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domingo, 22 de dezembro de 2024

Heitor Scalambrini: “A água foi transformada numa mercadoria”

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Prof. Heitor Scalambrini
Prof. Heitor Scalambrini

Em entrevista exclusiva ao jornal A Verdade, o Dr. Heitor Scalambrini Costa, professor associado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Ciências e Tecnologias Nucleares pela UFPE e doutor em Energética pela Universidade de Marselha/Comissariado de Energia Atômica (CEA)/França, alerta que “a seca em São Paulo e no Nordeste e as enchentes na Amazônia são um aviso prévio do que está por vir. Tudo corrobora para mostrar que estamos vivenciando apenas os primeiros sintomas de uma crise”. O professor afirma ainda que a privatização das empresas públicas transformou a água numa mercadoria e, em vez de prestarem um serviço público, essas empresas passaram a trabalhar para dar lucro aos acionistas e que no Nordeste “A indústria da seca e o coronelismo ainda resistem à custa de tantas vidas perdidas”.

Redação 

A Verdade – Existe uma crise hídrica no Brasil?

Heitor Scalambrini Costa – Dois terços da superfície do planeta Terra são ocupados pela água. Entretanto, 98% são águas salgadas. O Brasil tem uma posição privilegiada no mundo em relação à disponibilidade de recursos hídricos, pois 12% da água potável disponível no planeta estão em nosso país. Mal distribuída, certamente: 72% estão na Região Amazônica; 19% no Centro-Oeste; 6% no Sul e Sudeste; e apenas 3% no Nordeste.

Falar em crise hídrica significa dizer que existe deficiência de chuvas e mais os impactos que não dependem do clima. A falta de chuvas é um fenômeno meteorológico conhecido como bloqueio, que é como se fosse uma bolha de ar quente em que a umidade que vem da Amazônia não consegue entrar. Então, chove no Sul, chove no Oeste da Amazônia, mas como consequência do bloqueio, nós temos essa situação de falta de chuvas em São Paulo e em outras partes do país, que basicamente se estendeu por todo o verão de 2014.

Foi aí que começou o problema: faltou água em 2014 e já começamos 2015 com déficit. A ideia era que este ano chovesse normalmente e isso não está acontecendo. É um fenômeno meteorológico deflagrador, mas a gravidade da crise já depende de outros fatores que vão além das questões meteorológicas.

O clima é responsável por parte da disponibilidade dessa água. O ciclo anual das chuvas e de vazões no Brasil varia entre as bacias e, de fato, a variabilidade interanual do clima, associada aos fenômenos de El Niño, La Niña, ou à variabilidade na temperatura da superfície do Atlântico Tropical e Sul podem gerar anomalias climáticas. São essas anomalias que têm levantado grande preocupação entre cientistas, políticos, meios midiáticos e a população em geral.

Que as mudanças no clima impactam, acredito que não existem dúvidas, todavia ainda não se tem uma figura clara e certa desses impactos na distribuição espacial e temporal do recurso água no país, no continente.

Não devemos nos esquecer nem negligenciar o papel da Amazônia como reguladora e fonte de umidade. Parte da umidade daquela região vai para o Sudeste, para o Sul e outras áreas. Se tirarmos a Amazônia, perdemos uma das fontes de água para o Sudeste. O volume de água que saiu da Amazônia, tanto pela mudança do padrão climático global quanto pelo desmatamento verificado na região, diminuiu o volume de água disponibilizado pelo funcionamento da floresta. Junte-se a isso o mau planejamento das cidades, a ausência de áreas protegidas que garantam a captura desse recurso e a melhora na resiliência (capacidade de se adaptar ou evoluir positivamente na adversidade) do ambiente.

 Os impactos que não dependem do clima contribuem substancialmente para a atual crise de abastecimento, que não é um problema exclusivo da maior cidade brasileira. Tanto que, enquanto só se falava em São Paulo, os níveis dos reservatórios do Rio de Janeiro estavam ainda piores. Agora, Belo Horizonte também já sinalizou idêntica dificuldade.

 A proteção das florestas nativas nas regiões de mananciais e nas margens dos rios e reservatórios é essencial para a produção de água. Sem cobertura florestal, a água não consegue penetrar corretamente nos lençóis freáticos, causando diminuição na quantidade de água.

