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sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Percepções sobre a audiência de conciliação da Ocupação Lanceiros Negros

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A audiência de conciliação que ocorreu ontem, dia 29 de junho de 2016, no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), coloca a prova quem são os atores relevantes para a proposição de uma solução pacífica por meio do diálogo envolvendo os movimentos sociais e o governo do Estado do Rio Grande do Sul. Estavam presentes: a Ocupação Lanceiros Negros* coordenada pelo Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas (MLB), o Ministério Público (MP), a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) e o Demhab (vinculado à Prefeitura de Porto Alegre).

A audiência iniciou com a fala da Procuradoria Geral do Estado, que a princípio, conforme o acordado na última audiência realizada no dia 15 de junho, deveria apontar as possibilidades por parte do Estado para solução da ausência de moradia para as 70 famílias que compõem a Ocupação Lanceiros Negros. A fala é permeada de tons de comprometimento de lealdade com o movimento¸ no sentindo de alertar que o prédio ocupado estaria sendo destinado à Defesa Civil e teria ainda o impeditivo de ser tombado.

Em seu momento de fala, a advogada do movimento Elisa Torelly, coloca muito bem que se a PGE pretende se pautar pelo princípio da lealdade, isto deveria se reproduzir também para as informações trazidas na audiência, como, por exemplo, a comprovação documental acerca da atual situação do prédio. De acordo com as informações obtidas junto ao Departamento de Administração e Patrimônio do Estado (Deape) e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae), o edifício não é tombado. Ademais, o atual processo de destinação do bem só foi aberto no dia 07/01/2016, data posterior a ocupação no dia 14 de novembro de 2015. Outra informação equivocada é relativa a destinação, pois conforme a PGE alegou, a Defesa Civil seria alocada para o prédio, já que estaria localizada em local alugado, onerando os cofres públicos, no entanto, consta documentalmente que a destinação é para o Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS.

Além disso, o advogado do movimento, Diogo Silveira dos Santos complementou dizendo que os próprios documentos juntados pelo Estado ao processo são no sentido de não haver interesse de nenhuma secretaria consultada em ocupar o predial. A PGE defende-se alegando que o mesmo é inventariado, enfatizando que isso é quase a mesma coisa que ser tombado, porém são figuras completamente distintas, sendo a primeira um ato administrativo e a segunda uma figura prevista juridicamente. O tombamento, neste caso, foi o argumento levantado como empecilho para o governo do Estado assumir qualquer avanço nas tratativas de permanência das famílias no local, sob a alegação de onerosidade aos cofres públicos e necessidade de preservação do mesmo. Diante desta linha argumentativa, o movimento apresentou a Ata da Reunião da Mesa de Diálogo e Negociação Permanente com Ocupações Urbanas e Rurais e outros Grupos Envolvidos em Conflitos Socioambientais e Fundiários, referente a cedência pelo Estado de Minas Gerais de prédio tombado para ser tornar Casa de Referência para Mulheres em situação de violência Tina Martins. O caso referido pelos representantes do movimento exemplifica que mesmo um prédio tombado, o que não é o caso do edifício ocupado pela Lanceiros Negros, pode sim, receber outras destinações, como seria o caso da Casa de Acolhimento proposta pelo MLB.

Em relação ao projeto da Casa de Acolhimento para famílias em situação de vulnerabilidade social, o governo do Estado passou a alegar que um iniciativa nesse sentido teria que ser demandada pelo município, sendo a mesma rechaçada pelo DEMHAB, sem nem ao menos a terem analisado, alegando que as casas de passagem são um problema atualmente para o Município, portanto, não seriam uma solução viável para esse caso.

No que diz respeito a isso, como que uma Secretaria de Município decide uma política pública sem consultar o Gestor Municipal? Ademais, questionada pela juíza, a procuradora do Município se compromete a levar a questão para discussão, mas salienta: “sem grandes expectativas”, quando então, a juíza coloca que aquele não é um espaço de promessas.

