1971 – Uma nuvem escura cobria os céus de todo o Brasil. Apesar disso, o sol brilhava naquele dia 20 de janeiro, no Rio. Feriado. Dia do padroeiro da cidade, São Sebastião. Por volta de meio dia, uma família voltava da praia. Rubens Beirodt Paiva, sua mulher Maria Eunice Facciola Paiva e duas filhas: Vera e Eliane. Ao chegar a casa, são abordados por seis homens, que detêm Rubens e dizem que vão levá-lo para a delegacia, para um depoimento, “coisa de rotina”. Ele foi, escoltado, dirigindo o próprio carro. Nunca mais voltou.
Rubens Paiva tinha então 41 anos, era industrial, engenheiro civil formado em 1954 na Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie, São Paulo, seu Estado natal (nasceu em Santos, no ano de 1929). Foi engenheiro construtor de Brasília, depois deputado eleito pelo povo, cassado e exilado em 1964. Foi Vice-Presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE-SP) e deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB-SP). Na Câmara, destacou-se pela defesa de bandeiras nacionalistas. Quando sobreveio o golpe civil-militar de 1964, ele era Vice-Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava o recebimento de dólares pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), fachada utilizada pela CIA estadunidense para financiar atividades de desestabilização do Governo de João Goulart.
Cassado pelo Ato Institucional nº 1 (AI-1), Rubens Paiva esteve algum tempo no exílio e, retornando ao Brasil, passou a atuar na resistência à ditadura, escondendo militantes perseguidos e ajudando-os a sair para o exterior, enviando denúncias de tortura para organismos internacionais de defesa dos direitos humanos. Não era comunista, não pertencia a nenhuma organização revolucionária. Desenvolvia atividades, podemos definir, humanitárias.
Torturas e Mentiras
No dia seguinte, os policiais levaram para o quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, onde operava o DOI-CODI, Maria Eunice e a filha do casal, Eliane, de 15 anos. A adolescente foi libertada 24 horas depois e Eunice ficou presa, incomunicável, durante 15 dias.
Ao sair, não teve mais notícia do esposo. Tomou conhecimento de uma versão divulgada pelos jornais e pela televisão, segundo a qual ao ser transferido para outra unidade militar, um grupo “terrorista” teria resgatado o prisioneiro. Era mentira, como tantas outras farsas montadas para encobrir o assassinato dos militantes oposicionistas, por meio de bárbaras torturas, nos porões das Forças Armadas.
Maria Eunice não acreditou. Buscava informações nas unidades do Exército e a resposta é que o prisioneiro nunca havia estado lá. Conseguiu falar com o então Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, que admitiu a possibilidade de Rubens ter sofrido arranhões durante o interrogatório, mas prometia sua libertação em 15 dias.
O advogado Lino Machado, por sua vez, ingressou com três pedidos de habeas-corpus, visando a, pelo menos, identificar os responsáveis pela prisão, mas nada conseguiu. Eunice enviou carta ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, mais uma farsa da ditadura, em que afirmava entre outras coisas: “Rubens é um homem de bem, pai de família exemplar, engenheiro competente, cidadão probo e honrado, empresário responsável e capaz… Não viu contra si, no entanto, instaurar-se nenhum inquérito policial-militar ou processo penal. Não lhe foi feita jamais, acusação de nenhuma natureza. De que hoje o acusam? Onde está? Para onde o conduziram?…Onde estão, afinal, os compromissos do país, assumidos solenemente em suas constituições desde o alvorecer da República e no âmbito internacional, como nação cristã e civilizada, através da adesão às Declarações Universais dos Direitos do Homem da ONU e da OEA? Como admitir a insegurança terrível dos seqüestros ou raptos tornados oficiais?”. O Conselho, presidido pelo próprio Alfredo Buzaid, nada respondeu e simplesmente arquivou o pedido.
Testemunhos da morte bárbara
Da Barão de Mesquita, a “Casa da Morte”, Rubens Paiva foi conduzido para a III Zona Aérea, onde foi torturado junto com as prisioneiras Cecília Viveiros de Castro e Marilena Corona. Por ter amparado uma delas, que desmaiou, Rubens foi atingido por um soco e reagiu com palavrões, o suficiente para todo o grupo de torturadores cair sobre ele, desferindo-lhe pauladas e pontapés, até transformá-lo numa poça de sangue. Em 1986, o oficial-médico do Exército, Amílcar Lobo, que dava “assistência” aos torturados, reanimando-os para que pudessem ser submetidos a mais violência, declarou à revista Veja que viu Rubens Paiva “arrebentado e ensangüentado” no DOI-CODI do Rio de Janeiro, para onde retornou, depois de ser torturado na III Zona Aérea.
