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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Jovens pobres são vítimas do tráfico e da Polícia

ana-paula-e-fatimaA Verdade entrevistou Ana Paula Oliveira e Fátima dos Santos Pinho, moradoras da favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, cujos filhos foram covardemente assassinados por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). As duas se conheceram num momento de tristeza, durante a missa de sétimo dia de Jonathan, filho de Ana Paula, 39 anos, mãe de dois filhos, pedagoga, nascida e criada em Manguinhos. Sua via crucis começou em 2013, quando ela e sua família foram removidas por conta de obras do Plano de Aceleração de Crescimento (PAC). Porém, o pior estava por acontecer. No dia 14 de maio de 2014, seu filho, na época com 19 anos, saiu de casa por volta das 15h30 para deixar a namorada em casa e um pavê na casa da avó e não voltou mais.

“Ele foi para a casa da avó lindo, sorridente, cheio de saúde, cheio de vontade de viver. Pegou o pavê, me deu um beijo, brincou comigo e foi. Nunca na minha vida iria imaginar que aquele seria o meu último momento com o meu filho”, conta Ana Paula.

“Saímos de casa juntos. Ele para a casa da avó, eu para o mercadinho, de onde escutei dois tiros. Logo em seguida me ligaram e falaram que o Jonathan havia sofrido um acidente. Larguei tudo no mercado e encontrei com a minha sogra, que contou que ele havia levado um tiro da polícia. O meu chão se abriu. Não estava acreditando. Algumas pessoas foram se aproximando e me amparando. Infelizmente, já fazia parte da rotina dos moradores socorrer a família das vítimas. Corri para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) achando que não tinha sido nada grave, que poderia ser um tiro de raspão, com uma grande esperança de que iria encontrar meu filho vivo. Quando cheguei na UPA vi as minhas duas irmãs chorando desesperadas, gritando, e fui logo perguntando ‘cadê o Jonathan? Quero ver meu filho, o que aconteceu com ele?’.

Meu cunhado foi ao meu encontro e diante do meu desespero disse para que eu tentasse me acalmar. Meu filho havia levado um tiro nas costas e não resistiu. Minha mente não filtrava, não segurava essa informação. Aquilo não estava acontecendo. Não conseguia acreditar que o meu filho tinha saído de casa e que alguém havia tirado a vida dele. Por qual motivo? Por que fizeram isso com meu filho? Não acreditava. Para mim era um pesadelo. Comecei a gritar que queria vê-lo, fui andando na direção da porta onde havia quatro policiais fazendo uma barreira para ninguém entrar. Vários familiares estavam chegando. Minha irmã me puxou num canto e disse: ‘A polícia matou o Jonathan. Ele não vai mais voltar para gente. Você é mãe dele e tem todo o direito de vê-lo. Não tem polícia naquela porta que vai segurar a gente’.

Eu não quis ver. Não estava acreditando naquilo. Falei: ‘não quero ver o meu filho, meu filho não está morto, é mentira isso, eu quero ver o meu filho vivo, do jeito que ele saiu da minha casa’. Comecei a gritar e chamar os policiais de assassinos. Depois disso só lembro que me tiraram da UPA, me trouxeram para casa e que fiquei no sofá sentada, acreditando que Jonathan a qualquer momento iria chegar e abrir um sorriso para mim. Várias pessoas foram chegando, menos o meu filho.”

“Desde a entrada da UPP é assim”

Quando o cunhado de Ana Paula foi à delegacia fazer o registro de ocorrência, os policiais da UPP estavam registrando o caso como “auto de resistência”. Fátima, que havia perdido um filho de 18 anos sete meses antes, foi testemunha: “Os policiais abordaram com violência os jovens que estavam na rua naquela tarde. Isso tinha virado rotina. Muitas das abordagens da polícia são feitas na paulada. Eles pegam os meninos e começam a bater do nada. Quando os moradores questionam essa atitude a polícia responde com balas de fuzil. Desde a entrada da UPP é assim”, afirma.

Segundo Fátima, os moradores não aceitam mais tanta violência. “Nesse dia, o pessoal começou a reagir com pedras jogadas de longe. Nenhuma acertou os policiais, que fizeram disparos para o alto. Quando os moradores começaram a correr para se proteger, um policial mirou e atirou na direção em que estava o meu filho, na porta da minha casa. Consegui salvá-lo. Foi então que os tiros atingiram as costas do filho da Ana Paula que estava passando pela rua naquela hora”.

