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domingo, 6 de outubro de 2024

“A sociedade precisa se mobilizar para pressionar a Comissão da Verdade”

Amparo Araújo foi militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização revolucionária  comandada por Carlos Marighella – tendo ingressado nessa organização com apenas 17 anos, ao lado do seu irmão mais velho Luís Almeida Araújo, que é desaparecido político. Fundadora e ex-presidente do Movimento Tortura Nunca Mais em Pernambuco, atualmente é Secretária de Direitos Humanos e Segurança Cidadã da Prefeitura da Cidade do Recife.

Em entrevista exclusiva a A Verdade, Amparo fala sobre a Comissão da Verdade e a Operação Condor, defende a condenação dos torturadores na Justiça e afirma não temer as ameaças  de pessoas que foram ligadas à ditadura militar.  

A Verdade – Como surgiu o Movimento Tortura Nunca Mais e quais são seus objetivos?

Amparo Araújo – Começamos a perceber, entre 1979 e 1985, que os exilados voltaram, as pessoas se reencontraram, mas havia um grande vazio entre os familiares de mortos e desaparecidos políticos, entre os familiares e os sobreviventes. Em 1985 é então fundado o Movimento Tortura Nunca Mais no Rio e, em 1986, em Pernambuco. Em 1990, com a transferência dos arquivos do Dops para o Arquivo Público, aí vimos a necessidade de o Tortura Nunca Mais ser uma instituição cartorialmente legalizada. É como dizia Betinho, nesse momento nós fizemos isso, mas, quando se institucionaliza uma ação política se perde um pouco da liberdade. Como tudo na vida tem um lado positivo e um lado negativo, com essa institucionalização o Tortura Nunca Mais passou a ter uma sede, ter todas as questões burocráticas, mas, nessa altura, a gente consegue conciliar o político e o institucional e eu me afasto (sempre quando a gente vai ocupar cargo público a gente tem que se afastar) da atividade mais militante e, nessa última fase, eu estou afastada desde 2007 – e quem dirige agora é Márcia Wanderley.

A Comissão da Verdade foi aprovada no Congresso Nacional e sancionada pela presidente. Quais as suas expectativas em relação à Comissão?

Minha expectativa é a mesma que tive em relação à Comissão da Anistia e à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos: a sociedade precisa se mobilizar para pressionar porque, a exemplo da Comissão de Anistia e da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, a lei foi aprovada de um jeito, mas a mobilização da sociedade fez que ela fosse se ampliando e – você vê – a anistia que foi aprovada em 1979, com o avanço que ela tem com a Constituição de 1988 e, em seguida com a própria conscientização dos próprios membros do governo Lula e agora do governo Dilma… Bem,  a Comissão da Anistia foi se ampliando. A Comissão de Mortos e Desaparecidos também. No primeiro momento, a comissão indenizava apenas os mortos em locais fechados; numa segunda etapa da lei, numa emenda que teve a lei, é que entram os mortos nas manifestações de rua; daí, numa outra fase, entram também os mortos em circunstância difícil de esclarecer. Isso são avanços, e a minha expectativa é essa, que a sociedade, a mobilização social pressione o Poder Executivo para que se vá avançando nessa história. Tem o exemplo das 40 comissões da verdade que já existiram no mundo; nós estamos muito atrasados em relação a isso, mas, por outro lado, a gente vai contar com essa experiência acumulada. Acho que são muito poucos membros, são sete membros titulares, mas tem 14 assessores – é muito pouco ainda. Mas se pressupõe que, a partir da mobilização da sociedade, se criem comissões estaduais e municipais. Por exemplo, a cidade de Teófilo Otoni, no interior de Minas, está criando a Comissão Municipal da Verdade porque lá há seis militantes que são mortos e desaparecidos. Aqui em Pernambuco, se a gente contar bem direitinho tanto os nascidos aqui e os que vieram atuar no Estado, morreram e desapareceram cerca de  40 pessoas; E há esses dois projetos que estão tramitando na Assembléia. E eu já sugeri várias vezes e o próprio comitê concorda em que a gente precisa procurar o governador e também o presidente da Assembleia Legislativa para compatibilizar esses dois projetos.

Quando a Comissão da Verdade deve ser realmente formada e começar a atuar?

