A Comunidade Quilombola Braço Forte, localizada na fazenda Talismã, no município de Salto da Divisa, baixo Jequitinhonha, MG, reconhecida pela Fundação Cultural Palmares, está com ordem de despejo do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). No meio das 24 famílias da Comunidade estão crianças, idosos, pessoas doentes e deficientes. O Comandante do 44º BPM de Polícia Militar de Almenara, MG, Walter Aparecido Lago Ramos, convidou a Comunidade Quilombola para reunião hoje, dia 28 de junho de 2018, às 14 horas, na Câmara de Vereadores de Salto da Divisa, baixo Jequitinhonha, MG. A reunião é para preparar a reintegração de posse, isto é, despejo da Comunidade. Alertamos às autoridades e às forças vivas da sociedade que serão ilegalidade e injustiça gritantes despejar essa comunidade quilombola pelos motivos que seguem.
De forma apressada e cerceando o direito de defesa da Comunidade Quilombola Braço Forte, o juízo da Vara Agrária de Minas Gerais concedeu Liminar de Reintegração de Posse (processo n. 6091077-54.2015.8.13.0024) a favor dos fazendeiros herdeiros do espólio de Euler Cunha Peixoto. Entretanto, o desembargador Pedro Aleixo, da 16ª Câmara Cível do TJMG, dia 27 de abril de 2018, no processo n. 1.0000.16.001556-6/002, concedeu Efeito Suspensivo ao Agravo da Defensoria Pública e mandou suspender Liminar de reintegração que o juízo da Vara Agrária de Minas Gerais tinha concedido contra a Comunidade Quilombola Braço Forte, decisão contra o pleito do espólio de Euler da Cunha Peixoto.
Tese de doutorado defendida na UFMG atesta que “72,2% das terras do município de Salto da Divisa são presumivelmente terras públicas devolutas” (MOREIRA, 2017). Há sérios indícios de grilagem de terra na região. Apenas duas famílias – Cunha e Peixoto – controlam a quase totalidade das terras do município. Em Salto da Divisa atualmente são identificadas poucas comunidades rurais: o Assentamento Dom Luciano Mendes, o Assentamento Irmã Geraldinha (esses dois assentamentos são frutos da luta pela terra), a Comunidade Tradicional Agroextrativista e Artesã Cabeceira do Piabanha e a Comunidade Quilombola Braço Forte. Todas as outras comunidades rurais foram sufocadas pelo poderio dos latifundiários na região.
Detalhe: o que ameaça a comunidade Quilombola Braço Forte é o espólio de Euler Cunha Peixoto, mesma família.
No recurso Agravo, a defensoria Pública do estado de Minas Gerais sustenta que são evidentes “os prejuízos que o cumprimento de uma decisão de reintegração de posse pode causar a situações consolidadas, em litígios coletivos pela posse da terra, sejam eles urbanos ou rurais, antes que alternativas dignas de remoção seja garantidas para cumprimento da decisão.” A Defensoria Pública alegou também cerceamento de defesa ocorrido com o julgamento antecipado da lide, já que foi fornecida certificação pela Fundação Palmares em 05 de março de 2018. Aduz também que após sentença houve ingresso no feito da FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES (FCP), representada pela Procuradoria Federal em Minas Gerais, e que o procedimento é de competência federal, sendo, assim, por óbvia a incompetência da Justiça Estadual para decidir sobre conflito agrário e fundiário que envolve Comunidade Quilombola.
O art. 1.012, §4º, do Código de Processo Civil (CPC) diz que cabe efeito suspensivo em Liminar de reintegração quando se demonstrar a probabilidade de provimento do recurso ou se, sendo relevante a fundamentação, houver risco de dano grave ou de difícil reparação. Claro que se for cumprida a Liminar de reintegração, o dano vai ser gravíssimo e irreparável.
O desembargador Pedro Aleixo escreveu na decisão que conferia o Efeito Suspensivo: “a medida de remoção é drástica e dotada de irreversibilidade. Ante ao exposto, CONCEDO O EFEITO SUSPENSIVO ao recurso de Apelação, determinando o imediato ofício ao MM. Juiz a quo”.
