Nara Leão foi uma das maiores cantoras e compositoras brasileiras. Rompeu com o movimento bossa nova e dedicou-se a uma arte comprometida com o povo, através do que ficou conhecido como canção de protesto, foi perseguida pelos militares.
Igor Barradas | Redação RJ
CULTURA – Em 19 de janeiro de 1942 nascia Nara Lofego Leão, cantora capixaba que em suas músicas defendeu uma sociedade com justiça social e sem exploração em meio a Ditadura Militar Fascista (1964-1985).
Ao longo de sua carreira, ela lançou mais de 20 discos e interpretou algumas das maiores canções da música brasileira. A história da vida de Nara Leão retrata um pessoa que se engajou com as causas sociais, rompeu com um padrão capitalista de produção de música e fez várias críticas ao exército burguês, chegando a ser perseguida pelos militares.
Origens de Nara
Nara nasceu no Espírito Santo, mas desembarcou no Rio de Janeiro com os pais e a irmã Danuza quando tinha 1 ano de idade. Filha de um advogado, cresceu em um amplo apartamento na Avenida Atlântica frequentado por nomes como João Gilberto, Roberto Menescal e João Donato, que escreveram na sala com vista para o mar canções que pavimentaram a Bossa Nova, como O Barquinho.
Esses artistas, começaram um movimento musical, segundo o escritor Ruy Castro: “era uma simplificação extrema da batida da escola de samba”, como se dela tivessem sido retirados todos os instrumentos e conservado apenas o tamborim.
Rompimento com a bossa nova
Nara, ao definir a bossa nova, dizia agora que “era uma música alienada”. A bossa nova tinha músicas que falavam sobre a vida da pequena-burguesia. Sempre citavam as vidas nas praias, contemplando o mar e a avistar barquinhos e não tinha muito mais para onde se expandir. Nunca citavam os problemas reais que o país passava na época.
Em uma passagem do início da carreira, Nara diz ter descoberto a existência da fome e da pobreza, e se revoltou em continuar entoando canções descoladas da realidade do povo brasileiro e das questões sociais.
Nara no CPC da UNE
Ainda neste período, também começou a gravar seu primeiro disco, Nara, lançado em 1964. Àquela altura, seu nome era associado a favor dos movimentos de esquerda. Em especial, seu nome era ligado ao de militantes comunistas da época, chegando a convidar alguns à sua residência para falar sobre as ideias comunistas.
Nara ligou-se ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), fundado em 1961 por estudantes artistas e intelectuais progressistas, que tinham o objetivo de difundir e criar uma arte que fosse popular e política ao mesmo tempo e que fosse feita do povo e para o povo, que rompesse com a arte mercantilizada das classes dominantes ao tratar de assuntos reais do cotidiano.
Além das apresentações ao vivo, Nara ainda passou a participar de programas de TV em diferentes estados. Em agosto, já contratada pela recém-inaugurada gravadora Elenco, começou a gravar seu primeiro disco, no estúdio Rio-Som, no centro do Rio de Janeiro. No repertório, faixas assinadas por Cartola, Elton Medeiros, Zé Keti, Moacyr Santos, Baden Powell, Edu Lobo, Carlos Lyra, Vinícius de Moraes, Gianfrancesco Guarnieri e Ruy Guerra. Entre os clássicos, “Diz Que Fui Por Aí”, “Luz Negra” e “O Sol Nascerá”.
O Grupo “Opinião”
O cenário de repressão instaurado nas ruas após o golpe militar de março de 1964 inspirou a montagem de outro espetáculo do CPC (àquela altura já posto na ilegalidade pelo novo regime), chamado Opinião. Com a direção de Augusto Boal, do Teatro de Arena, textos de Oduvaldo Viana Filho e produção musical de Lyra, o musical trazia como protagonistas Nara Leão, Zé Keti e João do Vale.
O grupo trazia as representações dos próprios artistas para o palco, misturando a jovem branca pequeno-burguesa, o sambista negro e o nordestino, também negro.
Logo que estreou, em um pequeno teatro dentro de um shopping center em Copacabana, em 11 de dezembro de 1964, Opinião transformou-se em febre entre os jovens que queriam protestar publicamente contra os primeiros meses de ditadura.
Questões como desigualdades sociais, favelas e reforma agrária tornaram o evento um símbolo de resistência política a favor da democracia e da cultura brasileira.
