A estiagem atinge uma grande parte do território nacional desde janeiro. Todas as cidades do Semiárido nordestino foram afetadas e quase 70% dos 1.794 municípios do Nordeste estão em situação de emergência, somando cerca de 10 milhões de pessoas, segundo estimativas do Ministério da Integração Nacional. Também o Norte de Minas Gerais e parte do Espírito Santo sofrem com a seca.
No ano inteiro foram raríssimas as chuvas, que apenas acenderam uma ponta de esperança no sertanejo, mas que não matou sua sede. Pelo contrário, o que vimos morrer foram plantações de pequenos agricultores e os rebanhos de ovinos e bovinos, formando verdadeiros cemitérios ao ar livre dentro das propriedades e na beira das estradas. Um cenário desolador e absolutamente contrário à prosperidade, desenvolvimento e justiça social dos discursos governamentais tão repetidos ultimamente.
“Temos que dividir a água com os animais”
Sem chuva, o pasto foi reduzido à areia. Além de não ter capim para dar aos animais, os pequenos produtores ainda são obrigados a comprar ração e complementos alimentícios a preços inflacionados. “Se, pelo menos, o governo ajudasse com a ração, que é o que faz os animais darem leite, ajudaria bastante. Mas, até agora, recebemos água de carro-pipa só para o abastecimento de casa. Mesmo não dando, temos que dividir a água com os animais para que eles não morram”, afirma a agricultora Sônia Souza Costa, de Poço Redondo, em Sergipe.
Em Alagoas, a região do Município de Batalha, a maior bacia leiteira do Estado, é uma das que mais sofrem com a seca e já viu a produção de leite cair pela metade. A seca também atingiu de forma avassaladora o Estado do Ceará, que, apesar de contar com as duas maiores barragens de água do Nordeste, possui quase 90% de seu território no Semiárido (apenas seis dos 184 municípios não decretaram situação de emergência), afetando praticamente toda a atividade pecuária. Já na Bahia, os produtores da região de Jacobina perderam metade do rebanho de três milhões de cabeças de gado.
As duas principais culturas produtivas do Semiárido nordestino (milho e feijão) foram extirpadas. No Maranhão a perda chegou a 60% da produção de arroz, milho e soja do leste do Estado.
Com a brusca queda da produção no campo, verificou-se nas cidades uma alta dos preços dos alimentos, chegando ao dobro do valor em relação ao ano passado, além de um novo êxodo populacional, inchando ainda mais os grandes centros.
O próprio sistema para o consumo humano de água também está completamente em colapso. Na Paraíba, por exemplo, com 195 de seus 223 municípios em estado de emergência, a cidade de Cabaceiras está há dois meses sem uma gota de água encanada, mesmo na área urbana. O padre Djacy Brasileiro, que atua na região, enviou diversas cartas ao Congresso Nacional e à Presidência da República questionando o tratamento dado às vítimas da seca:
“Será que a seca, que devasta e mata, não é tão cruel quanto as guerras no Oriente Médio, o atentado às Torres Gêmeas do World Trade Center e o furacão Sandy, nos Estados Unidos? Será que a seca, que devasta e mata, não merece a devida atenção tanto quanto à crise econômica europeia, as reuniões opulentas e luxuosas do G8 e a Copa do Mundo 2014? Será que a seca, que devasta e mata, não merece a devida atenção tanto quanto o julgamento do Mensalão e de outros atos ilícitos de repercussão nacional?”
A indústria da seca
Em 13 de novembro, a presidente Dilma Rousseff publicou Medida Provisória para aumentar os benefícios concedidos aos atingidos pela estiagem. Os agricultores receberão um auxílio extra de R$ 280 por meio do Programa Garantia-Safra, que paga míseras cinco parcelas de R$ 80. No entanto, boa parte desta ajuda nem sequer chega às vítimas da seca.
“A ajuda não está chegando nem na quantidade, nem velocidade que a gente entende que seria necessária. Estamos fazendo uma série de cobranças ao Governo Federal e Estadual [Pernambuco]. Tivemos uma reunião com o arcebispo de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido, para iniciarmos uma campanha de arrecadação de água para consumo humano. Temos municípios entrando em colapso. Pedimos também à Igreja que cobre dos governos. Queremos recursos para a realização de obras como cisternas e barragens subterrâneas. A situação está séria e a burocracia é grande. O que percebemos é que o governo não se preparou para enfrentar um momento como esse”, afirma Doriel Barros, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape).
