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quinta-feira, 25 de abril de 2024

“Bacurau” é um convite à resistência popular contra o fascismo

“A esperança que nos resta é que os brasileiros do futuro sejam como os filhos de Dona Carmelita: tenham Bacurau dentro de si e encontrem na coletividade (violenta e ruptiva quando necessária, e dialógica e democrática quando possível) a única saída possível.”

Júlia Vilhena


Foto: Divulgação/Bacurau

NÃO É POSSÍVEL começar um artigo sobre Bacurau (2019) tentando definir um tema central ou indicar do que se trata, sem antes se debruçar sobre cenas e momentos específicos que constroem o universo complexo, prazeroso, triste e conscientemente vanguardista desse filme.

Não conheço quem tenha visto Bacurau e não tenha sentido urgência de escrever e/ou conversar sobre, seja pela surpresa, pelo horror ou pelo gozo da catarse. E essa capacidade de se estender no espectador e ser transformado por ele, para além do que comumente já acontece na arte, em Bacurau se torna parte essencial da existência vibrante e radical do filme.

O Retorno de Teresa a Bacurau e o Convite Para Que Retornemos a Nós Mesmos

O filme começa com Teresa (Bárbara Colen) voltando à sua cidade natal, Bacurau, para o enterro de sua avó Carmelita (Lia de Itamaracá). O enfoque inicial em Teresa parece indicá-la como protagonista do filme, até que se torna evidente que a personagem é construída para ser o próprio espectador (eu e você). A sua entrada na cidade é, portanto, a nossa entrada no universo do filme. Teresa volta do estrangeiro e assim nos convida a voltar também. É nesse instante que começa a luta, por enquanto ideológica e subjetiva, contra o imperialismo e pela construção de uma nacionalidade generosamente diversificada, essencialmente coletiva e que saiba beber das fontes do mundo sem se deixar sujeitar a qualquer tipo de estrangeirismo.

Se Teresa não é Protagonista, Quem é?

Essa é provavelmente uma das perguntas que perseguem a maioria de nós (acostumados a uma ideia de filme e de sociedade em que exista uma figura central e messiânica) e para ela encontramos diversas respostas, que culminam em uma só.

Se Domingas (Sônia Braga), Plínio (Wilson Rabelo), Pacote (Thomas Aquino), Lunga (Silvero Pereira) e Michael (Udo Kier) aparecem como figuras de destaque em diversos momentos, eles são construídos como lideranças, termo necessariamente diferente de protagonista. O protagonista do filme é, afinal, a coletividade e as suas formas contextuais de organização. Portanto, as identidades são tratadas como construções fundamentais, sem as quais a coletividade se torna insustentável e vazia, mas nunca descoladas de um sentido essencialmente coletivo.

A Luta Contra o Imperialismo Para Além da Construção Subjetiva do Espectador

Se logo no começo o retorno de Teresa prenuncia sutilmente essa temática, com o desenvolvimento do filme esse tema para de ser sutil e passa a ser violenta e sanguinariamente central.

O primeiro sinal do imperialismo chega na figura de duas pessoas que “aprenderam a pescar sem precisar de anzol”, o que é outra forma de dizer: dois motoqueiros do sudeste do Brasil, vestidos de modo a deixar claro o não pertencimento ao local. Apesar de brasileiros, se consideram mais “como eles” (os norte-americanos, que logo mais serão citados) do que como os nordestinos. A partir daí, começa a ficar evidente o que está em jogo: os motoqueiros chegam a Bacurau para dar cabo ao processo de ataque que a cidade está sofrendo, na tentativa de literalmente acabar tanto com o povoado quanto com seus habitantes.

Dos motoqueiros em diante chegamos ao grupo de norte-americanos supremacistas comandados por Michael (alemão que em certo momento diz a um membro do grupo que é “mais americano que ele”, orgulhosamente afirmando que aprendeu a ser imperialista e fascista antes, dada a história da Alemanha e a sua própria). Esse grupo mora temporariamente em uma fazenda perto de Bacurau, tem como meta destruir o local e seu povo, denomina o assassinato do povo nordestino de “caça”, possui um drone em formato de disco voador, age como se participasse de um jogo com direito a pontuação por mortes e tem conchavo com o prefeito de Bacurau Tony Jr (Thardelly Lima) no plano de extermínio.

Ao contrário do que acontece na maior parte das vezes em que o português é retratado na arte em contato com o inglês, em Bacurau a língua inglesa – assim como as personagens equivalentes aos falantes natos da mesma – é retratada como limitada e pobre quando comparada ao dialeto nordestino do português brasileiro. Assim, esse núcleo parece de fato o que é: menos complexo e interessante do que qualquer personagem do sertão pernambucano; figuras no geral mais simbólicas do que humanamente elaboradas.

Tem-se menos a dizer, portanto, sobre os norte-americanos do que sobre os nordestinos. É isso, essencialmente, que importa.

Bacurau Avisa o Momento da Virada: A Cena da Cabana

Depois de sucessivos assassinatos por parte dos norte-americanos, chega a cena da cabana. Damiano, após ser avisado pelo pássaro (Bacurau) que dois membros do grupo de assassinos se aproximam, entra na sua cabana e protagoniza com sua mulher a cena mais surpreendente do filme, quando tem o seu paraíso idílico (com direito a plantas regadas, pólvora preparada na hora e nudez sem constrangimento) interrompido e responde do modo que esperamos o filme inteiro: armado até os dentes. A partir daí, a resistência popular se constrói.

Execuções em Praça Pública: Socialismo ou Barbárie

“Estamos todos sob efeito de um poderoso psicotrópico e você vai morrer”. Evitando entregar absolutamente o final do filme – que merece e precisa ser visto – ou entrar nos detalhes misteriosos do tal psicotrópico, por fim, é preciso dizer que se o próprio filme comprova que os elementos aparentes do futurismo que constroem o anunciado “sertão de Pernambuco daqui a alguns anos” são, fora da tela, realidades constituintes do apocalipse não ficcional do atual Brasil sob o governo do fascista Bolsonaro, a esperança que nos resta é que os brasileiros do futuro sejam como os filhos de Dona Carmelita: tenham Bacurau dentro de si e encontrem na coletividade (violenta e ruptiva quando necessária, e dialógica e democrática quando possível) a única saída possível.

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