De acordo com as investigações, o policial que assassinou Jonathan, Alessandro Marcelino de Souza, estava sendo acusado de triplo homicídio e duas tentativas de homicídio. Meses antes, num dia de folga, o PM levou cinco jovens da Baixada Fluminense para um terreno baldio, matou três, enquanto os outros dois sobreviveram. Apesar disso, continuou solto e trabalhando normalmente.

Impunidade

À época, o soldado negou a autoria dos disparos, comprovada posteriormente por um exame de balística. Em juízo, confessou que deu sete tiros. Ainda assim, permaneceu trabalhando na UPP de Manguinhos. “Achava um absurdo andar por onde moro e encontrar esse assassino. Foi quando entrei em contato com a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e ele foi transferido. Veja bem, é isso que eles fazem: transferem o problema de lugar”, conta Ana Paula, indignada.

A mãe lembra do filho com carinho: “Jonathan era alegre, festeiro. Mesmo quando eu puxava a orelha dele, dava uma bronca, com seu jeito alegre, brincalhão, conseguia me tirar um sorriso. Era querido por todos na favela. Jonathan era um ser iluminado. Ele foi um presente para mim, transformou a minha vida de todas as formas. Transformou com o seu nascimento e com a sua partida. Permanece sendo a minha luz, a minha estrela guia. Logo após a morte do Jonathan achava que não conseguiria viver. Hoje, olho para trás e já se passaram dois anos e três meses. Não sei como cheguei até aqui. O meu amor por ele é cada dia mais forte. Estou nessa luta pela dor e por muito amor”.

Do luto à luta

Ana Paula decidiu abraçar a luta contra a violência policial depois que assistiu a uma reportagem na TV sobre a morte do filho. “Apareceu uma foto dele e a jornalista falando ‘mais um jovem assassinado pela polícia em Manguinhos. Os policiais alegam que esse jovem estaria trocando tiros com a polícia’. Quando escutei essa mentira, senti uma dor dilacerando o meu corpo. Essa mídia estava matando o meu filho de novo”, relata. “Percebi que estavam tentando criminalizar o meu filho. Jonathan é uma vítima, ele não tem mais como se defender. Eu preciso ser a voz dele”.

Esse é o mesmo sentimento de Fátima dos Santos Pinho, 42 anos, mãe de nove filhos. Um deles, Paulo Roberto, que tinha apenas 18 anos quando foi assassinado pela polícia no dia 17 de outubro de 2013. Estava com quatros amigos na favela quando foi abordado, espancado e sufocado pelos policiais da UPP.

Fátima conta que Paulo Roberto esteve em instituições de reabilitação para jovens, mas era um bom rapaz. “O policial que o prendeu na Lapa foi trabalhar em Manguinhos, reconheceu ele e começou a persegui-lo”, explica. “Eu tinha uma banca onde vendia enfeite de cabelo, na entrada da favela do Jacaré, e os meus filhos mais velhos iam comigo para ajudar, enquanto os menores iam para eu tomar conta. Toda vez que o Paulo passava esse policial o abordava e o revistava. Teve um dia que ele estava comigo e queria dar a volta na favela para não encontrar esse policial. Eu disse: ‘você não vai fazer isso, já cumpriu o que devia preso, e esse policial não tem que ficar te cercando e fazendo isso. Você mora aqui’. O policial esbarrou com a gente e começou a insultar meu filho de gordo, ladrão, safado. A população começou a vaiá-lo. A partir daí a perseguição ao meu filho ficou mais agressiva. Até chegar ao assassinato dele, cometido por esse policial e mais outros catorze.”

Fátima relata o crime: “No dia 17 de outubro de 2013, ele passava pelo beco a caminho de casa com mais quatro amigos. Esse policial que o perseguia disse que meu filho tava mexendo com ele, o agarrou e começou a sessão de espancamento. Ele e outros policiais o sufocavam enquanto ameaçavam com os fuzis os outros meninos para que não saíssem dali para avisar a ninguém. Mesmo assim um deles conseguiu sair do cerco e foi me avisar. Quando cheguei, o beco estava cercado por policiais que não deixavam os moradores se aproximarem. Eu disse que iria passar porque o meu filho estava lá. O policial respondeu que não passava ninguém. Nesse momento ele empurrou minha filha, que estava comigo, passei por baixo do braço dele e fui ver meu filho”.

Muito emocionada, Fátima se lembra de quando viu Paulo Roberto no chão. “Eu peguei a cabeça dele e disse: ‘não faz isso comigo, não’. Ele deu dois suspiros e morreu. Fiquei atordoada, sem entender o que havia acontecido”. Os policiais chegaram a dizer que encontraram o garoto caído no beco e haviam chamado o Samu. Tudo mentira. “Corremos atrás de provar o que de fato havia ocorrido e foi comprovado que a morte foi provocada por espancamento e asfixia. O laudo também comprovou que meu filho não estava usando drogas, outra mentira usada pelos policiais”, denuncia Fátima.

