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terça-feira, 15 de outubro de 2024

Aquino de Bragança: é preciso sonhar

Samora Machel
Samora Machel

A escolha por inaugurar a Coleção Clássicos da Série Brasil & África com uma coletânea de escritos de Aquino de Bragança, produzidos entre os anos de 1980 e 1986, possui uma forte carga de simbolismo político. Nascido em 6 de abril de 1924, em Goa, quando essa ainda era uma colônia portuguesa na Índia, Tomaz Aquino Messias de Bragança foi uma das principais lideranças políticas e intelectuais da luta anticolonialista travada no continente africano, em particular nas colônias que formavam o Império português na África.

Integrante do núcleo inicial que criou, em abril de 1961, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas (CONCP), Aquino de Bragança fez parte de uma geração que esteve organicamente vinculada ao processo de independência de: Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Cabo Verde – geração essa composta por nomes como Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Samora Machel, Marcelino dos Santos, Amílcar Cabral, entre outros.

Físico de formação, em função da sua militância política, Aquino de Bragança tornar-se-ia reconhecido internacionalmente como jornalista e cientista social de formação marxista, razão que o levaria, mais tarde, em seguida à Independência de Moçambique, em 1975, a fundar e assumir a direção do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (CEA/UEM), com o objetivo de dar vida a um centro de pesquisa que desse sustentação acadêmico-intelectual ao esforço de construção da recém-criada nação moçambicana. Isso, pois tinha plena consciência do valor da reflexão intelectual para o processo revolucionário de transformação social.

Foi pensando na figura de Aquino de Bragança como alguém que desempenhou o papel de liderança revolucionária preocupado, ao mesmo tempo, com a função política do trabalho intelectual, que demarcamos cronologicamente a presente coletânea, situando-a entre dois acontecimentos ocorridos nos anos de 1980 e 1986.

No primeiro, dá-se a publicação do número inaugural da revista Estudos Moçambicanos, vinculada ao Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, revista dirigida pela socióloga sul-africana, Ruth First – também diretora de pesquisa do Centro a convite de Aquino de Bragança – que redigiu o seu Editorial de lançamento, aqui publicado no Anexo de número 1.

No segundo, ocorre o trágico acidente aéreo que tirou a vida de Aquino de Bragança, do presidente da então República Popular de Moçambique, Samora Machel, e outras mais de 30 pessoas, entre membros do staff presidencial e tripulantes que se encontravam, no fatídico 19 de outubro, a bordo do Tupolev 134, soviético, que despencou em Mbuzini, no lado sul-africano dos Montes Limbombos, próximo da fronteira com Moçambique, quando retornavam de uma reunião em Lusaka, capital da Zâmbia. Então, o sociólogo estadunidense, Immanuel Wallerstein, amigo e companheiro de lutas de Aquino de Bragança, num texto aqui publicado no Anexo de número 2, afirma: “Eles mataram o nosso Aquino”. Isso, da mesma maneira que, em 20 de janeiro de 1973, – quando o intelectual e líder da luta de libertação nacional de Cabo Verde e Guiné Bissau, Amilcar Cabral, é assassinado – Aquino de Bragança dissera a Immanuel Wallerstein: “Eles mataram o nosso Amílcar”.

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No primeiro texto da presente coletânea, O marxismo de Samora, publicado em 1980 na revista portuguesa Três Continentes, Aquino de Bragança centra a sua reflexão na ideia de que a estratégia levada a cabo pelo presidente Samora Machel para Moçambique independente deriva da inserção do marxismo como linha de força de um projeto de maior envergadura, a saber: um projeto revolucionário de caráter profundamente nacional.
Antes, porém, procura-se demonstrar de que forma tal projeto resultou vitorioso de uma disputa interna travada entre dois blocos de classe aliados, desde os primórdios da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), disputa esta que se acirra após o assassinato do seu fundador, Eduardo Mondlane, em 3 de fevereiro de 1969.

