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sábado, 14 de dezembro de 2024

A Lava Jato e o novo enquadramento do Brasil como país subordinado

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Saudada inicialmente de forma ampla como um exemplo de funcionamento das instituições democráticas contra poderosos políticos e empresários corruptos, a operação Lava Jato foi pouco a pouco revelando sua face como um instrumento central de subordinação econômica do Brasil aos interesses do abalado império estadunidense.

Por Paulo Henrique Rodrigues


Charge: Vitor Teixeira

BRASIL – Desde que foi deflagrada a Operação Lava Jato em 2014, vem se processando uma sistemática política de liquidação do que sobrou da indústria brasileira em mãos nacionais. Em 17 de março daquele ano, a Polícia Federal deu início à operação, prendendo 17 pessoas, incluindo o doleiro Alberto Youssef, suspeito de comandar o esquema de lavagem de dinheiro (G1: 17/03/2014).

A Lava Jato foi progressivamente revelando esquemas de corrupção que envolviam dirigentes da Petrobras e de grandes empreiteiras brasileiras, entre as quais se destacava a Odebrecht. A operação chegou à sua 57ª fase em dezembro do ano passado (G1: 05/12/2018), sempre envolvendo ações espetaculares da Polícia Federal, do Ministério Público Federal de Curitiba e do Juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Criminal Federal, também de Curitiba. Saudada inicialmente de forma ampla como um exemplo de funcionamento das instituições democráticas contra poderosos políticos e empresários corruptos, ela foi pouco a pouco revelando sua face como um instrumento central de subordinação econômica do Brasil aos interesses do abalado império estadunidense.

Os alvos da Lava Jato

Os principais alvos da Lava Jato foram os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff, a Petrobras e as grandes empresas nacionais de construção civil. O PT foi abatido, primeiro, pelo golpe de agosto de 2016, que deu lugar ao governo entreguista de Michel Temer (MDB). Em seguida, Lula foi preso, em abril de 2018, depois de condenado em segunda instância pelo Tribunal Federal Regional da 4ª Região (TFR-4), de Porto Alegre. Solto em 11 de novembro de 2019, enfrenta vários outros processos que podem levá-lo de volta à prisão.

O impedimento da candidatura de Lula, devido à sua prisão, e o gigantesco movimento de manipulação da opinião pública por intermédio da grande mídia e das redes sociais que resultou na vitória de Bolsonaro em 2018 foi coordenado diretamente pelos EUA. Este esquema contou com o envolvimento do mesmo Steve Bannon, que coordenou a campanha de Donald Trump, em 2016, e também fez parte da campanha pela saída da Inglaterra da União Europeia no referendo ocorrido em 23 de junho de 2016.

Depois de abatido o PT, a Lava Jato voltou-se para a Petrobras e as empreiteiras brasileiras. A Petrobras foi criada em outubro de 1953, no segundo governo de Getúlio Vargas, depois da vasta campanha popular “O petróleo é nosso”, como empresa estatal encarregada de assegurar a soberania nacional na produção, refino e distribuição de petróleo. Líder mundial na tecnologia de exploração petrolífera em águas profundas e ultraprofundas (The Economist, 05/11/2011), a empresa chegou a ser a quinta maior empresa petrolífera de capital aberto do mundo em 2011 (Petrobras: 13/08/2014) e a segunda maior empresa das Américas em 2010 (BARBOSA e ALVES: 19/05/2008).

Atualmente desmoralizada, vem sendo gradualmente privatizada. De fato, seus gasodutos foram colocados à venda ainda pelo governo Dilma, processo que se completou em junho passado no governo Bolsonaro (G1: 05/08/2019). Também a BR Distribuidora foi vendida, e Paulo Guedes vem falando que pode vender toda a empresa.

As construtoras brasileiras, muitas das quais desenvolviam obras pesadas em vários países do mundo, inclusive nos EUA, depois de expostas por anos pela Lava Jato, entraram em sérias dificuldades econômicas. A antes poderosíssima Odebrecht está em recuperação judicial desde junho de 2019. O golpe de misericórdia no setor de construção pesada nacional veio em 1º de agosto deste ano, quando o governo Bolsonaro assinou memorando com o governo dos EUA para entregar bilionárias obras de infraestrutura do país a construtoras estadunidenses (Alves: 02/08/2019).