Num segundo momento, quando o movimento é questionado sobre a entrega do cadastro de todos os moradores da Ocupação, é feita a entrega de um relatório das 70 famílias, onde constam as iniciais da/o responsável, o sexo, a idade, o estado civil, o número de filhos e a origem, conforme solicitado na audiência de conciliação anterior, porém, sem apresentar o nome completo das pessoas, para evitar qualquer tipo de arbitrariedade por parte do Estado ou mesmo a criminalização dos ocupantes. Em que pese existam fundados receios neste sentido, conforme apontado pela advogada do movimento com base no Relatório da Comissão constituída pela Resolução nº 08/2008, visando apurar tentativas de criminalização de movimentos sociais, a partir de iniciativas do Ministério Público Estadual, decisões do Poder Judiciário Gaúcho, e ações da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, apontando soluções no sentido de garantir o respeito aos direitos civis e às liberdades públicas”, no qual foi comprovada a perseguição de lideranças por parte do Estado,  os mesmos não foram compreendidos pelas autoridades presentes, gerando constrangimentos no diálogo. O MP defendeu então, já que não houve proposta do Estado e a juíza encaminhou a conciliação para uma individualização da resolução da ausência de moradia das famílias, que o cadastro deve ser feito pelo DEMHAB, tendo este destacado a importância desse cadastramento padrão do órgão.

Assim, questiona-se: por que tanta insistência por parte dos órgãos estatais de individualizar uma solução que foi construída coletivamente pelo movimento? É possível tratar um problema social de forma individual? Parece-nos que essa solução serve somente aos propósitos de manutenção dos interesses estatais, que estão de acordo com a estrutura de pobreza posta atualmente e entendem não haver problemas em redistribuir as famílias da Ocupação Lanceiros Negros para diferentes localidades, muitas vezes precárias, das quais muitas famílias já saíram por não terem condições adequadas de permanência, de habitação, acesso à educação e à saúde, direitos sociais básicos resguardados na Ocupação Lanceiros Negros, conforme afirmado pelo Ministério Pública na primeira audiência de conciliação. Essas famílias, são as mesmas que perderam seus filhos para a guerra do tráfico, seus pertences para os eventos climáticos, como temporais e alagamentos, que precisavam pegar dois ou três ônibus para acessar seus locais de trabalho, mas, isso tudo não parece ser um problema para o governo do Estado detentor do poder político.

Ao final, quando a Procuradoria Geral do Estado foi questionada sobre a possibilidade de haver outros imóveis disponíveis no Estado para uma permuta com o atual predial que a Ocupação utiliza, a mesma informa a existência de 6 mil imóveis estatais sem uso, mas que serão então leiloados para a arrecadação de recursos para a construção de presídios. Nisso, fica evidente o viés fascista desse Estado, que não tem recursos para a habitação social, mas visa arrecadar para construir presídios.

O que se evidenciou dessa segunda audiência de conciliação, é que apesar de termos um discurso hegemônico em defesa de democracia e da participação cidadã, os quais nenhum governo representativo tem coragem de negar, os atores sociais não são relevantes para a formulação de políticas públicas. O próprio governo do Estado do Rio Grande do Sul, o qual se intitula de “todos pelo Rio Grande”, não considera o movimento social propositivo, como parte do “todos”, pois é mais fácil simplesmente propor políticas verticais, sem dialogar com as bases. Nessa linha, o que inicialmente se apresentou como a ausência de uma política pública de transição para dar conta da espera dos cidadãos para terem acesso às políticas de habitação já existentes, se transformou na política do governo. O mesmo governo do Estado que não tem interesse em ouvir o cidadão e muito menos que ele seja propositivo, como a Ocupação Lanceiros Negros tentou ser, apresentando um projeto de Casa de Acolhimento. A ausência de uma política pública para sanar essa demanda é uma opção de governo, que escolhe deixar o cidadão vulnerável ao invés de garantir seu direito à moradia digna.

Falar em Estado Democrático de Direito é fácil, propor instrumentos de participação popular meramente consultivos também, o problema surge quando a base quer efetivamente participar das decisões públicas, garantir sua cidadania e ter voz. Participar, etimologicamente, vem de fazer parte, tomar parte ou ter parte. Segundo Bordenave (1983): “participação não é somente um instrumento para a solução de problema mas, sobretudo, uma necessidade humana fundamental do ser humano”.

Na audiência do Cejusc hoje, vimos claramente que para o governo do Estado do Rio Grande do Sul, as 70 famílias da Ocupação Lanceiros Negros não são atores relevantes, já que não tiveram a chance de solucionar o problema de moradia digna e muito menos de exercer seu direito à participação sendo propositores de uma política pública, afinal, parece que o governo do Estado, único ator capacitado para decidir o destino de um imóvel público, portanto do povo, abandonado há 12 anos, já decidiu o que é melhor para as famílias que estão ocupando, sem nem ao menos, consultá-las.

Cláucia Piccoli Faganello, pesquisadora nas áreas de Estado, Democracia e Administração Pública. Integrante do Comitê de Apoio à Ocupação Lanceiros Negros, com a colaboração de Íris Pereira Guedes, militante do Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas (MLB)

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