Apenas cinco dos catorze policiais respondem a inquérito pelo crime. Todos permanecem na ativa. “Muitas vezes dá vontade de fazer uma loucura contra essas pessoas. É uma luta contínua e desigual”, desabafa. “Tenho que ter muita força de vontade para viver. Essa realidade das favelas tem que mudar”.

Violência contínua

Mesmo após esses crimes, a violência por parte de policiais da UPP continua nas favelas cariocas. “A gente, que mora na favela, presencia muitas cenas de violência. É difícil digerir. As balas têm direção. Não é bala perdida, como a mídia divulga”, afirma Fátima. “Outro dia os meninos estavam jogando futebol, quando eles (a polícia) chegaram aterrorizando. Muitos correram. O que estava apitando a partida falou que estavam apenas jogando bola. O policial mirou o fuzil na cabeça dele e perguntou do que estava reclamando. Atirou e ali mesmo o corpo tombou”, relata.

“O difícil não é criar nossos filhos na favela, porque isso aqui é uma família. Complicado é assistir a violência realizada por quem vem de fora com esse intuito. Educamos nossos filhos para prestarem atenção quando eles chegam, buscar refúgio, porque eles chegam atirando”, lamenta Ana Paula.

Solidariedade

Apesar da dor, Ana Paula e Fátima procuram incentivar outras mães a lutarem por justiça. “Temos consciência de que não somos só a voz dos nossos filhos. Também somos a voz de muitas mães que estão com problemas de saúde, que não têm condições às vezes de ter uma passagem de ônibus para participar de um ato, de uma audiência em apoio a outros familiares”.

“Essa luta não é só minha, da Fátima, das mães que perderam os seus filhos dessa forma; é de todo mundo. Todos têm a obrigação de estar nessa luta porque são vidas. Os pobres, moradores de favelas, têm o direito de viver. As mães pretas, das favelas, têm o direito de conviver com os seus filhos”, diz Ana Paula. Segundo ela, boa parte da sociedade não se interessa com o que acontece na favela. “Parece que essas notícias de assassinatos não causam tanto alarde. Veja o caso dos cinco jovens que foram executados com 111 tiros, em Costa Barros. Se não é a família a permanecer na luta para que essa memória continue viva, as pessoas esquecem. Acho que a sociedade tem uma parcela de culpa nesse extermínio que está acontecendo dentro da favela. Eles não vivem a nossa realidade, não acordam com o caveirão na porta de casa. Não são os filhos dessas pessoas que estão sendo executados pela polícia todos os dias”.

Fátima concorda: “São os jovens negros moradores da favela que estão sendo executados. Existe um racismo muito grande também por parte dessa mesma sociedade. É um genocídio porque é um povo que está sendo exterminado, porque é nas favelas, nas periferias, onde mora a grande maioria do povo pobre e preto. Enquanto houver esse pensamento e essa polícia que mata, não haverá paz”. E completa indignada: “É muita cara de pau ouvir o governador e o secretário de Segurança falarem que há uma guerra na favela, como se a droga não existisse também na zona sul, nos grandes condomínios, em todos os lugares. O tráfico precisa ser combatido na sua estrutura, que não está dentro das favelas. Todo mundo sabe disso”.

Sobre a possibilidade de justiça para seus filhos, Ana Paula e Fátima sabem onde estão pisando. “Todas as vítimas que tiveram uma investigação, que chegaram ao Tribunal de Justiça, foi porque as mães abriram a boca. Porém, essa justiça é seletiva. Os nossos filhos são julgados naquele tribunal como se fossem culpados pela própria morte. As perguntas dos promotores e juízes são para legitimar a ação da polícia. É revoltante”. Apesar disso, não esmorecem: “Acreditamos muito na nossa luta. Tudo o que foi conquistado foi dessa maneira. Então vamos em frente. Acreditamos que existem pessoas boas, acreditamos na humanidade”.

A injustiça da qual Ana Paula, Fátima e tantas outras mães são vítimas inundou a nossa alma de lágrimas. A dor da saudade dilacerou o peito dessas mulheres negras, trabalhadoras, moradoras da favela. São as nossas heroínas do dia-a-dia. Suas histórias de vida emocionam e fortalecem a decisão de permanecer na luta. Seus abraços nos trazem calor. Seus olhares nos mantêm em vigília.

Por Denise Maia, Rio de Janeiro

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