Estranhamente, dia 24 de maio de 2018, o mesmo desembargador Pedro Aleixo voltou atrás e revogou o efeito suspensivo que ele mesmo tinha concedido, alegando para isso apenas o argumento do Espólio do latifundiário Euler da Cunha Peixoto que questiona a autodeclaração da Comunidade como Comunidade Quilombola. Isso é ilegalidade e injustiça gritantes. As 24 famílias da Comunidade Quilombola Braço Forte tiveram seu território ancestral expropriado por fazendeiros coronéis de Salto da Divisa, mas tomando consciência de seus direitos territoriais, fizeram retomada de seu território ancestral e reivindicam os seus direitos territoriais garantidos pela Constituição Federal, contidos no Artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988. Neste artigo, a Constituição reconhece os direitos territoriais das Comunidades Quilombolas e diz que o Estado Brasileiro é responsável pela titulação das terras das comunidades quilombolas, mesmo que estas terras estejam sob o poder de terceiros. Neste caso, a Comunidade Quilombola Braço Forte reivindica um Direito Constitucionalmente garantido. Tal direito foi regulamentado pelo Decreto Presidencial nº 4.887/2003, que consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
O § 1º do Decreto 4.887/2003 determina que a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. Portanto, cabe à comunidade afirmar se é ou não quilombola, tendo a Fundação Cultural Palmares, baseada em procedimentos legais, o dever de emitir o certificado à comunidade, o que já ocorreu com a Comunidade Quilombola Braço Forte.
Ao proferir seu voto a favor da constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003, ADI 3239/2004, a Ministra Rosa Weber (2015), do Supremo Tribunal Federal (STF) diz que “nesse contexto, a eleição do critério da autoatribuição não é arbitrária, tampouco desfundamentada ou viciada. Além de consistir em método autorizado pela antropologia contemporânea, estampa uma opção de política pública legitimada pela Carta da República, na medida em que visa à interrupção do processo de negação sistemática da própria identidade aos grupos marginalizados, este uma injustiça em si mesmo”.
Portanto, não nos resta dúvida de que a decisão judicial que contesta que a Comunidade Quilombola Braço Forte não é quilombola, está ferindo a legislação e fere o direito constitucional da Comunidade de se autodefinir como tal. Não cabe a juiz, nem a desembargador e nem a fazendeiro nenhum decidir se a comunidade é ou não quilombola. Cabe ressaltar que, caso tenha dúvida, se determinada comunidade tem ou não os direitos territoriais a que se pleiteiam, deve-se recorrer a meios estabelecidos pela legislação brasileira, ou seja, precisa-se solicitar a realização de Estudo Antropológico, o qual permitirá organizar elementos históricos do grupo tradicional, mas, sobretudo, apurar a relação territorial e as necessidades atuais da comunidade no que se refere ao manejo, à sobrevivência física, cultural e a sua sustentabilidade – garantindo assim os direitos constituídos nos âmbitos internacional e nacional. Também cabe destacar que a competência jurídica pelas comunidades quilombolas é da Justiça Federal e, assim sendo, não compete ao TJMG mandar ou não despejar a Comunidade Quilombola Braço Forte.
É necessário garantir o alcance do referido aparato jurídico, que tem por prerrogativa identificar e assegurar os direitos territoriais dessas comunidades, buscando combater arraigadas práticas de exclusão que, historicamente, incidem no dia a dia das comunidades quilombolas que em seus processos de lutas históricas vêm buscando o direito à dignidade humana.
Neste sentido, solicitamos ao Ministério Público Federal (MPF) arguir judicialmente a transferência do Processo para a Justiça Federal e defender a Comunidade Quilombola Braço Forte.
Solicitamos ao Coordenador da Mesa de Negociação do Governo de MG com as Ocupações e Comunidades Tradicionais, Tadeu Davi, que convoque reunião da Mesa de Negociação para tratar do Conflito Agrário e fundiário que envolve a Comunidade Quilombola Braço Forte.
Solicitamos também ao Governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, e ao Comando Militar da PM de MG que aguardem o processo de negociação para que justiça seja feita nesse conflito.
É inadmissível cumprir uma decisão judicial sem base jurídica e constitucional. Os direitos territoriais e todos os outros direitos das Comunidades Quilombolas precisam ser assegurados.
Assinam essa Nota Pública:
Coordenação da Comunidade Quilombola Braço Forte;
Comissão Pastoral da Terra (CPT/MG);
Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES);
Federação das Comunidades Quilombolas do estado de Minas Gerais.
Belo Horizonte, MG, 28 de junho de 2018.