheiras, ao renunciar às suas tarefas de classe, a proletária deixaria de ser uma força social, que agora é considerada até mesmo pela “política real”… Somente permanecendo nas fileiras da própria classe, somente travando combate pelos ideais e interesses de toda a classe trabalhadora, a mulher trabalhadora poderá defender os seus direitos e interesses femininos.

E então, simultaneamente a toda a classe trabalhadora, em uma sociedade reformada com base na vitória: a libertação, como vendedora da própria força de trabalho, das correntes e da escravidão do capitalismo e o seu fortalecimento geral como pessoa e ser humano…

¹ Referência a Vera Fiódorovna Komissarjévskaia (1864-1910), famosa atriz russa (N.T.)

²August Bebel (1840-1913), eminente marxista alemão, autor do livro Die Frau und der Sozialiismus [A mulher e o socialismo]. (N.T.)

Fonte: A mulher trabalhadora na sociedade contemporânea, trabalhos do I Congresso de Mulheres de Toda a Rússia, São Petersburgo, 10-16 dez. 1908, trechos.

Publicado na edição nº 273 do Jornal A Verdade.

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