O que estamos vendo no Brasil, hoje, é apenas um aviso prévio do que está por vir, considerando a seca em São Paulo e no Nordeste, e as enchentes na Amazônia. Temos evidências mais do que suficientes, e tudo corrobora para mostrar que estamos vivenciando apenas os primeiros sintomas de uma crise. A melhor coisa que se pode fazer é utilizar a ciência para, a partir dela, tomar as decisões.

A privatização de várias companhias de água e de abastecimento agravou essa situação?

No caso de São Paulo, a falta de água não pode ser atribuída exclusivamente à ausência de chuvas no último período. A principal causa do esvaziamento do sistema Cantareira, maior reservatório da região metropolitana, foi a falta de investimentos do Governo do Estado na ampliação de novos mananciais. Estiagens são comuns em outros países e nem por isso a população fica sem água potável nas torneiras. O que está acontecendo em São Paulo acontece em qualquer lugar do mundo. Faz parte do ciclo hidrológico. A chuva não é a culpada. O problema é que o sistema de abastecimento de água tem de ter a capacidade de suprir essa variação na precipitação, e isso não ocorreu aqui.

O governo não investiu na ampliação de mananciais, que são os mesmos de 30 anos atrás. Nesse período, a população cresceu em 10 milhões de pessoas (saltou de 12 milhões para 22 milhões). Os mananciais existentes não são capazes de atender a essa demanda. Essa é a grande causa da falta de água em São Paulo. A falta de investimentos na ampliação de novos mananciais tem explicação. O objetivo da empresa que deveria cuidar da distribuição de água, coleta e tratamento dos esgotos, a Sabesp, mudou. Ela deixou de se preocupar com água e saneamento básico. Houve uma intensificação na mercantilização da água a partir da abertura do capital da Sabesp na bolsa de valores. Agora o objetivo da empresa é dar lucro aos acionistas. E eles não querem abrir mão do lucro para fazer os investimentos necessários, por exemplo, na ampliação dos mananciais.

 Apesar de não ter sido privatizada nos moldes tradicionais, na prática a Sabesp deixou de ser pública. Em 2000, a companhia teve inclusive seu capital acionário aberto na bolsa de Nova Iorque. Com a abertura do capital, a companhia virou um balcão de negócios, só se preocupando com o lucro dos acionistas, que estão muito satisfeitos.

Com faturamento anual na casa dos R$ 10 bilhões e lucro líquido em torno de R$ 2 bilhões, a Sabesp tem repassado anualmente a seus acionistas aproximadamente R$ 500 milhões.

O valor cobrado aos usuários pela Sabesp é uma das contas de água mais caras do mundo. Isso, mais uma vez, é para dar lucro aos acionistas. O aumento da tarifa e a fantástica distribuição dos lucros nas bolsas são consequências da privatização do interesse público. O resultado de uma empresa de água deveria ser medido pelo serviço que presta à população e não pelo lucro que gera a seus acionistas. Empresa de água tem de ser pública.

O caso emblemático da Sabesp pode ser estendido a outras empresas que seguiram o mesmo caminho, transformando a água numa commodity (mercadoria). No caso específico, a Sabesp não está voltada a entregar um serviço de qualidade, e aí os exemplos são muitos, pois negligencia o saneamento, que polui o rio Tietê; utiliza tecnologias obsoletas no tratamento de água (usa altas doses de cloro); e no abastecimento, pouco investe no aumento do sistema de captação.

  A Sabesp menosprezou a situação e se preocupou mais com o lucro dos acionistas?

O que acontece com o Estado de São Paulo na questão da água é um exemplo do que pode acontecer em outros estados e cidades brasileiras, segundo dados recentes publicados pela Agência Nacional de Águas (ANA). Portanto, aprender e tirar lições deste episódio poderá ajudar os gestores públicos e a sociedade a não repetirem os erros que foram cometidos, e a conviverem melhor com uma situação que veio para ficar.

A Sabesp, que administra a coleta, o tratamento, a distribuição de água, e também o tratamento dos esgotos, é uma das maiores empresas de saneamento do mundo, e uma das mais preparadas do Brasil – com um corpo técnico altamente qualificado, e dispondo de uma boa infraestrutura. Assim, pode-se afirmar, sem dúvida, que a causa principal de tamanha incompetência foi a sua administração voltada ao mercado, voltada ao lucro, que trata a água, bem essencial à vida, como uma mera mercadoria.

Em 1994, a Sabesp tornou-se uma empresa de capital misto, com a justificativa de que, vendendo parte de suas ações, conseguiria mais recursos financeiros para investir nos sistemas de abastecimento de água e de saneamento. Depois de 21 anos, o controle acionário se encontra nas mãos do Estado, que detém 50,3% das ações (metade negociada na BMF/ Bovespa, e a outra metade na bolsa de Nova Iorque), ficando os 49,7% restantes com investidores brasileiros (25,5%) e estrangeiros (24,2%).

