Localizado no Município de Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador (BA), o Quilombo Quingoma é um dos mais antigos do Brasil e tem resistido, nas últimas décadas, às investidas da especulação imobiliária, da destruição ambiental e da omissão do Estado. A Verdade entrevistou Rejane Rodrigues, uma de suas lideranças.
Vitor Hugo Moreau | Lauro de Freitas (BA)
Localizado no Município de Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador (BA), o Quilombo Quingoma tem resistido, nas últimas décadas, às investidas da especulação imobiliária, da destruição ambiental e da omissão do Estado. Reconhecido como território quilombola pela Fundação Palmares em 2013, o Quingoma é considerado o mais antigo quilombo do Brasil, com registros de 1569. No entanto, o processo de titulação das terras segue travado no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), há mais de dez anos.
E os conflitos na região se intensificaram. O território é alvo de um acelerado processo de urbanização. Obras realizadas sem consulta à população quilombola representam ameaças diretas ao meio ambiente e à comunidade.
No centro dessa luta está Rejane Rodrigues, líder quilombola e defensora dos direitos humanos e ambientais. Vivendo atualmente sob medida protetiva, ela enfrenta uma nova onda de intimidações. Sua resistência, no entanto, segue inabalável. A Verdade entrevistou Rejane para conhecer melhor suas motivações, suas dores e suas esperanças em relação à luta do Quilombo Quingoma.
A Verdade – O Quingoma é considerado o quilombo mais antigo do Brasil. Como você descreveria a importância desse território para a identidade e resistência do povo quilombola?
Rejane Rodrigues – A gente tem que levar em consideração quem construiu esse país. Nosso povo passa por um processo de invisibilização. A nossa gente, escravizada, contribuiu com tudo isso e, no entanto, hoje somos penalizados. Se engana quem acha que ser quilombola é só uma questão dos povos quilombolas, porque, na realidade, é de toda a humanidade.
A gente se considera o primeiro quilombo do Brasil e isso é sustentado por uma oralidade, que é assim que a gente vem construindo essa história. A importância do quilombo para o Brasil e para o mundo está na resistência de nós, enquanto quilombolas, permanecermos vivos na proteção do meio ambiente e da verdadeira história do Brasil, mesmo à custa de nossas vidas.
O processo de titulação das terras está travado no Incra há mais de dez anos. A que você atribui essa demora?
No mesmo ano em que tivemos nosso reconhecimento pela Fundação Palmares, começamos o processo no Incra para titulação do território. Quando a Bahia Norte invadiu o território para construir a Via Metropolitana, a comunidade se organizou e conseguiu uma audiência com o Ministério Público, onde soubemos que o Projeto do Governo Jacques Wagner, de 2009, já previa a rodovia cortando o território. Depois, veio a construção do Hospital Metropolitano – ao qual nossa gente não tem acesso por não possuir assistência primária – e agora é a construção do Condomínio Joanes Parque, que nos afeta e agrava as ameaças de violência no território.
Nós acreditamos que a morosidade do Incra e a omissão do Governo do Estado se devem ao fato da questão não ser apenas técnica, mas principalmente política. Nós sabemos que o Quilombo Quingoma está bem localizado e a cidade de Lauro de Freitas não tem mais pra onde crescer, a não ser invadindo o Quingoma.
Como o avanço da especulação imobiliária e das grandes obras de infraestrutura afetam a vida dos moradores e o meio ambiente local?
Afetam muito as famílias. Há casos de depressão, pressão alta, diabetes, tudo recai no emocional da comunidade pela incerteza de quem perdeu rios, matas, bichos, território… Os anciões da comunidade vivem assustados. A gente vê também as famílias cada vez mais adoecidas, inclusive as crianças. A especulação imobiliária gera uma mutilação da comunidade, tanto dos corpos, quanto do nosso território e da natureza.
Mais recentemente, a Conder1 entregou intimações para as famílias com avisos de desapropriação das casas. Essas iniciativas têm a intenção de fazer com a comunidade não se envolva na luta pelo território, porque, ao verem suas casas e as principais lideranças ameaçadas e atacadas, muitos ficam com medo.