A presidente Dilma sancionou, no dia 17 de novembro, as duas leis, a da Comissão e a do acesso à informação. Talvez esta seja até tão importante quanto a da Comissão da Verdade. Por que não bastaria ela sancionar a lei que cria a Comissão da Verdade se ela não tivesse sancionado a lei do acesso à informação? Porque, sem acesso à informação, como é que você vai chegar lá? A gente tem que ver essas duas leis, tem que ver como é que isso vai se viabilizar na prática. Até a presente data, essa lei não foi regulamentada, aliás nenhuma das duas. Ela também não anunciou quem serão os membros da Comissão da Verdade. De lá pra cá já teve um tempinho, já tem dois meses, três meses, praticamente. Eu não sei se isso é estratégia em função desse recesso em que há sempre uma desmobilização social, nesse período de fim de ano até o Carnaval. Não sei se é uma estratégia da presidente em função disso para que não haja um esvaziamento, ou se é porque ela está tendo dificuldade… Mas houve uma reunião dos comitês, dos 35 comitês que existem em nível nacional, convocada por Gilnei Viana, que é o coordenador nacional do Programa Nacional de Direito à Memória e à Verdade, em que se elaboraram critérios e se fez também a indicação de nomes.

Mas a comissão só vai funcionar se as pessoas, não só os sete escolhidos, mas também os assessores, forem pessoas com credibilidade, acima de qualquer suspeita. Senão, ela já começa mal. Talvez a demora seja essa também… que ela esteja sendo muito cuidadosa em relação às pessoas. E eu acho que não vai ser fácil ela encontrar essas pessoas porque o salário oferecido é baixo. Por exemplo, grandes juristas como Fábio Comparato. Ele não vai querer deixar a banca de advocacia porque vai ter que ter dedicação exclusiva. Estou torcendo para que o procurador federal Marlon seja um dos indicados. Em princípio, por ele ser um servidor do Ministério Público Federal. Torço para que ele possa ser liberado de suas obrigações como procurador para se dedicar. Uma outra pessoa que eu acharia interessante – mas aí não sei se a gente pode ponderar – é o nosso Paulo Abrão, presidente da Comissão da Anistia, mas seria uma grande perda para a Comissão da Anistia.

Os grandes meios de comunicação e a direita pregam o esquecimento do crime hediondo da tortura. Em sua opinião, como devem ser tratados os torturadores na democracia?

Não sei se você sabe, mas o Ministério Público Federal está com um procedimento de reverter – chamam ação regressiva – para declarar a responsabilidade de quem cometeu torturas, mortes, desaparecimento e ocultação de cadáveres de vários militantes. Em se declarando essa responsabilidade através desse instrumento, cada família pode entrar com ação criminal contra essa pessoa. Mas entrar com uma ação criminal contra o torturador e contra o Estado não depende da Comissão da Verdade, depende de cada família. Por exemplo, já estou na Corte Interamericana contra o Brasil pela morte de Luís José da Cunha, meu marido. E pretendo fazer a mesma coisa em relação ao meu irmão Luís Almeida Araújo. Entramos na Corte eu e Clarissa Herzog, nós entramos na mesma ocasião, e a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação ao Araguaia é extensiva a todos os desaparecidos políticos. Creio que as famílias têm essa obrigação. Sejam elas militantes de Direitos Humanos ou não, elas têm, no mínimo, a obrigação moral e afetiva. Se for uma família que não tenha militância política, mesmo assim ela tem essa obrigação moral com o seu familiar que foi morto. Essa obrigação afetiva. Temos várias instituições – aqui, por exemplo, temos o Gajop, temos também o Cejil – que estão disponíveis para entrar com esses procedimentos.

Em relação a processo contra torturador, há vários. A família Teles e a família Melino já entraram com processo contra o Brilhante Ustra. E qualquer pessoa que sobreviveu, os ex-presos políticos que identificarem seus torturadores podem entrar com ação. Não precisa nem ser morto e desaparecido, basta conseguir ter a identidade… e essas pessoas que torturaram e mataram são mais ou menos públicas. As pessoas têm que ter essa coragem! Não estou dizendo a você que seja fácil, não, porque eu vivo recebendo e-mails desaforados e, entre aspas, ameaçadores. Têm policiais federais aposentados que têm 14 processos contra a minha pessoa.

E a Operação Condor será também investigada?

A Operação Condor era uma rede articulada por torturadores que agiu em toda a América Latina, toda a América do Sul e a Europa. Pelas últimas informações que a gente tem, eles agiram várias vezes fora do Brasil, fora da América do Sul, chegando até a Europa. E, por coincidência, porque estou aqui nesta função de secretária de Direitos Humanos numa gestão do PT e do PSB na cidade do Recife, participo da rede Merco-Cidade e sou subcoordenadora da Comissão de Direitos Humanos. Um dos focos dessa comissão de direitos humanos do Merco-Cidade é o direito à memória e à verdade, e o que a gente sempre fala é que a gente agora está podendo fazer a Operação Condor ao contrário.

