Considerado um dos maiores poetas do rock brasileiro, Renato Manfredini Júnior, ou Renato Russo, nasceu em 27 de março de 1960, no Rio de Janeiro, onde veio a falecer no dia 11 de outubro de 1996, com apenas 36 anos de idade. Jornalista e professor de inglês, formou a banda Legião Urbana no início da década de 1980, em Brasília. Mais de 26 anos após o lançamento do primeiro disco, a banda ainda vende 250 mil cópias por ano, um recorde do gênero no País.
Renato Russo não cantou apenas os anseios, os medos e os conflitos da juventude, mas abordou em suas letras temas que vão desde a exploração do trabalhador, o desemprego, o machismo, a ditadura militar, a tortura, o racismo, a retirada dos direitos dos aposentados, passando por questões ambientais, até o cinema, o teatro, a pintura e a literatura.
Segundo Arthur Dapieve, biógrafo do cantor, uma das principais características das letras de Renato Russo, e que explica em parte o enorme sucesso da banda mais de 15 após seu término, é que Renato escrevia sobre temas atuais ao mesmo tempo em que retirava toda marca de temporalidade de suas letras, mantendo assim sua perenidade. Letras como Que país é esse continuam tão atuais agora quanto na época em que foram lançadas. Um exemplo mais sutil e que também carrega essa característica é a canção Metal contra as nuvens, do álbum V, a qual faz referências a algumas medidas antipopulares do governo Collor.
Se existe uma identificação tão grande da juventude brasileira com as músicas de Renato Russo é porque este público se vê espelhado, representado em suas letras. De fato, os jovens que povoam as letras de Renato são, em sua maioria, estudantes, trabalhadores, pais, precarizados e desempregados. São trabalhadores, por exemplo, os jovens namorados de O descobrimento do Brasil: “Ela me disse que trabalha no correio/ E que namora um menino eletricista”. São estudantes os jovens de Vamos fazer um filme: “A minha escola não tem personagem / A minha escola tem gente de verdade / … / O sistema é maus / Mas minha turma é legal”. E são desempregados numa época de crise os jovens de Teatro dos vampiros: “Vamos sair, mas não temos mais dinheiro/ Os meus amigos todos estão procurando emprego”.
“Eu quero trabalho honesto em vez de escravidão”
O tema do trabalho e de sua exploração aparece em canções tanto do início quanto do final da carreira de Renato, mostrando ocupar um lugar permanente nas preocupações do artista. A música Fábrica, do disco Dois (1986), por exemplo, inicia-se cantada na primeira pessoa do plural, como um hino: “Nosso dia vai chegar,/ Teremos nossa vez”. E compara o trabalho dos operários nas fábricas à escravidão: “Quero trabalhar em paz. / Não é muito o que lhe peço- / Eu quero trabalho honesto / Em vez de escravidão”. (1)
Segundo Angélica Castilho e Erica Schlude, autoras do livro Depois do fim – vida, amor e morte nas canções da Legião Urbana, a letra de Fábrica apresenta um questionamento do poder capitalista, assumindo uma postura marxista. Para as autoras, essa música “apresenta o capitalista explorando o trabalhador, uma vez que detém as ferramentas de domínio: o capital e os instrumentos de trabalho”.
Já no álbum A tempestade (último álbum lançado em vida), temos a Música de trabalho, na qual o eu-lírico, precarizado, mostra-se consciente de que não possui um trabalho, mas apenas um emprego: “Sem trabalho eu não sou nada/ Não tenho dignidade/ Não sinto meu valor/ Não tenho identidade/ Mas o que eu tenho é só um emprego/ E um salário miserável”. E descreve também a ditadura do capital sobre o trabalhador e sua inconformidade perante esse quadro: “Se você não segue as ordens/ Se você não obedece/ E não suporta o sofrimento/ Está destinado à miséria/ Mas isso eu não aceito”.
“Chega de opressão”
O protesto contra toda forma de opressão é uma constante nas letras de Renato Russo. A opressão sobre as mulheres, por exemplo, recebeu a atenção do compositor pela primeira vez na letra de A dança, do primeiro álbum, na qual o eu-lírico critica de forma veemente um interlocutor que insiste em tratar “… as meninas / Como se fossem lixo / Ou então espécie rara / Só a você pertence / Ou então espécie rara / Que você não respeita / Ou então espécie rara / Que é só um objeto / Pr’á usar e jogar fora / Depois de ter prazer”.
E no álbum póstumo Uma outra estação, na letra da melancólica canção Clarisse, o eu-lírico lamenta “a violência e a injustiça que existe / Contra todas as meninas e mulheres / Um mundo onde a verdade é o avesso / E a alegria já não tem mais endereço”.
Já o tema da invasão do Brasil e o saque histórico sobre os nativos desta terra, perpetrados por portugueses e outros europeus, são relembrados na letra de “Índios”, uma letra que, por um viés rousseauniano, toca em diversas questões importantes. O etnocídio (aculturação forçada), a violência, a ganância e a espoliação das riquezas naturais são algumas delas. (2)
Mas ao mesmo tempo em que fala do passado, “Índios” indica também o futuro. Os versos “Quem me dera, ao menos uma vez, / Explicar o que ninguém consegue entender: / Que o que aconteceu ainda está por vir / E o futuro não é mais como era antigamente” sugerem que a opressão de hoje é a mesma de ontem, apenas se revestindo de novas formas. Mas, ao mesmo tempo, o futuro, não reproduzindo a lógica de exploração do passado, será diferente. É a tese de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista de que “a moderna sociedade burguesa […] não aboliu as oposições de classes. Apenas pôs novas classes, novas condições de opressão, novas configurações de luta, no lugar das antigas.”