Como é viver sob medida protetiva devido às constantes ameaças?
Eu me sinto em ameaça mesmo dentro do programa de proteção por eles não entenderem e respeitarem que somos nós que sabemos o que acontece a nossa volta. Quando a gente leva as questões ao programa, eles não recebem de maneira respeitosa. Desde o início de fevereiro, estou fora do território porque o programa de proteção não caracteriza como ameaça o que eu estava sofrendo, não garantindo meu direito de viver com a minha família: minha filha e minha mãe estão precisando de acompanhamento psicológico. A gente teve que construir uma rede própria de apoio que nos acolhesse, porque o programa, que deveria nos defender, pertence ao mesmo Estado que cruza os braços ou até nos ataca. Nós, enquanto lideranças, nos sentimos largadas. Só não nos sentimos totalmente sós por conta dos parceiros que reconhecem a nossa luta e trilham as estratégias para tentar nos proteger.
A impressão que me dá é que, pro Estado fazer alguma coisa efetivamente, é preciso a gente tombar, como Mãe Bernadete2. Esse é o parâmetro pra eles: que as lideranças sejam mortas sem que ninguém descubra os mandantes. Chega de matar a gente pra gente ter nosso território, chega de matar a gente pra gente ter políticas públicas, chega de matar a gente pra gente ter a nossa liberdade!
O Estado e as grandes empresas justificam os empreendimentos como progresso. O que a comunidade do Quingoma propõe como alternativa para um desenvolvimento que respeite sua cultura e seu direito à terra?
A gente tem que entender que o que é progresso pra uns não é pra outros. O que significa progresso pra esse sistema capitalista é uma coisa, e o que significa progresso pra gente é outra – respeitando as nossas raízes, nosso ser, porque a gente não vem desse fast food, a gente não vem desse capitalismo. A gente vem das coisas simples, da natureza, a gente perpetua isso. As políticas públicas têm que vir para o território de forma respeitosa. Eu quero propor que nós pensemos conjuntamente, deem ouvidos às comunidades quilombolas, pra que a gente consiga dizer como pretende organizar nosso território.
O território pra gente, povo quilombola, não é só a terra. A gente tem uma relação peculiar e muito genuína com esse território. É por isso que a gente defende esse território com nossas próprias vidas. Então, eu acho que um progresso que nos respeite precisa ser pensado com os quilombolas, com as comunidades tradicionais. A sociedade hoje clama por um verde, por uma mata, por uma água, pela terra. No entanto, vêm destruindo isso. Nós não somos contra o progresso, mas o progresso tem que ser aplicado às nossas necessidades, não ao lucro de uma meia dúzia de empresários e políticos.
Qual mensagem você gostaria de deixar para aqueles que ainda não conhecem a realidade dos quilombos no Brasil e a importância da sua resistência?
A gente precisa entender que essa luta não é só nossa, é de todos. Por mais que seja o meu corpo que esteja exposto – porque a guerra tem que ter um rosto e, dessa vez é o meu, das lideranças que estão ao meu lado, é o de Mãe Bernadete na foto –, é preciso entender que, sozinhos, não conseguimos vencer. É preciso que a população apoie nossa resistência pra que a gente possa resistir. Não no invisível, no anonimato, mas a público. Muitas vezes, nos veem como guerreiras, como lutadoras e romantizam isso. Não romantizem a violência pelas quais passamos! Não romantizem a perseguição e as ameaças de morte pra depois dizerem: foi guerreira. Cheguem junto com a gente! Mesmo essa história sendo minha, essa história é mais ainda do povo brasileiro. A história do Quilombo Quingoma, que permanece desde 1569 resistindo, preservando e garantindo um futuro pra uma sociedade mais justa, coerente e saudável. É por isso que nós resistimos e vamos continuar gritando.
NOTAS:
- Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, empresa vinculada à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano, responsável pela implementação de políticas públicas do Governo do Estado.
2. Mãe Bernadete foi assassinada em agosto de 2023, no Quilombo Pitanga dos Palmares, situado no Município de Simões Filho, também na Região Metropolitana de Salvador. Ver A Verdade n° 278.
Matéria publicada na edição impressa nº 312 do jornal A Verdade