Estamos resgatando até o próprio trajeto da Operação Condor, resgatando a memória das pessoas que foram vítimas dela. Eu estava no Uruguai, numa reunião do Merco-Cidade, quando foi localizada a ossada de um professor que tinha desaparecido por obra da Operação Condor. Sempre que vai a essas reuniões a gente faz visita técnica. No Paraguai, por exemplo, nós estávamos fazendo uma visita técnica ao lado da Comissão da Verdade daquele país, nos fundos de um quartel, onde, teoricamente, se tem informação, há 36 ossadas. Estivemos lá no dia 24 de setembro e, no dia 28, foram localizadas duas ossadas justamente naquele local. Eles abrem trincheiras, a Universidade junto com a comissão, e a equipe de antropologia forense da Argentina (que faz esse trabalho de forma coletiva, ajudando os outros países fazendo assessoria técnica) abria trincheiras a cada meio metro. Ficava varrendo todo aquele terreno. Um terreno imenso (lógico, bem menor do que o Araguaia). Era assim: cada vala, cada trincheira tinha a distância de, no máximo, meio metro de uma para outra. E tinham também aparelhos com os quais, nesse meio metro, eles podiam ver se havia indícios de que ali houvesse ossadas. E uma coisa importante da minha função aqui na prefeitura aconteceu nessa reunião do Uruguai – a reunião da cúpula do Mercosul, e é bom lembrar que há o Mercosul que cuida do comércio, o Merco-Cidade que cuida das questões sociais e ainda tem a Reunião das Altas Autoridades em Direitos Humanos do Mercosul (Raadh). Estávamos nós, da Comissão de Direitos Humanos do Merco-Cidade, e estava a ministra Maria do Rosário na Raadh, que é uma instância. Tive, então,  a oportunidade de articular uma reunião de Maria do Rosário com esse grupo da Comissão de Direitos Humanos do Merco-Cidade e a ministra se dispôs a sair com uma resolução de que trabalharíamos conjuntamente, a Raadh e a Comissão de Direitos Humanos do Merco-Cidade, em relação à questão dos mortos e desaparecidos políticos de todos os países que compõem o Mercosul e também de puxar um encontro, no Brasil, para debatermos a questão da Comissão da Verdade com quem já tinha mais experiência, porque em todos os países do Mercosul já houve a comissão da verdade.

Além da atuação na rede Merco-Cidade que ações da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura da Cidade do Recife você destaca?

Trouxemos para cá duas caravanas da Anistia, uma em 2009 e outra em 2011, e já estamos pedindo uma para este ano; realizamos, todo mês de março, a Semana Marcas da Memória; trouxemos a peça Filhas da Anistia; fizemos várias publicações; reproduzimos, junto com o Governo do Estado, o livro Direito à Memória e à Verdade, e também fizemos o livro sobre os militantes negros, sobre as mulheres e sobre as crianças – foram quatro publicações; fizemos o resgate da memória de João Leonardo, naquela ida a Itapetim, quando se resgataram os três anos em que ele morou em Itapetim; temos dado uma atenção especial ao Engenho Galileia; e estamos colocando as placas de memória. Pode parecer uma coisa muito pequena, mas não é pequena, porque ninguém nunca fez isso antes, e eu quero que todos façam. Dentro das minhas poucas possibilidades aqui, estou marcando os locais onde os mortos e desaparecidos de Pernambuco estiveram presos, como a Casa de Detenção. Na Escola onde Luís José da Cunha estudou nós colocamos uma placa. Estou aí com a do Padre Henrique para ser colocada. Estamos fazendo o levantamento dos pontos. Eu tenho um estagiário aqui que está cuidando disso. Não é uma coisa fácil de fazer porque as pessoas têm que compreender todo aquele contexto para poder colaborar.

Que mensagem você deixa para A Verdade e para os nossos leitores?