Na sequência, num artigo publicado no segundo número de Estudos Moçambicanos, no ano de 1981, de título Savimbi: itinerário de uma contrarrevolução, Aquino de Bragança denuncia o líder da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), Jonas Savimbi, como a personificação da coincidência completa entre agente e aliado do imperialismo. Savimbi e a UNITA nada mais fariam que emprestar os seus nomes a uma das inúmeras frentes de intervenção político-militar do regime sul-africano do Apartheid nos Estados independentes da África Austral.

Já em Reflexões sobre a dignidade de uma viagem, escrito com Antonio Souto, em 1982, para a revista Domingo, Aquino de Bragança sai em defesa do marxismo compreendido como um instrumento de reflexão crítica, afirmando ser esta a abordagem realizada pelo presidente moçambicano Samora Machel. Como corolário de tal visão, volta as suas baterias contra aqueles que transformam o marxismo numa religião, uma espécie de marxismo institucionalizado, capaz de dar origem a religiões de Estado que não fazem mais que instrumentalizar os seres humanos.

Seguindo a mesma direção, na entrevista concedida no ano de 1983 ao semanário português O Jornal intitulada Amílcar Cabral tem dimensão universal, Aquino de Bragança sai em defesa da ideia de que “sonhar é preciso” (frase que dá nome ao presente livro), mostrando como o líder da libertação nacional de Cabo Verde e Guiné Bissau sonhou derrubar o império colonial português na África, mantendo-se afastado do dogmatismo. Um sonho concretizado com a ajuda inestimável de um intelectual que fez a assimilação crítica do pensamento marxista, pois Amílcar Cabral não era um pensador de sistema fechado, mas sim alguém que buscava no marxismo um meio de se encontrar instrumentos de análise que pavimentassem criticamente a estrada do sonho necessário da libertação dos povos oprimidos e explorados.

Em 1984, junto com Bridget O’Laughlin, Aquino de Bragança redige um artigo que só viria a ser publicado em Estudos Moçambicanos, no seu nº 14 de 1996. Com o título de O trabalho de Ruth First no Centro de Estudos Africanos, os dois se debruçam sobre o Curso de Desenvolvimento oferecido no âmbito da Universidade Eduardo Mondlane naqueles anos concomitantemente conturbados politicamente e ainda plenos de esperança revolucionária.

Como foi dito acima, sob a direção de Aquino de Bragança, é dirigido a Ruth First – que à época lecionava Sociologia na Universidade de Durhan – o convite para que se tornasse diretora de investigação do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane. Aceito o convite, ato contínuo, nasce o Curso de Desenvolvimento, com o objetivo de “ensinar a investigação investigando” – um Curso organizado em termos coletivos, com trabalho de campo a ser realizado em meio ao mato.

De fato, Ruth First compartilhava com Aquino de Bragança a mesma concepção de trabalho acadêmico comprometido com a transformação social. Para ela, as pesquisas levadas a cabo no CEA/UEM deveriam confluir para a consolidação da revolução moçambicana, pensada, por sua vez, como um engajamento direto na libertação da sua África do Sul das garras do regime do Apartheid – o mesmo regime que a assassinou numa ação terrorista, por intermédio de uma carta-bomba, que dilacerou o seu corpo dentro da sua sala no Centro de Estudos Africanos, deixando o próprio Aquino de Bragança gravemente ferido, em 17 de agosto de 1982.

Então, o regime do Apartheid infligia “um golpe contra Moçambique e contra o movimento de libertação na África do Sul”, além de impactar gravemente os esforços acadêmicos desenvolvidos no Centro de Estudos Africanos, impacto de dimensões incomensuráveis, que se repetiria em 19 de outubro de 1986, com a morte do próprio Aquino de Bragança, outra vez mais, num ato que envolveu os serviços secretos sul-africanos.

