Jornal A Verdade, edição nº 222, novembro de 2019, Página 08.
Lucas Menezes
Foto: Arquivo/Reprodução
FLORIANÓPOLIS – Em plena ditadura militar, em Florianópolis, capital de um dos estados mais conservadores da federação – Santa Catarina –, a visita do último presidente militar terminou em confusão e pancadaria entre a população e a comitiva presidencial nas ruas do calçadão central. Era 30 de novembro de 1979, data que entraria para a história como a Novembrada de 79.
João Baptista Figueiredo, general-presidente eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral, estava incumbido de realizar a abertura política, a famosa “transição democrática”, nas palavras do ex-general-presidente Ernesto Geisel, de forma “lenta, gradual e segura”. Por isso, na tentativa histriônica de popularizar a carranca de ditador latino-americano de óculos escuros, o presidente estava visitando várias cidades país no clássico estilo populista barato: andando com pouca escolta entre populares e beijando crianças.
O ponto é que já se iam 15 anos de autoritarismo e repressão, o povo estava cansado – e tinha pouco a perder. Nem mesmo a campanha publicitária doidivana do Governo do Estado, chefiado pelo também indicado Jorge Bornhausen, foi capaz de ludibriar a população local. Ao contrário, num contexto de crise do capital, com aumento do custo de vida, da cesta básica, do leite e da gasolina, os 100 mil cruzeiros pagos “ao compositor, Luiz Henrique, figura folclórica de Florianópolis”, pelo Samba da Conciliação; os 57.400 cruzeiros – equivalentes a vinte salários mínimos – gastos com um balão gigantesco onde se lia “João, o presidente da Conciliação”, que, vários dias antes da visita, foi instalado no aterro da Beira-Mar Norte; os 3.200 quilos de carne, 6.000 litros de chopp e frutas tropicais para o churrasco no almoxarifado da Celesc, na Palhoça; os 360.000 cruzeiros pagos às funcionárias públicas – 600 moças – que foram requisitadas para servir de recepcionistas, etc., só serviu para escancarar a mordomia de que desfrutavam os donos do poder.
Ponto para os estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que, analisando o quadro de penúria do povo em contraste com a extravagância dos gastos públicos com publicidade, lançaram uma nota que atacava as desigualdades, o aumento do custo de vida e convocava para um ato de protesto contra a visita presidencial.
Chegado o grande dia, tudo corria bem. Em frente ao palácio Cruz e Souza, “o velho casarão rosa em estilo eclético”, três a quatro mil pessoas, entre elas uma centena de estudantes – que haviam, mais cedo, distribuído aproximadamente dois mil panfletos aos populares.
Como planejado, o presidente chegaria ao palácio, assinaria os convênios e, em seguida, caminharia trezentos metros até o bar Ponto Chic – o Senadinho – no calçadão da Rua Felipe Schimidt, onde, depois de condecorado senador, seguiria para um churrasco com parlamentares da Arena e empresários, na Palhoça.
O que ninguém esperava era que, da sacada do palácio, após vaias e gritos de ordem como “Abaixo Figueiredo, o povo não tem medo!”, o presidente fosse acenar para a população com um gesto obsceno.
Não deu outra. Aos gritos de “Cavalo” e “Filho da Puta”, a multidão se insuflou. João Figueiredo, indignado e aos empurrões, contrariando todas as ordens de sua comitiva, desceu para tirar satisfação com os manifestantes: “Por que é que minha mãe está em pauta? Por que essa baixeza? Aqui no meu país, não!”.
Contido o agito pela força policial, o presidente caminhou, sem maiores problemas, até o Ponto Chic. O gosto do café seria tirado na marra da boca do general.
Ao tentar sair do bar, a porta estava tomada de manifestantes. João não conseguia esconder a irritação – muito menos o suor, que lhe escorria da cabeça calva. “Os ‘Cavalo’ e ‘Filho da puta’ eram gritados a três metros dele”. A segurança presidencial reagiu. Os manifestantes revidaram. “A pancadaria entre populares e a comitiva presidencial se generalizou. A programação do resto da visita foi quase fúnebre. A tensão abraçava a todos no churrasco. Em frente à mesa de frutas, o presidente fez seu único discurso. Banana, diga-se de passagem.
Como consequência desse dia de luta, no dia 2 de dezembro, sete estudantes da UFSC, que compunham o Diretório Central dos Estudantes (DCE), foram presos. Dois atos de solidariedade aos presos e pelo não enquadramento dos mesmos na Lei de Segurança Nacional agitaram a cidade nos dias que se seguiram, reunindo, juntos, cerca de dez mil pessoas, quando 14 ficaram feridas, um argentino foi baleado por um policial e cinco outras foram detidas. Uma greve em solidariedade aos estudantes paralisou a UFSC no dia 24 de março de 1980.
O julgamento aconteceu em 17 de fevereiro de 1981: por três votos contra dois, os estudantes foram absolvidos. Portanto, fica nítido o quanto da nossa história os livros escolares não contam. Mas estamos aqui e sempre estaremos.
Quer saber mais sobre esse importante episódio? Então fique atento: dia 29 de novembro, será lançado o longa-metragem “Quarenta pra não esquecer”, pelo coletivo jornalístico Desacato, em Florianópolis. A história não será mais a mesma.