No dia 9 de novembro, ao inaugurar a Adutora do Algodão, na região de Guanambi, na Bahia, a presidente Dilma Rousseff ouviu Maria Mendes do Pindaí, representante dos movimentos sociais da região, falar sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres com a seca: “A primeira coisa que a gente precisa é ter água, porque sem água não tem café para darmos aos nossos filhos”.
O governo federal anunciou ainda a criação do programa “Mais Irrigação”, que terá investimentos de R$ 10 bilhões, sendo R$ 3 bilhões de recursos públicos e R$ 7 bilhões da iniciativa privada, de acordo com o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra. Na prática, o resultado será um aprofundamento do poder do capital no campo através das famigeradas parcerias público-privadas (PPPs).
Já os carros-pipa, ícones da chamada indústria da seca no Nordeste, foram amplamente ressuscitados nesta estiagem e, com eles, os chamados “coronéis da água”. Em várias cidades, moradores denunciam que a entrega de água obedece a critérios políticos: à época das últimas eleições municipais, quem não votasse no candidato que controla os carros-pipa não recebia a água. Onde esses candidatos não se elegeram houve retaliações e o completo abandono das famílias por parte do poder público.
Só minoria tem acesso à água
A pobreza no Sertão nordestino é crônica. Vários municípios hoje atingidos pela seca coincidem com os que tinham a renda mais baixa e os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país há 12 anos.
De acordo com o último Atlas do Desenvolvimento Humano, feito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em 2000, das quatro cidades com menor IDH do país, três estão na lista de municípios em emergência pela seca. A cidade com menor IDH do país é Manari-PE, com índice de 0,467 – o país teve média de 0,649 no mesmo período. Outras duas cidades nordestinas, Traipu-AL e Guaribas-PI, também estão no topo da lista, com 0,479 cada uma.
A verdade é que todos os especialistas e pesquisadores sérios do Brasil vêm afirmando há décadas que o problema do Nordeste brasileiro não é a falta de água, mas sim sua concentração em determinadas propriedades privadas. Ou seja: o centro da questão não é climático, resultado de fenômenos naturais, é político, econômico, social.
O professor de sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Paulo Decio de Arruda Mello afirma que não há, necessariamente, uma relação direta entre a miséria e as estiagens. “Não é uma coisa automática. Podem existir locais com produção e desempenho econômicos elevados, mas que sejam atingidos pela seca. O Sertão do Nordeste acabou sendo alvo de políticas assistencialistas ao longo de décadas, o que impediu o desenvolvimento sustentável. Os governos não investiram como deveriam em obras estruturantes no Semiárido brasileiro porque nessas áreas geralmente se concentra a agricultura familiar, que não são commodities ou exportadores. São áreas ocupadas por economias agrícolas de pouco valor agregado, que acabam relegadas a um segundo plano. A tendência é investir mais em setores mais rentáveis”.
Segundo o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) João Abner Guimarães Júnior, especialista em recursos hídricos, “há água para consumo humano e animal com sobra. Há estoques suficientes para atender plenamente às necessidades do cidadão do campo, mesmo num período como este. São 10 bilhões de metros cúbicos armazenados na região acima do Rio São Francisco, em grandes reservatórios. Um sistema adutor com capilaridade seria suficiente para atender a toda demanda local, comprometendo menos de 20% da disponibilidade hídrica dos reservatórios”.
“Se o governo federal instituísse um programa do tipo ‘Água para Todos’, isso custaria cerca de R$ 20 por ano, por habitante. É um custo muito menor do que os aluguéis dos carros-pipas e do que as ajudas emergenciais, como o Bolsa-Estiagem, e representaria um terço do valor da transposição do Rio São Francisco”, afirmou.
Na cidade de Pão de Açúcar, em Alagoas, a menos de 500 metros do rio, comunidades rurais sofrem com a seca como se não houvesse uma imensidão de água ao lado, tudo porque a água do rio nunca chegou até eles. Em Glória, na Bahia, moradores revoltados afirmam que não há abastecimento de água nem energia elétrica. “Aqui a gente acorda e vê esse rio cheio de água e vê o esquecimento em que vivemos desde que nascemos. Nunca chegaram para trazer um copo d’água desse rio pra gente”, afirma dona Maria São Pedro, que vive a menos de 5 km do rio.
Seca para alguns, abundância para outros. Eis o dilema em que se encontrará o Nordeste e o Brasil enquanto viver num regime econômico que privilegia uma minoria.
Rafael Freire, presidente do Sindicato dos Jornalistas da Paraíba