Ao invés da execração pública que levou as empresas de construção civil às atuais dificuldades, com enorme perda para o país em termos de empregos e capacidade tecnológica, a Lava Jato e o juiz Sérgio Moro podiam ter utilizado, por exemplo, o artigo nº 1.019 do Código Civil. Este artigo permite o afastamento do sócio investido na administração de uma empresa por “justa causa, reconhecida judicialmente”, ou seja, mediante prova de falta grave no exercício da função, mas tal opção, que preservaria o interesse nacional e milhares de empregos, não foi adotada.

A assinatura do memorando entre os governos do Brasil e dos EUA mostra que a Lava Jato cumpria uma missão para o Império: destruir a engenharia nacional para subordinar o país e abrir seu mercado a empresas estadunidenses, como a Halliburton, tão corruptas quanto as brasileiras.

Imagem: FUP

Desnacionalização da economia brasileira

Mas a destruição da capacidade industrial e da soberania brasileira não começou com a Lava Jato, nem esta teve a primazia de brandir a bandeira da corrupção para destruir o patrimônio nacional. Em novembro de 2019, o famoso economista coreano Ha-Joon Chang declarou que o Brasil passa pela maior e mais rápida desindustrialização da história mundial, que teria começado na década de 1980, segundo ele.

A partir do início dos anos 1980, o Brasil interrompeu uma longa trajetória de intenso crescimento, que durou de 1930 a 1979, puxada pela política intervencionista do Estado, que assumiu feições nacional-desenvolvimentista depois da Revolução de 1930, até 1954, e desenvolvimentista até 1979. Nesses quase 50 anos, segundo o economista Reinaldo Gonçalves, o Brasil cresceu mais do que a média mundial, “enquanto o mundo duplicava sua renda per capita a cada 35 anos, o Brasil a duplicava a cada 19 anos” (2013, p. 65 e 73). O crescimento anual médio da indústria de transformação foi o carro-chefe desse longo período de crescimento, atingindo 10% entre 1932 e 1939, 7,9% entre 1939 e 1949; 9,5% entre 1949 e 1962; 2,7% entre 1962 e 1967; 13,3% ao ano entre 1967 e 1973, e 6,8% entre 1973 e 1980, segundo dados do IBGE compilados por Flávio Versiani e Wilson Suzigan (1990, p. 30). Já na década de 1980, esse crescimento caiu para apenas 0,6% ao ano entre 1980 e 1988, segundo a mesma fonte. Como foi possível uma reversão tão tremenda?

Na verdade, a partir do final de 1979, os EUA fizeram girar a roda da história no sentido contrário, visando ressubordinar a economia de várias regiões do mundo, estabelecendo nova divisão internacional do trabalho. O objetivo do imperialismo estadunidense era o de retomar sua hegemonia, abalada pelas derrotas no Vietnã (1973), no Irã (1979) e na Nicarágua (1979), pelos choques do preço do petróleo promovidos pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), em 1973 e 1979, e pela crescente competição econômica com a Alemanha e o Japão.

O principal movimento estadunidense foi desfechado a partir de setembro de 1979, por Paul Volcker, presidente do FED – banco central estadunidense –, que iniciou uma política de aumento dos juros sobre os títulos do tesouro dos EUA, que passaram de 10,9% ao ano para 20,18% no ano seguinte (Cerqueira, 2003, p. 143). Em 1980 chegam a 21,5%, determinando um brutal aumento do endividamento dos países africanos, latino-americanos e dos países socialistas do Leste Europeu.

Em agosto de 1982, o México não aguentou o aumento do serviço da dívida e decretou uma moratória (Fiori, 1997, p. 119). Logo após, o Brasil se tornou o país mais endividado da América Latina, com uma dívida externa total de 86,3 bilhões de dólares, dos quais 22% devidos a bancos estadunidenses (Almeida, 2014, p. 480). Em 1982, o Brasil foi obrigado a fechar seu primeiro acordo como o FMI, que obrigou o país a abandonar a política voltada para o crescimento econômico e industrial. A partir de então, vários setores industriais em que o país adquirira capacidade tecnológica sob o controle seja de empresas estatais ou de capital privado nacional foram sendo sistematicamente privatizados ou meramente desmontados para que o Brasil assumisse o figurino de país dependente do império estadunidense, cada vez mais limitado ao fornecimento de matérias-primas para os países desenvolvidos.

