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sábado, 9 de novembro de 2024

As vítimas “invisíveis” da ditadura militar

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“(…) o chefe da CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada”. Essa foi a determinação dada pelo general Geisel, 15 dias depois de tomar posse, para o tratamento dos militantes que lutavam pelo fim da ditadura militar no Brasil (1964-1985), conforme demonstrou o documento da CIA divulgado recentemente pelo pesquisador Matias Spektor, do CPDOC/FGV.

Embora já se soubesse que as execuções eram uma política de Estado na ditadura, o documento desfaz a imagem de Geisel como o homem da abertura política e expõe sua concordância com a política de terror de Estado, marcante no governo de seu antecessor, General Médici.

A notícia trouxe de volta à arena pública a discussão sobre Justiça de Transição, ou seja, o conjunto de medidas que se toma depois de períodos de regimes autoritários ou conflitos marcados por violência e violações de direitos humanos. A retomada do tema é de fundamental importância, especialmente neste momento em que as tímidas conquistas democráticas que obtivemos até o momento estão sendo cada vez mais postas em cheque com a intensificação do uso dos dispositivos autoritários herdados da ditadura. O mais recente e grave exemplo disso foi o decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro. Com esta medida, atribuiu-se a um militar um cargo que, pela Constituição Federal de 1988, só poderia ser ocupado por um civil.

Diante disso, torna-se ainda mais importante o debate em torno da complicada transição que tivemos para aquilo que chamamos atualmente de democracia, tendo em vista a continuidade da violência de Estado e a perversa influência do poder econômico nos processos eleitorais.

O Brasil pós ditadura

A justiça de transição no Brasil tem passado por diversas etapas, de forma lenta e pontual: embora no governo Collor tenha havido uma primeira iniciativa no sentido de reparar pessoas demitidas de seus empregos por conta de perseguição política entre 1946 e 1988 (Decreto 611/1992), foi apenas com a lei 9.140/1995 que o Estado brasileiro reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas por terem participado ou sido acusadas de participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e assumiu sua responsabilidade na causa dessas mortes.

Também em 1995, os movimentos por memória, verdade e justiça em relação aos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura obtiveram duas importantes conquistas: a criação da Comissão Especial de Anistia, submetida ao Ministério do Trabalho, que, à semelhança do decreto de Collor, tratava da reparação de trabalhadores demitidos (Decreto 1.500/1995), e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que buscava evidenciar as circunstâncias das mortes e desaparecimentos promovidos por agentes do Estado. Posteriormente, uma nova iniciativa (Lei 10.559/2002) passou a prever, dentre outros elementos, a reparação econômica e o reconhecimento da condição de anistiados políticos às vítimas de violações durante a ditadura.

Mas foi apenas em 2011, por meio da Lei 12.528, que o Brasil instituiu sua Comissão Nacional da Verdade, com objetivo de dar luz aos crimes cometidos por agentes estatais e condições para que, mesmo com um atraso de mais de um quarto de século, se efetivasse uma justiça transicional no país. Os trabalhos da CNV foram marcados por uma preocupação com a identificação de situações nas quais houvesse a atuação de agentes do Estado em práticas de violência, visto que a base jurisdicional que orientava sua atuação estava muito focada na ideia de greves violações de direitos humanos.

Embora o texto da lei que criou a CNV mencione apenas de maneira breve quatro graves violações (morte, tortura, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver), a compreensão adotada na prática foi relativamente ampliada com base na jurisprudência de cortes internacionais e definiu por: a) detenção (ou prisão) ilegal ou arbitrária; b) tortura; c) execução sumária, arbitrária ou extrajudicial, e outras mortes imputadas ao Estado e d) desaparecimento forçado e ocultação de cadáver[1].

Tal perspectiva é compreensível do ponto de vista da necessidade de haver um critério claro na identificação das vítimas e dos responsáveis pelas violações. No entanto, tem por consequência a invisibilização de uma série de outras violências, mais difíceis de serem comprovadas. Boa parte delas, embora não sejam resultado da ação direta de agentes estatais, não teriam ocorrido sem uma participação indireta destes atores, como é o caso das diversas situações de conluio entre delegados policiais locais e latifundiários que garantiam a ação livre e impune de jagunços e pistoleiros nos territórios camponeses e indígenas, resultando na expulsão de suas terras ou, em caso contrário, na morte de muitos deles.

A violência da ditadura no campo

Um exemplo disso é o caso ocorrido em 1973, na Fazenda Campos Novos, município de Cabo Frio, no litoral fluminense. Ao ser acionado para prestar assistência e investigar um assassinato de um posseiro da fazenda, o delegado local afirmou ao repórter de jornal: “Naquela fazenda, todos os posseiros são comunistas e agitadores. Só vou lá armado até os dentes. A solução para aquilo lá é um avião americano soltar uma bomba atômica e acabar com aquele pessoal”[2].

A Comissão Camponesa da Verdade (CCV), iniciativa dos movimentos sociais do campo para subsidiar a CNV, em seu relatório final, também discutiu esse aspecto.

Um dos debates na CCV é sobre a concepção política do Estado como sujeito de violações de direitos. As discussões trouxeram à tona especificidades da questão camponesa e a necessidade de considerar, na atuação do Estado, não apenas aqueles casos e ações em que agentes estatais agiram como atores diretos, mas também situações de omissão, conluio, acobertamento, ou mesmo a “privatização da ação do Estado”, em que o latifúndio funcionou como um braço privado antes, durante e depois da ditadura civil-militar de 1964 (Relatório CCV, 2016, p. 23).

