Em seu livro O imperialismo, fase superior do capitalismo, Lênin descreve o capitalismo moderno como um sistema parasitário e em decomposição. Nele, as grandes potências disputam entre si a dominação dos demais países e o controle de suas riquezas, impondo uma espécie de partilha do mundo, que só pode ser modificada definitivamente por meio das guerras.
Justamente por isso, a burguesia desenvolveu ao longo do tempo uma série de políticas e instrumentos para reforçar seu controle sobre o mundo e as pessoas, que vão desde a alienação ideológica e cultural, passando pela defesa do individualismo, o consumo das drogas e o desenvolvimento de armas cada vez mais poderosas, até a criação de uma rede de vigilância internacional que lhe garanta monitorar a atividade de países, empresas, organizações políticas e cidadãos em todo o planeta.
A prática de espionar os outros não é uma novidade criada pela burguesia; existia já antes da atual fase do capitalismo e até mesmo antes do capitalismo. Sun Tzu, general e estrategista militar chinês, que viveu entre 544 e 496 antes da nossa Era, já falava da espionagem e da vigilância dos adversários como um dos elementos que compunham a chamada “arte da guerra”. Mas os objetivos e a amplitude da vigilância imposta à humanidade atualmente, especialmente pelos Estados Unidos, são diferentes de tudo que a História conhece. Isso ficou ainda mais claro depois das revelações do ex-agente da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, na sigla em inglês) Edward Snowden.
Criada há 61 anos, durante a Guerra Fria, a NSA tem como tarefa principal espionar as comunicações de outros países. A agência ganhou ainda mais força durante o governo George W. Bush, sobretudo após os ataques às Torres Gêmeas, em setembro de 2001, tornando-se referência em tecnologia de inteligência aplicada em radares e satélites para coleta de dados em sistemas de telecomunicações e na internet.
O governo Obama deu continuidade a esse processo e multiplicou o orçamento da NSA, que é secreto, assim como o das outras 14 agências de espionagem dos EUA. Juntas, elas gastaram US$ 75 bilhões em 2012, conforme estima a Federação dos Cientistas Americanos, organização não governamental especializada em assuntos de segurança.
Em março do ano passado, o jornal A Verdade denunciou, em seu site averdade.org.br, a construção da nova base de operações da NSA, tida como o “maior centro de espionagem do mundo”, na cidade de Bluffdale, no Estado de Utah. “Tendo cerca de um milhão de metros quadrados, este monstruoso Grande Irmão orwelliano custará cerca de dois bilhões de dólares. Seu objetivo: interceptar, decifrar, analisar e armazenar grandes quantidades de informações de todo o mundo. Seu alvo: qualquer pessoa é um alvo, qualquer um que se comunique é um alvo”, dizia o artigo.
Na época, William Binney, ex-oficial que trabalhou como criptomatemático na NSA por mais de 40 anos e que deixou a agência após interceptações que, segundo ele, violaram a Constituição estadunidense, ao comentar o projeto aproximou seu dedo indicador doseu polegar e afirmou: “Nós estamos a esta distância de nos tornarmos um estado repressor totalitário”.
O controle sobre as comunicações
A particularidade fundamental da espionagem moderna consiste no controle e monitoramento de todas as formas de comunicação existentes. Não há mais meio seguro de se comunicar.
De fato, os Estados Unidos têm programas de espionagem e rastreamento funcionando em dezenas de países, inclusive no Brasil. Vários programas são usados para ter acesso às informações desejadas.
Um deles, o “Prism”, possibilita acesso irrestrito a e-mails, conversas online e chamadas de voz em sites e serviços como o Facebook, Google, Yahoo, Microsoft, Skype e YouTube. Já outro programa, o “BoundlessInformant”, dá acesso às comunicações internacionais feitas por telefone e internet.
Entretanto, é o programa “X-Keyscore” o mais abrangente. Capaz de rastrear e identificar a presença de um estrangeiro em um país através do idioma usado por ele em e-mails, o X-Keyscore transforma nossa vida digital num livro aberto, permitindo interceptar qualquer atividade online sem autorização e monitorar e-mails, histórico de navegações de uma pessoa, buscas realizadas na internet, conversações privadas no Facebook e GTalk, cruzamento de informações segundo o idioma, o país de origem e de destino dos dados e dos intercâmbios. “Eu, sentado à minha escrivaninha, posso grampear qualquer pessoa, desde você ou seu contador, até um juiz federal ou até o presidente, se tiver um e-mail pessoal”, afirmou o ex-agente Edward Snowden.
Ainda segundo Snowden, um agente da NSA pode ver as caixas de entrada e saída de e-mail de qualquer pessoa apenas tendo em mãos seu endereço de correio eletrônico. Além disso, o programa também permite o acesso ao conteúdo que as pessoas produzem nas redes sociais. Com uma ferramenta chamada “DNI Presenter”, é possível ler conversas particulares e bate-papos no Facebook ou em qualquer outra rede social, além de acessar em tempo real a navegação de um internauta para descobrir o que ele está fazendo na web.