Sou uma leitora assídua do jornal A Verdade, sempre que vocês se lembram de mandá-lo para mim. Admiro muito a resistência de um jornal alternativo. Não deve ter sido fácil resistir e completar 12 anos. É uma vida, praticamente. Nesse período pós-ditadura, um jornal alternativo sobreviver é praticamente um ato de heroísmo, para mim. Essa persistência, essa determinação… essa é uma das razões de eu admirar tanto A Verdade e de estar sempre assim, mais ou menos por perto. Nunca pude chegar muito próximo, assim, por uma questão de tempo mesmo. Porque, como eu tenho a militância política geral, acho importante também ocupar esses espaços institucionais, porque há pequenas coisas que a gente pode fazer, simbólicas, mas coisas importantes: uma placa, botar nome em uma rua… se eu não estivesse aqui, quem iria fazer? Como aquela poesia de Marcelo Mário Melo: se não defendermos nossas causas, quem o fará? Então, isso me toma muito tempo. A burocracia é uma coisa que transtorna a pessoa, mas tem a compensação. Botar aquele monumento em homenagem a Padre Henrique ali onde tem o Tortura Nunca Mais foi um ato institucional, por eu estar aqui institucionalmente. A homenagem a Davi Capistrano na Assembleia foi feita por eu estar aqui e por Vanucchi estar no ministério.  Padre Henrique também foi por eu estar aqui e por Vanucchi estar no ministério. As publicações também, foi por eu estar aqui e por Vanucchi estar no ministério. Espero continuar essa história com a Caravana da Anistia por eu estar aqui e Paulo Abrão estar lá. Então há os dois lados dessa moeda. E o jornal A Verdade registra essas histórias todas. O pessoal do Centro Manoel Lisboa também, se mistura com a história do Jornal A Verdade, foi quem ajudou a enterrar Luís José da Cunha, o Comandante Crioulo. É isso aí…

Thiago Santos, Recife

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3 COMENTÁRIOS

  1. Enquanto houver no Brasil juízes, desembargadores, presidentes de tribunais federais e ministros de tribunais superiores, promotores de justiça etc etc, recebendo agrados dos militares, dos mais diversos tipos, numa conduta de bajulação interesseira, não podemos esperar nenhuma decisão justa. Um claro exemplo disso é a decisão recente do STF que manteve intocável a lei da anistia. Um absurdo sem nenhum fundamento jurídico sólido.
    Quantos, dentre os ministros que votaram, já haviam recebido agrados dos militares?
    Quantos membros do judiciário já foram “agraciados” de acordo com dessa política bajuladora?
    Alguém saberia dizer qual é a verdadeira razão pela qual os militares tem mantido uma conduta sistemática de busca de aproximação com membros do judiciário?
    Será que esses juízes não percebem qual é a intenção dos milicos?

  2. Solicitem uma relação ao comando do exército com os nomes dos integrantes do judiciário brasileiro que já foram “condecorados” de alguma forma, sob as mais criativas justificativas. Todo esse circo que os militares armam tem uma finalidade: cooptar, entre os detentores do poder de decidir, afinidades que possibilitem obter condições que facilitem a obtenção de decisões favoráveis em casos que envolvam interesses das FA.
    O resultado tem sido esse que temos visto…….

  3. Cara Amparo, admiro sua luta e a de todos os militantes de esquerda que lutaram contra um regime imposto. No entanto, faço uma observação: é difícil responsabilizar os agentes públicos e os que mandavam, no caso do cometimento de tortura e assassinatos de militantes, sem revogar totalmente a Lei da Anistia e seus efeitos. Ou seja: seria necessário ‘desanistiar’ todos os que também, do lado da esquerda, cometeram delitos e foram amparados por essa lei ou leis posteriores mais abrangentes e menos unilaterais. Dificilmente algum juiz ou tribunal aceitará a tese de só revogar os efeitos dessas leis que digam respeito aos agentes públicos, já que houve cometimento de sequestros e assassinatos, em alguns casos, por militantes de esquerda. Não falo assim por simpatizar com a direita ou por achar que seus delitos devam ficar impunes, nem que tenham natureza idêntica aos da esquerda,  mas dentro do arcabouço jurídico existente não sei se  seria possível reverter esse quadro sem penalizar os que também lutaram contra a ditadura mas, por alguma razão desconhecida, escaparam com vida. Seria reviver tudo o que passaram, fazendo-os sentarem-se também, novamente, em bancos de réus, além de terem que constituir advogados e reprisar o que viveram nos porões. Reparo, no entanto, que a Lei da Anistia não anistiou o Estado brasileiro e nem o regime em si. Também consta na lei da anistia que os crimes de sequestro estão excluídos do seu guarda-chuvas: todos os que foram levados aos porões da repressão sem mandado judicial foram, na verdade, sequestrados. Os procuradores podem tentar novamente por aí, mas isso talvez atinja também os que sequestraram embaixadores e cônsules para libertar companheiros presos. Ou, alternativamente, podem invocar os tratados contra tortura e eliminação de opositores – dos quais o Brasil já era signatário antes da ocorrência daqueles fatos – para excluí-los da benesse de anistia.  

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