No ano de 1985, em artigo pulicado na Estudos Moçambicanos, nº 5/6, intitulado Independência sem descolonização: a transferência do poder em Moçambique (1974-1975) – Notas sobre seus antecedentes, Aquino de Bragança discorre acerca da vitória do projeto da FRELIMO de que a descolonização de Moçambique era uma condição prévia ao processo de democratização, e não o contrário. Em outras palavras, um projeto de independência sem descolonização e sem a imposição de um regime neocolonial. Um projeto contrário ao do General Antonio da Silva Spínola – novo detentor do poder em Lisboa, após a Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974 –, que se fundamentava na ideia de que, antes de tudo mais, fazia-se necessário democratizar Portugal a fim de descolonizar Moçambique, descolonização esta compreendida como a imposição de uma ordem neocolonial no Moçambique independente do futuro.

Encerrando a presente coletânea, num artigo escrito a 4 mãos com Jacques Depelchin, também publicado no nº 5/6 de Estudos Moçambicanos, de 1986, sob o título de Da idealização da FRELIMO à compreensão da história de Moçambique, Aquino de Bragança procura problematizar o processo revolucionário liderado pela FRELIMO durante os anos de luta armada de libertação nacional, com vistas a demonstrar a possibilidade/necessidade de reconstruir a análise da própria história da FRELIMO e de Moçambique, como fundamento para a visualização mais correta das contradições existentes em meados dos anos 1980 na Frente e no País.

Originária da vitoriosa Independência de Moçambique ocorrida em 1975, a versão duramente combatida no presente artigo tem a sua base de sustentação na “ideia de que a história da luta pela independência nacional pode, no essencial, ser reduzida à história da FRELIMO”.

Polemizando com Joseph Hanlon e John Saul, é feita uma severa crítica à história de caráter teleológico que localiza “a prova da vitória na própria vitória”, sem preocupar-se com os “problemas pendentes” da vitoriosa luta armada, isto é, “o conteúdo, os limites e as contradições da vitória” – atitude responsável por dar forma a um outro tipo de história, crítica e construtiva, avessa ao “paternalismo acadêmico e ao triunfalismo cego”, característicos de uma espécie de “história-propaganda” que não tem outra utilidade a não ser aquela de se limitar à “função de contra-ideologia” diante do discurso também ideológico da direita.

Resumidamente, faz-se, então, uma crítica áspera à “idealização da FRELIMO”, a uma “história oficial que é, ao mesmo tempo, autojustificativa”, uma história que evita confrontar-se com as contradições existentes no seio da sociedade, uma história, em suma, que procura estudar “a tensão entre um ideal e uma realidade às vezes tão afastada do ideal”.

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“Homem totalmente politizado” que trazia consigo apenas o gramsciano “otimismo da vontade”, nas palavras de Immanuel Wallerstein, Aquino de Bragança teria desempenhado “três diferentes papéis políticos” no curso da sua vida: militante, diplomata e revolucionário. Na presente coletânea, não há dúvidas de que essas três dimensões políticas se fazem presentes em inúmeros momentos. Além disso, junto a tais características políticas, muito já foi dito acerca da generosidade, da ausência de arrogância, que marcava a forma de ser e de agir de Aquino de Bragança nas relações pessoais com aqueles que o cercavam. Assim, como não concluir a presente introdução, sem sublinhar a falta que fazem, nesses nossos tempos sombrios, personalidades políticas como a de Aquino de Bragança: intelectual, generoso, comprometido com a transformação social.

Antes, porém, resta dizer que o presente volume apenas inaugura uma Coleção que tem a pretensão de trazer aos leitores brasileiros uma série de obras de pensadores africanos clássicos da mesma estirpe de Aquino de Bragança – infelizmente, pouco conhecidos entre nós – que marcaram uma época singularmente rica em termos de experiência histórica: anos em que o sonho da libertação nacional confundia-se com o da transformação revolucionária de uma infame ordem social e econômica, um período histórico que merece permanecer presente na memória de todas aquelas pessoas que ainda nutrem a esperança de que um outro mundo é possível, pois, mais do que nunca, sonhar continua a ser preciso.

Marco Mondaini

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