Há dois anos, em 10 de dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) publicou o relatório final de seus trabalhos sobre as violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar. Nele, reconhece a morte e/ou desaparecimento de 434 opositores, afirma que a tortura ainda é uma prática comum no país e recomenda ao Estado brasileiro um conjunto de 29 iniciativas e reformas para aperfeiçoar nossa democracia e impedir a repetição de tais crimes. Passado esse tempo, é necessário fazer um balanço do que mudou desde então e quais são os desafios da luta por memória, verdade e justiça no Brasil.
Recomendações da CNV
O relatório da CNV contém 4.328 páginas, divididas em três volumes. No primeiro, são expostas a estrutura da repressão, as cadeias de comando e os métodos e dinâmicas da violência do Estado contra os opositores do regime. O segundo volume trata das violações de direitos humanos contra segmentos sociais específicos (trabalhadores, camponeses, mulheres, estudantes etc.). Por fim, o terceiro traz um perfil dos mortos e desaparecidos políticos.
Para tanto, a comissão realizou ao todo 80 audiências públicas em 14 estados e ouviu 1.116 depoimentos. Também foram inspecionadas 11 instalações públicas reconhecidas por ex-presos políticos como “locais associados à prática de detenção ilegal, tortura, execução, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver” em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará.
Das 29 recomendações encaminhadas pela Comissão ao Governo Federal, 17 dizem respeito a mudanças institucionais, oito a reformas na Constituição e na legislação e quatro são medidas de seguimento das ações da CNV.
Entre essas recomendações estão propostas como a criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura, desmilitarização das polícias militares estaduais e revogação da Lei de Segurança Nacional.
A Comissão também propôs que as Forças Armadas reconheçam sua responsabilidade pelos crimes da ditadura e que a Justiça brasileira faça nova interpretação da Lei de Anistia e indicie criminalmente os agentes públicos acusados de sequestros, torturas, estupros, assassinatos e desaparecimento de presos políticos.
Limites do relatório
Comparado aos relatórios finais das comissões da verdade criadas em outros países, o relatório da comissão brasileira é, no mínimo, modesto, em especial na parte que trata das recomendações, que ocupa apenas 11 páginas do documento.
Além disso, diversos setores ligados à luta por memória, verdade e justiça criticaram a falta de transparência no trabalho da Comissão e a pouca participação da sociedade em seus trabalhos.
Críticas também surgiram em relação ao número de mortos e desaparecidos durante a ditadura contido no relatório, considerado subestimado. Segundo o antropólogo José Porfírio de Carvalho, somente entre os índios Waimiri-Aitroari foram mais de 1.100 mortos. “Morreram de doença e morreram à bala. E armado lá quem estava era o Exército”, afirma Carvalho.
Já para Gilney Viana, ex-coordenador do Projeto Memória e Verdade da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, a ditadura “terceirizou” mortes e desaparecimentos forçados de pelo menos 1.196 camponeses e apoiadores com financiamento do latifúndio. “O Estado se omitiu, acobertou e terceirizou a repressão política e social no campo, executada por jagunços, pistoleiros, capangas e capatazes a serviço de alguns fazendeiros, madeireiros, empresas rurais, grileiros e senhores de engenhos, castanhais e seringais”, afirma.
Avanços e retrocessos pós CNV
As recomendações apontadas pelo relatório final da CNV, se postas em prática, representariam um avanço nos direitos democráticos e um importante passo na construção de uma nova cultura política no país, de não tolerância com as violações aos direitos humanos ainda hoje praticadas, especialmente nas periferias.
Entretanto, o desmonte das políticas públicas voltadas à memória, verdade e justiça postas em prática pelo governo Temer dificulta ainda mais o cumprimento de grande parte das recomendações da Comissão da Verdade.
Desde que tomou posse na Presidência por meio de um golpe institucional, Temer tem esvaziado os órgãos voltados aos direitos humanos. Fato marcante desse desmonte foi a substituição de parte do Conselho da Comissão de Anistia sem a participação da sociedade civil, nomeando pessoas com posições políticas simpáticas à ditadura.
Outras recomendações fundamentais, como a desmilitarização das polícias militares estaduais e a revogação da Lei de Segurança Nacional, certamente não serão postas em prática pelo atual governo. Assim, no campo da Justiça, é improvável que o atual governo ilegítimo encaminhe propostas no sentido de que as Forças Armadas reconheçam sua responsabilidade pelos crimes cometidos na ditadura ou que o STF anule a anistia dos agentes públicos acusados de violações de direitos humanos após o golpe de 1964.
A luta não acabou
Diante disso, é preciso seguir lutando por memória, verdade e justiça. Bandeiras como Ditadura Nunca Mais, punição aos torturadores e desmilitarização da polícia militar precisam continuar hasteadas, pois são símbolos de um país que não curou as feridas de 21 anos de governo militar e que ainda hoje tolera a tortura e a violência policial contra a população mais pobre.
Atualmente, quando o fascismo levanta de novo a cabeça em vários países, entre eles o Brasil, e se torna uma ameaça, é dever de todos continuar a denunciar os crimes da ditadura e transmitir às jovens gerações que a liberdade conquistada significou enormes sacrifícios para milhares de brasileiros cuja memória deve ser honrada.
Heron Barroso, Rio de Janeiro
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