O retrato daqueles que não são vistos

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Para as artes é um conflito, diário, de ser sufocada pelo cinza das ruas e de não se deixar calar pela poluição, pelos chamados consumistas de uma sociedade que apenas identifica aquilo que a afeta, fruto do mais simples e suave sujeito singular

Felipe Assis | São Paulo


CULTURA – Nas ruas de São Paulo existem muitos comerciantes que utilizam a rua como local para expor seus produtos. Alguns revendem objetos industrializados, outros vendem pequenas porções de alimentos para aqueles que correm com os olhos para baixo pelas ruas de São Paulo. Nem um par de olhos se encontram nessa maratona pela produtividade, a cidade torna-se apenas um trajeto sem vida, cinza, individual.

Numa das mais movimentadas avenidas da Zona Oeste, a Vital Brasil, próxima a USP e ao Instituto Butantan, vive o mesmo cenário de qualquer outra rua paulista. A cada três minutos, os ouvidos param, a respiração pesa, os olhos se enchem de lágrimas, carregadas pelas buzinas, gritarias, e pelas cargas extensas de poluição soltadas pelos carros e ônibus. Em um desses ônibus, vindo da região da Vila Dalva, desce um senhor chamado Marcos Roberto, a alguns metros da entrada do metrô Butantã, carregando consigo uma mala.

Após descer do ônibus, carregado de outros trabalhadores, sua mala se abre, como uma fissura do cotidiano, trazendo um mundo que existe, mas que muitos se recusam a olhar, ele abre a mala e dela sai a arte.

Marcos se apoia na parede de um prédio fechado, na frente de um ponto de ônibus, em meio a Vital Brasil, fruto de uma acumulação e da especulação imobiliária fatal para a sociedade, Marcos espera, de forma diferente ao predio. Ao passar alguém na frente da sua vitrine, ele a comprimenta de uma forma tão simpática que o sorriso se enche, os ouvidos se abrem e a visão se deslumbra com os seus quadros feitos com material reciclável.

Sua arte é diferente de cada uma, possuindo tamanhos diferentes, formatos e materiais, mas sempre tendo algo que conecta toda a sua produção é seu tema: A cultura negra.

Todos eles representam, de alguma forma, a cultura negra, sendo ela brasileira ou não, sua história está lá. Desde de princesas do reino do congo, representadas na forma de Kimpa Vita, a lideres modernos que propuseram diferentes formas de se revoltar dos inúmeros preconceitos que o povo negro sofre, sobe o olhar de Malcom X. Todas essas imagens, olhando sempre para frente, vendo o que a sociedade se tornou, em seu mais profundo cotidiano, em apenas a efemeridade do dia.

Para as artes é um conflito, diário, de ser sufocada pelo cinza das ruas e de não se deixar calar pela poluição, pelos chamados consumistas de uma sociedade que apenas identifica aquilo que a afeta, fruto do mais simples e suave sujeito singular.

Desse cuidado e apreço pelo outro, Marcos enxerga aquilo que não se vê, a delicadeza das formas, o cuidado com a história, e o apreço por aqueles que sofreram tanto e não possuem a visibilidade que merecem. É a mais bela e singela carta de amor e respeito à luta que as periferias sofrem todo dia, sem momento de pausa, como o vai e vem dos ônibus durante um horário de pico.