Essa mesma dificuldade se expressa na quantidade extremamente pequena de camponeses reconhecidos pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. De um total de pelo menos 1.196 camponeses e seus apoiadores mortos e desaparecidos entre 1961 e 1988, apenas 29 tiveram seus direitos reconhecidos pela Comissão[3].

Outro exemplo de situações desconhecidas é o fato de que nos momentos de fuga das perseguições, muitas pessoas se perderam de suas famílias e estão até hoje desaparecidas. É o caso de um grupo de camponeses que conseguiram escapar dos militares que estavam executando a Operação Mesopotâmia, em Imperatriz (MA), em 1971, ação do Exército que buscou reprimir as tentativas de formação de grupos de guerrilha rural na região do Bico do Papagaio, entre os Rios Tocantins e Araguaia.

Dentre esses desaparecidos estão Jorge e Josué Gomes dos Santos, irmãos mais novos de Sebastião Gomes dos Santos, morto por agentes das Forças Armadas em 1969 na Gleba Nova Ribeira, Papucaia, Cachoeiras de Macacu, quando o Exército realizou uma ação de repressão de outra tentativa de formação de grupo guerrilheiro. Os irmãos Jorge e Josué, migraram com os pais para Imperatriz (MA) logo após a morte de Sebastião. Nesse momento, Josué tinha cerca de 13 anos e Jorge, 9.

Estando na nova cidade, quando da prisão do pai Pedro e do tio Joair da Silva, em agosto de 1971, os irmãos conseguiram escapar. Junto a eles estava também Daniel Nunes, conhecido como Maninho, genro de Pedro Gomes dos Santos e cunhado de Jorge e Josué. Há outros exemplos em que as famílias se reencontraram depois de décadas, como foi o caso de João Sem-Terra, liderança camponesa do Rio Grande do Sul, e de Elizabeth Teixeira, líder das Ligas Camponesas da Paraíba.

Os indígenas “esquecidos”

Raiene Evangelista, Cachoeiras de Macacu

No caso das populações indígenas, como conta Marcelo Zelic[4], um dos pesquisadores que procuraram chamar atenção para a importância desse tema na Comissão Nacional da Verdade, esse tema só entrou na pauta em função de uma demanda dos próprios indígenas que cobraram a inclusão desse tema nos debates da justiça de transição. Havia uma resistência em inseri-los no rol das vítimas tendo em vista a compreensão de que as violências que sofreram não teriam sido motivadas por sua atuação política, de modo que não faria sentido a inclusão nos trabalhos da CNV.

Os povos originários, no entanto, sofreram as consequências de uma política desenvolvimentista responsável pelo extermínio de diversos povos indígenas. Calcula-se que pelo menos oito mil índios tenham sido mortos. Um dos caos mais conhecidos é o grupo Waimiri-Atroari, que, entre 1972 e 1977, teve seu território violado por três grandes empreendimentos: a construção da BR-174, que liga Manaus (capital do Estado do Amazonas) a Boa Vista (capital do Estado de Roraima), a instalação de uma mina de estanho e a implantação de uma usina hidrelétrica. Milhares deles foram mortos por se negarem a aceitar a política de “pacificação” proposta para a implementação de tais obras (BAINES, 1993).

A rodovia Transamazônica (BR-230) também teve consequências semelhantes. Tamanho foi o impacto da construção destas diversas estradas, que em 1973, bispos e padres da região assumiram o risco de se contrapor publicamente ao regime militar e escreveram um documento de denúncia intitulado Y-Juca-Pirama – o Índio: aquele que deve morrer. Da mesma forma, a nível internacional, intelectuais também realizaram eventos no sentido de denunciar tais violências.

Tais obras são desdobramentos do Plano de Integração Nacional (PIN), consolidado pelo Decreto n.º 1.106/70, que previa a criação da infraestrutura necessária para o povoamento das “áreas vazias” do país, sobretudo a região amazônica, com vistas ao povoamento das fronteiras para preservar a “soberania nacional”. Tal perspectiva estava aliada à Doutrina de Segurança Nacional, de cunho fortemente anti-comunista, que via como inimigo qualquer grupo social que representasse obstáculo à expansão do capitalismo no país.

A lei de 2002, que estabelece a indenização de vítimas de violência durante a ditadura, apenas prevê esse reconhecimento a quem for capaz de comprovar ter sido sofrido perseguição, o que exige uma série de conhecimentos acerca da burocracia do Estado, além da disponibilidade de arcar com os custos para tal. Camponeses, indígenas e operários, portanto, tem tido muito mais dificuldade de acessar a reparação tendo em vista esse conjunto de obstáculos.

Em tempos de crescimento do número de pessoas que passaram a ver no regime autoritário imposto pelos militares uma solução para os problemas políticos do país, torna-se ainda mais importante o esforço de relembrar os invisíveis da história, as violências que sofreram, os responsáveis por esses atos e suas motivações, a fim de evitarmos o risco de sermos novamente jogados numa ditadura.

Fabricio Teló, doutorando em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ

[1] O tema está melhor aprofundado no capítulo sete do Relatório da CNV intitulado “Quadro conceitual das graves violações”.

[2] Briga por terra em Cabo Frio tem mais um posseiro ferido. Jornal do Brasil, 05/03/1978.

[3] VIANA, Gilney (coord.). Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de transição. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013.

[4] Entrevista com Marcelo Zelic: sobre o Relatório Figueiredo, os indígenas na Comissão Nacional da Verdade e a defesa dos direitos humanos. In: Revista Mediações, v. 22 n. 2, p. 347-365, jul/dez. 2017.

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