Além desses, outro tema importante e recorrente na obra do cantor é a discriminação contra os homossexuais (sendo o próprio cantor homossexual). Letras como Soldados, Daniel na cova dos leões, Maurício, Meninos e meninas e Leila são algumas das que abordam a questão. Inclusive o título de um dos álbuns da carreira solo de Renato Russo, The Stonewall Celebration Concert, faz referência à chamada Batalha de Stonewall, quando em 28 de junho de 1969 uma batida policial em um bar gay de Nova York gerou um conflito de dois dias entre travestis, homossexuais e forças da repressão.
Política, ditadura e repressão
Menções à política perpassam toda a obra da Legião Urbana, embora Renato Russo quase sempre se esquivasse de perguntas mais diretas sobre o tema em suas entrevistas. (3) Logo no primeiro álbum, o grupo teve problemas com a censura brasileira pelo fato de o título da música Baader-Meinhof Blues ser uma referência direta ao grupo de guerrilha urbana alemão Baader-Meinhof.
E se no primeiro álbum o compositor menciona o grupo guerrilheiro no título de uma música, no segundo são discretamente aludidas a ditadura militar no Brasil e a tortura. Ouvimos em 1965 (Duas tribos): “Cortaram meus braços/ Cortaram minhas mãos/ Cortaram minhas pernas/ Num dia de verão”.
Já no álbum póstumo Uma outra estação esses temas são abordados abertamente. Em La Maison Dieu o eu-lírico promete a um provável perseguido político: “Se dez batalhões viessem à minha rua/ E vinte mil soldados batessem à minha porta à sua procura/ Eu não diria nada/ Porque lhe dei minha palavra”.
Alguns versos adiante, o eu-lírico vê, durante um devaneio, alguém entrar por sua janela e dizer: “Eu sou a tua morte/ Vim conversar contigo/ … / Eu sou a pátria que lhe esqueceu/ O carrasco que lhe torturou/ O general que lhe arrancou os olhos/ O sangue inocente de todos os desaparecidos/ O choque elétrico e os gritos/ … / Eu sou a lembrança do terror/ De uma revolução de merda/ De generais e de um exército de merda”.
E, ao final, deixa o seu alerta para o futuro: “Não, nunca poderemos esquecer/ Nem devemos perdoar/ Eu não anistiei ninguém…/ Abra os olhos e o coração/ Estejamos alertas/ Porque o terror continua/ Só mudou de cheiro e de uniforme”. (4)
João de Santo Cristo, um brasileiro
Mas uma das músicas de maior apelo popular da banda – talvez a mais popular – é Faroeste caboclo, que conta a saga de um jovem negro chamado João de Santo Cristo. Nascido de família humilde, João de Santo Cristo foi vítima desde pequeno do racismo e da discriminação por ser pobre. Mais tarde, saiu do interior e foi tentar a vida na capital do país, trabalhando inicialmente como aprendiz de carpinteiro. “O Santo Cristo até a morte trabalhava/ Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar”. A situação de pobreza o leva para a criminalidade, e esta, para a prisão.
Após conhecer Maria Lúcia, por quem se apaixona, decide tentar mais uma vez uma vida honesta, voltando a ser carpinteiro, decisão que ilustra a situação de milhares de ex-detentos no Brasil. Mas empurrado novamente para a margem da sociedade, Santo Cristo volta para a criminalidade e nela permanece até ser morto por outro traficante. No momento de sua morte, lembra-se de sua infância e de tudo que vivera até aquele momento, resumindo sua vida como uma via crucis, isto é, um caminho para a crucificação.
João de Santo Cristo é, segundo Angélica Castilho e Erica Schlude, um arquétipo. O herói – ou anti-herói – de Faroeste caboclo é “um entre os muitos cristos crucificados em nossa sociedade diariamente”.
Música e protesto
Embora afirmasse em entrevistas que separava música e política, na prática Renato Russo nunca fez isso. Em todos os seus discos encontramos críticas sociais e protestos contra um mundo que considerava injusto. “Este é o nosso mundo: o que é demais nunca é o bastante/ E a primeira vez é sempre a última chance/ Ninguém vê onde chegamos/ Os assassinos estão livres, nós não estamos” (Teatro dos vampiros, disco V).
Se a intenção de João de Santo Cristo, ao ir para Brasília, era chamar a atenção do presidente “para essa gente que só faz sofrer”, a obra de Renato Russo não deixa dúvidas de que a rebeldia, o protesto e a inconformidade social presentes em suas letras tem semelhante propósito: denunciar toda forma de opressão, a exploração e o sofrimento do povo brasileiro.
Glauber Ataide, Belo Horizonte
NOTAS
(1) Uma curiosidade sobre este álbum é que os ruídos quase indecifráveis que podem ser ouvidos antes do início da primeira música são nada menos que trechos de A Internacional, hino dos trabalhadores de todo o mundo. Daí a música Fábrica, do mesmo disco, tratar deste tema e se iniciar também cantada no plural, como um hino.
(2) Os versos “Nos deram espelhos / E vimos um mundo doente” se referem à prática dos europeus de trocarem objetos de baixo valor, como espelhos, por ouro e pedras preciosas dos nativos.
(3) Perguntado em quem votaria nas eleições presidenciais de 1989, Renato Russo declarou seu voto no candidato do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Roberto Freire, na época. E em 1994, afirmou que votaria em Lula, candidato do Partido dos Trabalhadores (PT).
(4) O motivo desta música ter sido lançada apenas postumamente foi o desejo do compositor de evitar conflito com os militares.
Parabéns Glauber Ataide. Ótimo texto !!
somos os filhos da revolução !