As primeiras horas de ontem, (20/8), já sinalizavam para os 140 mil habitantes das favelas da Maré que aquele seria um dia bastante difícil. Por volta de 1h da madrugada, as Forças Armadas cercaram a comunidade. Fogos de artifícios foram disparados. Assustados, moradores que participavam de um pagode entraram em pânico. No meio da correria, algumas pessoas se machucaram. Isso era apenas o prenúncio do que estava por vir: uma ação marcada por homicídio, truculência e ilegalidade, que durou mais de 14 horas ininterruptamente, levando pânico, indignação, terror e perdas materiais a uma população cansada de ver seus direitos fundamentais desrespeitados.
Segundo relatos de moradores, a operação efetivamente (leia-se a invasão pelas forças policiais) começou por volta das 5h: apoiados pelo cinturão formado pelas Forças Armadas no entorno da Maré, policiais do 22° Batalhão, do Batalhão de Choque e do Batalhão de Operações Especiais (Bope) entraram nas favelas Nova Holanda, Parque Maré, Rubens Vaz e Parque União. Não se sabe, até momento, quantos policiais foram destacados para essas comunidades. É consenso, porém, que não foram poucos os que circulavam pelas ruas das favelas, a pé ou em carro blindado (Caveirão), abordando os moradores com truculência.
A equipe de plantão da Maré de Direitos recebeu, ao longo do dia, várias denúncias de violação de direitos, entre elas, o arrombamento de um carro e a invasão de duas casas, uma no Parque Maré; e outra na Nova Holanda. Em ambas as casas, a polícia não tinha mandado de busca e apreensão e deixou rastros de destruição, danificando móveis e eletrodomésticos. Na Nova Holanda, chegaram ao cúmulo de arremessar o cachorro da casa, um poodle, do terceiro andar. O animal sobreviveu.
O pior, no entanto, ainda estava por vir. Por volta das 18h, o plantão da Maré de Direitos recebeu uma ligação denunciando a tortura de quatro jovens no Campus Maré, onde ficam várias escolas da região. Mesmo em meio ao clima tenso, a equipe da Redes Da Maré partiu para o local. Lá, encontrou um grupo de 50 pessoas, a maioria mulheres e crianças, que discutiam com um policial. Eram parentes e amigos dos quatro jovens que se encontravam encurralados pela polícia em um beco, de onde não podiam ser vistos. A equipe, imediatamente, começou a mediar o conflito, conversando com o policial que estava de guarda, impedindo a entrada das pessoas no beco. “Comecei a conversar com o policial. E fiquei impressionada. Ele estava tão nervoso que não conseguia articular as palavras. Em determinado momento, ele disse: ‘a gente tá aqui desde as 4 horas da madrugada, de pé, sem comer, sem ir no banheiro, e essa gente vem aqui pra fazer tumulto. Como é que você quer que eu tenha calma?’”.
O clima continuava tenso, mas sob controle. A equipe se posicionou entre o policial e o grupo de moradores, fazendo um minicordão humano para evitar que os ânimos ficassem mais acirrados e buscando uma solução. Enquanto dialogava com o policial, um corpo, envolto em um cobertor cinza, foi trazido por cerca de 10 policiais. Ninguém teve dúvidas: um dos jovens morrera e seu corpo estava sendo levado para o Caveirão. As famílias presentes se desesperaram, começaram os gritos. Uma jovem furou o cordão humano: precisava saber a identidade do morto. Foi o estopim. Um policial apontou seu fuzil para o grupo e um segundo disparou tiros a esmo. O grupo se dispersou.
Os outros jovens encurralados saíram com vida do beco. De Belém, como era conhecido o jovem que foi morto, não tinha parentes na comunidade, na qual morava há pouco mais de um ano. Pouco se sabe sobre rapaz, inclusive sobre sua morte. O que se sabe, no entanto, causa indignação: seu corpo foi retirado da cena de seu assassinato antes que a perícia pudesse ser feita e sua morte não foi registrada na Delegacia de Homicídios.
A Maré de Direitos vai entrar com ações para garantir que arbitrariedades e brutalidades, como invasão de domicílios, homicídios e armamentos letais não possam ser usados indiscriminadamente contra a população. “Essa ação deixou uma certeza: precisamos urgentemente refletir e discutir sobre as condições psicológicas, os danos à sanidade mental dos policiais provocados pelas condições a que são submetidos nessas ações; sobre a falta de perícia nos casos de homicídios executados nessas operações; e sobre o uso de armas letais contra a população. O interesse da Maré de Direitos é pela vida e pela legalidade”, afirmou Lidiane, coordenadora do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça, ao fim de mais um dia bastante difícil para todos os mareenses.
Extraído de www.redesdamare.org.br