Dois dos importantes setores econômicos vitimados pela crise da dívida externa dos anos 1980 e pela falsa bandeira do combate à corrupção foram a indústria naval brasileira e nossa marinha mercante. Em 1983 e 1984, houve o chamado “escândalo SUNAMAM”, muito parecido com a Lava Jato, que acabou praticamente destruindo esses dois setores vitais para a soberania do Brasil.

Um país com uma grande economia e imensas dimensões como o Brasil, com mais de 9 mil quilômetros de costa, diversos rios navegáveis, inclusive o maior do mundo, o Amazonas, necessita de uma grande marinha mercante e uma indústria naval para construir os navios. A indústria naval data da época do Império, quando foi criado o Estaleiro Mauá, segundo Alcides Goularti Filho (2010, p. 249). No primeiro governo republicano começou a se estruturar a marinha mercante brasileira. A Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro foi criada em 1894 como uma empresa estatal e se tornou a mais importante do setor por quase um século. Importantes companhias privadas nacionais foram fundadas pouco depois, como a Companhia Nacional de Navegação Costeira, de 1891, e a Companhia Comércio e Navegação, de 1905.

Ainda segundo Goulart Filho, a Revolução de 1930, deu início ao intervencionismo estatal na área por meio do Decreto-Lei 1.951/1939, que deu à União “o direito de explorar, conceder e autorizar os serviços da navegação, marítima, fluvial e lacustre”. Em 1958, foi criado o Fundo da Marinha Mercante (FMM), que fortaleceu a CMM depois transformada 1969 em Superintendência da Marinha Mercante (SUNAMAM). O Plano de Metas do governo Juscelino Kubistchek (1956) planejou de forma complementar a expansão da marinha mercante e a indústria naval. Já em 1962, “com o parque industrial naval todo implantado, e um índice de nacionalização em preço de 81%, encerraram-se as importações de navios novos e de segunda mão” (Goularti Filho, 2010, p. 260).

No período da ditadura militar, a criação da SUNAMAM, em 1969, foi acompanhada de políticas estatais voltadas para o fortalecimento da marinha mercante brasileira, a proteção à navegação nacional e o apoio à indústria da construção naval. Dois planos de Construção Naval ampliaram o emprego na indústria da construção naval de 18.000 trabalhadores em 1970, para 33.792 em 1980, tornando o Brasil a segunda potência mundial no setor, abaixo apenas do Japão (Goularti Filho, 2010, p. 260 a 262).

Toda essa história, que transformara o país no segundo maior construtor de navios do mundo, começou a ser alterada a partir da crise da dívida externa, primeiro mecanismo de efetiva subordinação do país aos interesses do império estadunidense.

Em 1983, foi publicado o Decreto 88.420, que redefiniu o mecanismo de financiamento para o setor e retirou a capacidade da SUNAMAM em liberar recursos aos estaleiros e armadores. No ano seguinte, o governo, inteiramente pressionado pelo garrote da dívida externa, deu início a uma apuração de irregularidades, que ficou conhecido como o “Escândalo da SUNAMAM”, uma mini Lava Jato dos anos 1980. Tal como o setor da construção civil vem encolhendo atualmente, a construção naval brasileira foi praticamente paralisada, até que a Medida Provisória de 27 de janeiro de 1989 extinguiu a SUNAMAM (Goularti filho, 2010, p. 264 e 265). Nos anos 1990 foram desnacionalizadas as maiores companhias mercantes brasileiras, como a Libra, a Aliança, a Transroll e a Flumar. O Lloyd Brasileiro foi extinto em 1997 pelo governo Fernando Henrique Cardoso.

O atual desastre que se abateu sobre a Petrobras e as construtoras pesadas brasileira, atingiu também a EMBRAER, entregue à Boeing, e vem destruindo o que restou de um esforço de décadas para construir uma economia industrial moderna no país.

Mais do que entender que se trata de um desastre, é necessário compreender que faz parte de um mecanismo que visa subordinar o Brasil, impedir seu crescimento e soberania nacional, e que gera miséria e sofrimento para seu povo.

Por isso, hoje, mais do que nunca, faz-se necessário levantar com firmeza e consequência a bandeira da renacionalização de todos os setores estratégicos da nossa economia, colocando sob controle popular o conjunto das riquezas do país.

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