A NSA atua em conjunto com o sistema de espionagem Echelon. Criado depois da Segunda Guerra Mundial para espionar governos, partidos políticos, organizações e empresas, o Echelon é um sistema de vigilância global que monitora os satélites usados para transmitir a maioria dos telefonemas, a comunicação na internet, e-mails, redes sociais, etc., e é capaz de interceptar até dois milhões de conversas por minuto. “Digamos que há uma pessoa que eles acham que conversa com outras pessoas que sejam perigosas. Aí, esse cara liga para mim, e em seguida você me entrevista pelo telefone. Pronto, você, já está no registro deles, acabou de entrar na lista da NSA. É a propriedade da transitividade. Quem interessa é todo mundo por quem as pessoas nas quais eles estão interessados se interessam”, afirma Sílvio Meira, cientista-chefe do C.E.S.A.R. e phD em Computação. “Agora, a gente sabe que o governo norte-americano tem isso, os governos inglês e francês têm isso também, o chinês já tem há muito tempo. É um tipo de tentativa de controle do cidadão pelo Estado, de saber o que todo mundo está fazendo o tempo todo”, completa.
Segundo especialistas, as comunicações por celular são as mais vulneráveis à interceptação. As agências de inteligência conseguem saber se o aparelho X está ligando para Y, a que horas e quanto tempo demorou a ligação, bem como de onde estão falando e quem são os titulares dos aparelhos. Podem até saber quem está falando ao telefone por meio da análise de reconhecimento da voz. “Nós podemos instalar um software remotamente em um aparelho, operando-o de maneira completamente independente dele. “Podemos espiar você. Sabemos suas chaves de criptografia para chamadas. Podemos ler suas mensagens de texto. Além da pura espionagem, podemos roubar dados de seu cartão SIM, sua identidade móvel e cobrar da sua conta”, garante Karsten Nohl, fundador da empresa alemã Security ResearchLabs e um dos maiores especialistas mundiais em segurança da informática.
A falsa “democracia” da internet
Porém essa facilidade dos serviços de inteligência em monitorar o que fazemos ou dizemos na internet e pelo telefone não seria possível sem a colaboração das grandes empresas de telecomunicações e de internet.
Como se sabe, quem controla a internet são as grandes empresas privadas dos Estados Unidos, como Microsoft, Yahoo, Google ou Facebook. Essas empresas possuem acordos de cooperação com o governo dos Estados Unidos, dando livre acesso aos serviços de espionagem às informações armazenadas em seus bancos de dados. “O grande interesse de atuar neste nível consiste em ter acesso a uma informação que já está estruturada e tratada”, explica StéphaneBortzmeyer, especialista em segurança informática.
Essa colaboração entre as companhias de internet e o governo norte-americano é tão estreita que Max Kelly, chefe de segurança do Facebook e encarregado de proteger as informações pessoais dos usuários da rede social contra ataques externos, deixou a empresa em 2010 e foi contratado pela NSA.
Atualmente, 80% das comunicações através da internet passam pelos Estados Unidos. Quando uma pessoa se cadastra no Google ou Facebook e assina seus termos de uso “autoriza” o armazenamento das informações no território norte-americano. A partir daí, o governo dos EUA passa a ter direito de requisitar o conteúdo dos arquivos de pessoas que considerem suspeitas. Apenas em 2007, segundo relatório da NSA, 850 bilhões de chamadas telefônicas e mais de 150 bilhões de registros de internet foram armazenados pela agência. Por dia, segundo o documento, eram adicionados de um a dois bilhões de novos registros.
Diante da confirmação da invasão da privacidade de milhões de pessoas e do desrespeito à liberdade de expressão, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, simplesmente declarou que “não dá pra ter 100% de segurança e 100% de privacidade”.
O controle que os Estados Unidos têm sobre a internet desmente a propaganda de que a rede é um “espaço democrático”, de “livre acesso” e onde “todos podem expor suas opiniões livremente”. O que há, de fato, é uma ampla ditadura. Quando alguém resolve enfrentar seus interesses é imediatamente criminalizado, como provam os casos de Bradley Manning, o soldado estadunidense acusado de ter vazado o maior número de documentos da história militar dos EUA, Julian Assange, fundador do site Wikileaks, que vive há mais de um ano refugiado na embaixada do Equador em Londres, e do próprio Edward Snowden. Nesta ditadura digital, dizer a verdade sobre como a burguesia controla, monitora, engana e domina a humanidade é um crime para o qual não há apelação.
Para os militantes e organizações populares e de esquerda que lutam pela transformação revolucionária da sociedade não pode haver dúvidas em relação aos limites da democracia burguesa e à importância de se manter sempre atentos em relação à vigilância dos órgãos de repressão do Estado.
Heron Barroso,
militante do PCR