Para ilustrar a ganância da Sabesp e a sede em atender aos interesses de seus acionistas, somente neste primeiro semestre de 2015 dois aumentos consecutivos já foram impostos na conta mensal dos consumidores. Os acionistas da empresa em Nova Iorque são insaciáveis.

 Como denunciado largamente, o governo paulista dá descontos para grandes empresas e promete obras de transposição de bacias em regime de urgência para acumular atrasos em sequência. Os mananciais seguem poluídos, desmatados e cada dia mais secos. Enquanto isso, as escolas públicas de São Paulo pagam mais pela água que consomem do que empresas privadas signatárias de contratos de demanda firme com a Sabesp (http://goo.gl/O3LX8D). Enquanto as escolas estaduais pagam R$ 12,08 por metro cúbico de água, a Uninove, por exemplo, paga R$ 8,71, e o Colégio São Luís paga R$ 6,89 (para comparar com instituições de ensino privadas) (http://goo.gl/nxXWpc).

Mas, apesar de pagar mais caro, algumas escolas públicas às vezes ficam sem água.

Por que o Nordeste continua sofrendo com a seca?

Os impactos decorrentes das mudanças climáticas deverão provocar alterações na quantidade e na qualidade dos recursos hídricos. Em relação à quantidade, estudos realizados demonstram que a demanda por água tende a aumentar, enquanto a disponibilidade hídrica tende a diminuir, principalmente nas regiões de baixas latitudes, como é caso do Semiárido brasileiro. Portanto, a situação desse território tende a piorar em termos de disponibilidade de água. Sem dúvida, é uma das regiões mais vulneráveis às mudanças climáticas.

Heitor Scalambrini Costa – A atual seca, que atinge pouco mais de 15% do território brasileiro, não é comum, e é a pior do Nordeste nas últimas cinco décadas. Assim como a seca atual, outras também marcaram a história do povo nordestino. As mais famosas foram as de 1983/84, 1935 e 1887, que provocaram a morte de quase 500 mil nordestinos.

A fome, a sede e as perdas agrícolas enfrentadas, anualmente, por quase 20 milhões de brasileiros que vivem no Semiárido nordestino poderiam ser evitadas se existisse um programa de abastecimento de água para a região. Todavia, a seca se repete ano a ano e tem causa natural. Daí não se pode combatê-la, e sim, conviver com ela. A carência de chuvas é típica de regiões semiáridas, e tem se intensificado pelos danos ambientais e a total desproteção do Rio São Francisco e de sua nascente, além do descontrole no uso da água na irrigação. São outras partes dessa equação desastrosa que traz tanto sofrimento e morte para as populações mais pobres.

A indústria da seca e o coronelismo ainda resistem à custa de tantas vidas perdidas. Sob novos nomes e novos programas, o que vemos é a continuação de um processo histórico com a perpetuação do sofrimento e da miséria a favor do lucro de alguns.

Em particular, neste contexto, vejamos o caso de Pernambuco. O Estado que tem se destacado pelos elevados índices de crescimento econômico e pela propaganda exacerbada mostrando uma administração estadual moderna, com uma gestão eficiente e diferenciada de seus governantes, esconde a incompetência e a falta de interesse e compromisso político para dar início ao fim do flagelo que atinge hoje 121 municípios (dos 185 existentes) que estão em situação de emergência. Segundo a assessoria de Comunicação Social da Casa Militar, existem 1.184.824 pernambucanos e pernambucanas (de uma população total próxima de 8 milhões) afetados pela estiagem. Dos 121 municípios atingidos, 59 são do Agreste, 56 do Sertão e 6 da Zona da Mata.

As medidas tomadas pelo Governo Federal são as mesmas de outros anos: liberação de recursos (que nunca chegam ao destino final), distribuição de cestas básicas, carros-pipas, etc., etc.… Quanto ao governo estadual, foram anunciadas medidas paliativas, populistas, verdadeiras “esmolas” comparadas aos investimentos públicos e privados de mais de R$ 50 bilhões que estão sendo feitos no Complexo de Suape. Infelizmente estes anúncios oficiais são insuficientes, pois faltam medidas de caráter definitivo. São “oportunistas” e contam com o apoio de lideranças de agricultores e representantes de organizações da sociedade civil cooptados, que se calam frente à tragédia recorrente, tornando-se verdadeiros cúmplices do massacre destas populações invisíveis aos olhos da sociedade

Por isso, uma certeza que existe é de que o fim definitivo do flagelo da seca só depende da mobilização popular. O uso da água como moeda de troca é histórico. A capitalização política da miséria nordestina foi exposta por Josué de Castro como “o Nordeste inventado”, na obra Geografia da Fome, de 1984.

