A ficção científica de Bong Joon Ho, lançada em março deste ano, faz uma sátira bem humorada ao atual cenário político mundial, ironizando sob temas como a desumanização do trabalhador, imperialismo e autoritarismo, além de aprofundar a discussão sobre a questão do trabalho e da sociedade capitalista em seu estágio atual, o imperialismo.
Gabriela Calixto | Recife
CULTURA- O filme conta a história de Mickey Barnes, um homem que se afundou em muitas dívidas, e é forçando a embarcar numa missão de colonização espacial liderada por um político fracassado. Desesperado para fugir das dívidas, Mickey acaba se voluntariando para ser uma espécie de tripulante “descartável”, ou seja, durante a tal expedição exploratória para esse planeta desconhecido, ele será usado das mais diversas formas, passará por todo dia de experiência científica e testes, sendo exposto à morte de diversas maneiras diferentes — e morrendo em todas elas, tendo seu corpo sempre refeito por uma espécie de impressora tecnológica, o fazendo reiniciar o ciclo de morte praticamente todos os dias.
A questão sai do controle quando esse sistema erra, imprimindo Mickey mais de uma vez, fazendo com que sua cópia o desafie para manter sua vida. Bong Joon Ho, diretor roteirista sul-coreano, é conhecido por trazer reflexões e críticas sempre muito inteligentes sobre as particularidades e atuais contradições do sistema capitalista, entre eles Expresso do Amanhã ( Snowpiercer, 2013, inspirada numa HQ francesa), Okja (2017) e Parasita (Gisaengchung, 2019)) ganhador de 4 Oscars em 2020, incluindo o de melhor filme, além de ser o primeiro filme não-americano a ganhar o Oscar de melhor filme, o que projetou ainda mais o nome do diretor na indústria internacional e o permitiu escrever, produzir e dirigir Mickley 17, que é baseado em um romance de Edward Ashton, de 2022. Diferente de seu filme anterior, esse não conseguiu repetir o fenômeno cultural, sobretudo pelas críticas escancaradas à sociedade americana, tendo um grande nome de Hollywood (Robert Pattinsom) na trama.
A precarização do trabalhador nos dias atuais
O filme de Bong Joon Ho não é apenas uma alegoria ou um retrato caricato de uma realidade inexistente. No mundo real, vemos todos os dias a classe trabalhadora sendo cada vez mais precarizada, perdendo direitos e sendo exposta a morte, assim como é retratado no filme. Com o aumento da uberização do trabalho, nossa classe muitas vezes precisa trabalhar até quatorze horas por dia para conseguir obter o mínimo para sobreviver. Não longe disso, o filme traz uma reflexão que também pode ser associada à luta contra a escala 6×1. Pois é de conhecimento geral que, esse regime de escravidão moderna está intimamente ligada à saúde física e mental da classe trabalhadora, que os impede de ter uma vida com qualidade, cuidar da própria saúde, pensar por si mesmo ou passar um tempo mínimo de lazer com seus familiares e amigos.
Além desses temas, o filme também levanta um questionamento interessante: se você é substituível, qual o valor da sua vida? O que de verdade vai libertar a classe mais pobre do fardo da 6×1, dos perigos da uberização do trabalho, do trabalho abusivo e mal remunerado e da desumanização do indivíduo por meio de um processo de mecanização que tira de nós até a nossa sensibilidade? Nas entrelinhas poderíamos dizer que uma revolução. E é exatamente isso que ocorre com esse trabalhador descartável, que tem que morrer cada dia um pouco para um punhado de rico lucrar. E é difícil não assistir ao filme e lincar com nossa realidade, pois, para meia dúzia de empresários, nós somos “descartáveis”. Se morrermos hoje, amanhã terá outro trabalhador para ocupar nossa função.
O imperialismo retratado no filme
No filme, a figura que representa o imperialismo é o personagem Kenneth Marshall, interpretado por Mark Ruffalo. Aqui temos a representação de todo autoritarismo de hoje e de ontem: ele, um político corrupto e empresário sujo, acredita que seu projeto de ocupação do espaço seja justificável e legítima, e que a colonização deve acontecer, não se importando em quantas vidas serão tiradas, desde que ele mesmo não seja colocando em risco. Justificando suas medidas individualistas e desprovidas de razão e até usando o discurso de defesa do “bem coletivo” ele nos aproxima dos atuais “inovadores”, “empreendedores” e milionários de hoje, que enriqueceram com o sangue, suor e lágrimas de milhões de trabalhadoras e trabalhadores.
O caminho é a revolução
Esses problemas expostos no filme vão além do roteiro, eles são dilemas reais, que afetam a vida e o cotidiano da classe mais pobre. No longa, o diretor não esconde a necessidade de se rebelar, de conhecer a sua realidade e fazer de tudo para transformá-la. Em uma das cenas mais interessantes, o personagem, que não se chama Mickey à toa, passa a reivindicar um nome pra si, deixando de ser objetificado. Isso acontece exatamente após ele notar que a realidade da nova natureza em que ele está inserido poder ser transformado por ele.
É assim também em nossa sociedade. Para resolvermos nossas dificuldades e acabar com a exploração, a única saída é se organizar. Quantos milhares de operários precisarão ainda serem mortos para alimentar um único bilionário, que nada produz a não ser mais exploração, banalização da vida e a violência? Mais: com o advento da internet, ficou mais escancarado o quanto é odioso esse mecanismo de alienação. A gente trabalha, não consegue ter direito nem ao descanso ou se quer tem a possibilidade de usufruir daquilo que produz. É como o personagem Mickey, que tem que submeter a diversas situações humilhantes e perigosas, até decidir se revoltar e tomar as rédeas de seu futuro.