A partir desse depoimento e apoiado também no testemunho das prisioneiras citadas, em 1987, o Procurador-Geral da Justiça Militar, Francisco Leite Chaves, instaurou processo penal na Primeira Auditoria Militar do Rio. Chegou aos culpados, mas os autos foram destruídos e o processo arquivado. Como culpados, o processo apontou o coronel Ronald José da Motta Batista Leão, que era chefe da II Seção do I Exército; o Capitão de Cavalaria, João Câmara Gomes Carneiro (João Coco); o subtenente Ariedisse Barbosa Torres, o major PM-RJ, Riscala Corbage e o segundo-sargento Eduardo Ribeiro Nunes.
A Luta pela Reparação
Em 1991, a família ingressou com ação ordinária de indenização contra a União, por danos morais e patrimoniais. A ação nunca foi julgada.
Em 1988, o então suplente de senador, Fernando Henrique Cardoso, afirmou em artigo intitulado “Sem esquecimento”: “O riso franco de Rubens Paiva, sua bonomia, seu modo de ser generoso e de ajudar na mudança das coisas vivem, hoje, apenas na memória dos que o conheceram. Mas viverão enquanto vivermos. E ajudarão a impedir que haja esquecimentos”.
Presidente da República, em seu primeiro mandato, FHC conversou com o Secretário-Geral da Anistia Internacional, Pierre Saué, sobre a situação das famílias de 144 desaparecidos e lhe disse “É um passado complicado de remexer, que incomoda muitos setores”.
Marcelo Rubens Paiva, filho do herói, escritor, reagiu em artigo publicado pela revista Veja, edição de Maio/95: “Como filho de um desaparecido, tenho mil motivos para ficar indignado com o silêncio das autoridades brasileiras. Como cidadão, eu me pergunto se já não chegou o dia de os militares brasileiros… imitarem seus colegas argentinos, abrirem os arquivos, excluírem os antigos torturadores e apontarem aqueles que sujam o nome da corporação. Eu me pergunto como a nova geração de oficiais consegue conviver com a mancha de um passado tão sombrio.”
A Comissão Nacional de Familiares de Mortos e Desaparecidos e os Movimentos de Defesa dos Direitos Humanos e contra a tortura conseguiram mobilizar setores da sociedade, obter apoio no Congresso e em 4 de dezembro de 1995, o Presidente FHC sancionava a Lei nº 9.140, reconhecendo como mortas as pessoas desaparecidas em razão da participação em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1974 e estabelecendo uma indenização para suas famílias a título reparatório.
Foi criada uma comissão especial para analisar os processos. As famílias ficaram com o ônus da prova. Foi muita luta para conseguir desmontar as versões oficiais, mas a grande maioria conseguiu comprovar a responsabilidade do Estado no desaparecimento de seus parentes. Entre eles, Rubens Paiva, herói do povo brasileiro.
A Hora da Verdade
A Lei 12528/2011 criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída em maio de 2012, com a finalidade de apurar graves violações de Direitos Humanos, praticadas por agentes públicos, ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.
Segundo o ex-Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, que coordena a CNV, documentos encontrados no Arquivo Nacional em Brasília e na residência do coronel Júlio Molinas, chefe do DOI-Codi do Primeiro Exército, assassinado em Porto Alegre, comprovam que Rubens Paiva foi realmente executado pela repressão militar.
Em depoimento à imprensa, Vera Paiva, filha do ex-deputado Rubens Paiva, professora de psicologia na USP, afirma que “…depois que estiver concluído o relatório da comissão, cabe ao Brasil decidir o que quer para o país. Nós vamos esquecer e dizer tudo bem? E vamos perdoar quem fez? Ou vamos dizer que isso é inaceitável hoje, ontem e no futuro? Será um segundo debate político e democrático para traçar o futuro do Brasil.
Não falo apenas do cotidiano das famílias marcadas pelo período de exceção. Incontáveis famílias ainda hoje, em 2011, sofrem em todo o Brasil com prisões arbitrárias, sequestros, humilhação e a tortura. Sem advogado de defesa, sem fiança. Inúmeros dados indicam que especialmente brasileiros mais pobres e mais pretos, ou interpretados como homossexuais, ainda são cotidianamente agredidos sem defesa nas ruas, ou são presos arbitrariamente, sem direito ao respeito, sem garantia de seus direitos mais básicos à não discriminação e à integridade física e moral que a Declaração dos Direitos Humanos consagrou na ONU depois dos horrores do nazismo em 1948. Isso tudo continua acontecendo”.
Se ficarmos omissos, alerta Vera Paiva, “ …seremos cúmplices do sofrimento de milhares de famílias ainda afetadas por essa herança de horror que agora não está apoiada em leis de exceção, mas segue inquestionada nos fatos”.
Luiz Alves é advogado e escritor
Obras Consultadas
– Mortos e Desaparecidos Políticos: Reparação ou Impunidade? Organizado por Janaína Teles, São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2000.
– Dos filhos deste solo, Nilmário Mranda e Carlos Tibúrcio. Editora Fundação Perseu Abramo e Boitempo Editorial, São Paulo, 1999.