A transposição do Rio São Francisco é a solução para a seca?

A integração do Rio São Francisco com outras bacias hidrográficas do Nordeste, segundo o Governo Federal, vai acabar com o problema da seca no Semiárido brasileiro. Este projeto, remanescente de uma ideia que surgiu na época do Império, visa o abastecimento de cerca de 12 milhões de pessoas no Nordeste Setentrional, com as águas do Rio São Francisco. Ele foi idealizado para retirar as águas do rio através de dois eixos (Norte e Leste), para abastecer as principais represas nordestinas e, a partir delas, as populações.

O Governo Federal declarava com ênfase que as obras seriam irreversíveis e que não havia negociação em torno da continuidade do projeto em si. Estudos do Ministério da Integração Nacional mostravam que a integração de bacias no Nordeste promoveria a igualdade de oportunidades para os brasileiros daquela região e que o projeto não tratava apenas de levar água para beber, mas de manter as atividades industriais, comerciais e agrícolas.

Por outro lado, vários estudos realizados contradiziam os argumentos federais. Por exemplo, o realizado pela organização não-governamental ambientalista WWF (World Wildlife Foundation) denominado Transposição de Água entre Bacias e Escassez. Com base na análise dos resultados de vários projetos de interligação de bacias hidrográficas no mundo, concluía que, em vez de solução, as transposições analisadas levaram inúmeros problemas tanto às bacias receptoras quanto às bacias doadoras das águas.

Também segundo o WWF, apenas 4% das águas retiradas da vazão do Rio São Francisco seriam usadas para atender ao consumo da população difusa – 26% iriam para o abastecimento urbano e industrial e os 70% restantes para a irrigação. Alertas de vários pesquisadores apontam para perdas na biodiversidade de peixes e fragmentação do que resta das matas nativas. Imaginar que grandes obras de engenharia podem resolver os problemas de escassez de água sem impactos ambientais e sociais bastante significativos é uma asneira desmedida.

O estudo demonstra claramente que obras de transposição são normalmente muito caras (no caso do São Francisco, o Tribunal de Contas da União já levantou vários questionamentos sobre o valor projetado das obras), além de trazerem grandes impactos para o meio ambiente, comprometendo o fluxo dos rios, a própria capacidade dos cursos d’água e das bacias hidrográficas, que são as doadoras, e que por sua vez comprometem os usos múltiplos dessa água. Hoje, as obras estão praticamente paralisadas, com alguns trechos dos canais se estragando com o tempo, apresentando rachaduras.

Do ponto de vista dos custos, o orçamento do projeto da transposição não parou de crescer. No governo Sarney, ele foi dimensionado com um único eixo e tinha um orçamento estimado em cerca de R$ 2,5 bilhões. Na gestão Fernando Henrique, ganhou mais um eixo e o orçamento pulou para R$ 4,5 bilhões. No governo Lula, saltou para R$ 6,6 bilhões. E, agora, no governo Dilma, chegou aos R$ 8,3 bilhões. Como se trata de um projeto de médio a longo prazo, essa conta chegará facilmente à cifra dos R$ 20 bilhões nos próximos 25 a 30 anos.

Como solução ao problema de levar água às populações difusas, a do abastecimento urbano foi anunciada pelo próprio Governo Federal, através da Agência Nacional de Águas (ANA), ao editar, em dezembro de 2006, o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água. Nesse trabalho é possível, com menos da metade dos recursos previstos na transposição, o benefício de um número bem maior de pessoas. Ou seja, o projeto apontado pelo Atlas teria a real possibilidade de beneficiar 34 milhões de pessoas em municípios com mais de 5 mil habitantes.

Também a sociedade civil organizada mostrou o caminho de como abastecer as populações difusas em termos de acesso à água. Mostrou tecnologias apropriadas para este fim que estão sendo difundidas pela Articulação do Semiárido (ASA) por meio de cisternas rurais, barragens subterrâneas, barreiros, trincheiras, Programa Uma Terra e Duas Águas, mandalas etc.

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