Duas canções na voz de Nara tornaram-se ícones daquilo que se convencionou a despois deste espetáculo, chamar de música de protesto brasileira: Opinião” (“Podem me prender/ Podem me bater/ Podem até deixar-me sem comer/ Mas eu não mudo de opinião”) e “Carcará” (“Carcará não vai morrer de fome/ Carcará mais coragem do que homem/ Carcará pega, mata e come”).
A primeira não só abre o repertório do segundo álbum de Nara, lançado ainda no final de 1964, como também dá título ao trabalho, que também traz do mesmo espetáculo “Sina de Caboclo”.
O estouro de Opinião foi a primeira demonstração pública de Nara Leão a respeito de seu descontentamento com tudo aquilo que se torna massivo.
“Esse exército não serve pra nada!”
No dia 22 de maio de 1966, quando a ditadura militar começava a intensificar sua repressão contra o povo, com torturas e censura de ideias, o jornal Diário de Notícias publicava uma entrevista com Nara. Nela, a cantora soltou o verbo contra o regime. Disse que os generais entendiam de canhão e metralhadora mas não de política.
Nara Leão defendia a extinção do exército burguês. Dizia que a instituição não servia para nada e “estava ficando cada vez mais obsoleta” e “caindo aos pedaços”.
Nara também disse que o Brasil, com suas profundas desigualdades, deveria investir na construção de hospitais e escolas, de preferência dentro das fábricas, para que, assim, o operariado tivesse uma vida decente.
No fim da entrevista, Nara ainda criticou a cassação dos deputados contrários à ditadura e disse que os militares fascistas deveriam ser impedidos de exercer suas funções e proclamou a urgência da nacionalização de toda e qualquer empresa no Brasil.
As manchetes de jornais alardeavam os rugidos de Nara Leão: “Nara é de opinião: esse Exército não vale nada”; “Nara pode ser presa mas não muda de opinião”; “Nara: sou contra militar no poder”; “Entrevista abalou os alicerces do Exército Nacional”; “Considero os exércitos, no plural, desnecessários e prepotentes”; “Meu violão é a única arma que tenho; meu campo de guerra é o palco.”
Mobilização contra prisão política de Nara Leão
As declarações de Nara repercutiram como uma bomba na sociedade carioca e dentro do governo. Jairo Leão previu que os militares fizessem alguma retaliação de forma arbitrária, enquadrando a filha na Lei de Segurança Nacional e abrindo um processo para prendê-la imediatamente.
Nos bastidores, integrantes da linha dura do exército já pressionavam por alguma punição e ações que intimidassem Nara e seus amigos a não mais se sentir à vontade ao abrir a boca. E também que ela passasse a ser tão vigiada de perto que acabasse pedindo asilo político fora do país.
A classe artística, por sua vez, mobilizou-se para fazer um abaixo-assinado encaminhado ao marechal Castello Branco, o primeiro militar presidente brasileiro após o golpe de 1964, pedindo o arquivamento do processo.
Nara foi um exemplo de artista comprometida com a justiça social. Seu exemplo inspira. Sob ameaça de ser presa, Nara Leão foi defendida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, através de um poema publicado na imprensa e destinado ao Marechal Castelo Branco, disse que “não adiantava prisão para a voz que, pelos ares, espalha sua canção.”:
APELO (excerto)
“Meu honrado marechal
dirigente da nação,
venho fazer-lhe um apelo:
não prenda Nara Leão (…)
A menina disse coisas
de causar estremeção?
Pois a voz de uma garota
abala a Revolução?
Narinha quis separar
o civil do capitão?
Em nossa ordem social
lançar desagregação?
Será que ela tem na fala,
mais do que charme, canhão?
Ou pensam que, pelo nome,
em vez de Nara, é leão? (…)
Que disse a mocinha, enfim,
De inspirado pelo Cão?
Que é pela paz e amor
e contra a destruição?
Deu seu palpite em política,
favorável à eleição
de um bom paisano – isso é crime,
acaso, de alta traição?
E depois, se não há preso
político, na ocasião,
por que fazer da menina
uma única exceção? (…)
Nara é pássaro, sabia?
E nem adianta prisão
para a voz que, pelos ares,
espalha sua canção.
Meu ilustre marechal
dirigente da nação,
não deixe, nem de brinquedo,
que prendam Nara Leão.”