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sábado, 16 de novembro de 2024

Viva Aqualtune: que gerou Ganza Zumba, que gerou Zumbi dos Palmares

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Crônica anexada na edição 223 do jornal impresso, página 12.

José Levino


Foto: Reprodução/Arquivo

BRASIL – A escravidão foi o sistema social que sucedeu a Comunidade Primitiva, regime no qual não havia propriedade privada, o trabalho era coletivo e a repartição dos bens se dava de acordo com as necessidades das pessoas. Nesse regime, ainda viviam, por exemplo, os indígenas que aqui habitavam quando os portugueses invadiram o território, em 1500. Em termos da História da Humanidade, o início do escravismo é situado em torno do ano 4.000 a.C.

No Ocidente, como modo predominante de produção, o sistema escravista terminou com a queda do Império Romano, embora tenha sido utilizado pontualmente na Idade Média, como no reinado de Carlos Magno (Europa Central-768/814).

Ao contrário do que registra a historiografia das classes dominantes, os povos africanos não eram “atrasados”, selvagens, etc. De fato, já nem viviam mais no comunismo primitivo. Eram sociedades divididas em classes, embora no meio do povo ainda fossem fortes as práticas comunitárias, que irão renascer nos quilombos (Brasil), palenques (Cuba e Colômbia), maroons (Jamaica e Suriname), marrons (Haiti), cumbes (Venezuela), marroon communities (Estados Unidos).

As atividades econômicas eram a agricultura e o comércio, exportando, principalmente, ouro e peles de animais. Tudo contabilizado. Conheciam técnicas de fundição de ferro, noções de astronomia, medicina natural e desenvolviam as artes (música, dança, artesanato, pintura).

Organizavam-se em reinos, dentre eles, os mais conhecidos: Kongo (Congo), Oyo (Nigéria), Mossi (Burkina Faso), Napata (Núbia, região situada entre o Egito e o Sudão). Ndongo (Angola), Ashanti (Gana), Songhay (Mali), Abomey (Benim).

Escravismo em Terras Africanas

Havia conflitos entre os diferentes povos e os vencedores escravizavam os vencidos, para quem ficavam trabalhando, mas não eram mercadoria. Nada que os europeus já não tivessem vivido em sua história, marcada por brutalidades, escravizações, opressões, traições dos mais diversos tipos. A transformação do ser humano em mercadoria foi introduzida pelos árabes no século VII. A ambição do enriquecimento e do fortalecimento do seu poder levaram os segmentos dominantes da África a aderirem à prática de mercado, vendendo os vencidos e criando guerras por qualquer motivo para terem a oportunidade de aprisionar e lucrar com a venda das pessoas dominadas. Com o estabelecimento de colônias na América, os portugueses adotaram essa prática como saída para a necessidade de mão de obra, visto que os povos nativos não se deixaram dominar e os poucos que foram aprisionados ou caíram na conversa dos missionários foram considerados improdutivos.

Há poucos dias, um procurador de Justiça do Pará, de nome Ricardo Albuquerque, falou numa palestra que os portugueses escravizaram os negros porque os índios não gostavam de trabalhar. O energúmeno não sabe (ou faz que não) que os indígenas trabalhavam com muita alegria, mas só o suficiente para viver. Não pensavam em acumular riquezas, não estavam acometidos da doença do consumismo. Por isso, jamais assimilaram a ideia de trabalhar forçadamente para enriquecer o invasor. Com isso, ninguém está dizendo que os africanos não resistiam, aceitavam de bom grado a escravidão, eram submissos, nada disso. Tanto que são inúmeras as rebeliões e rupturas com a fuga para as comunidades quilombolas. Para mantê-los produtivos, eram praticados cruéis torturas e assassinatos pelos senhores, com total cobertura legal. Os instrumentos ainda se encontram expostos nos museus para quem quiser ver.

A Resistência à Escravização do Congo

O mercado do tráfico negreiro em larga escala é responsabilidade dos europeus, especialmente dos portugueses, com a bênção do chefe da Igreja Católica, o papa Nicolau V, com a bula editada em 1454, mas também dos espanhóis e dos ingleses, com a colonização dos Estados Unidos da América do Norte.

O Congo já era monarquia, mas o rei Mani-Kongo amava seu povo e nunca aceitou as propostas de venda de pessoas ou tomou a iniciativa de dominar outras tribos para ganhar dinheiro com a escravização. Ao contrário, foi vítima de invasão por parte de forças portuguesas e angolanas. Resistência brava. Sua filha, Aqualtune, guerreira destemida e admirada pelo seu povo, liderou 10 mil pessoas na guerra em defesa do povo e seu território. 

Derrotado o povo do Congo, o rei foi decapitado e Aqualtune capturada e vendida para traficantes, que a trouxeram para o Brasil num navio negreiro, cujas condições também já são por demais conhecidas, mas vale citar a descrição cortante e combativa de Castro Alves, no poema “Navio Negreiro”: “…Hoje o porão negro, fundo/Infecto, apertado imundo…/E o sono sempre cortado/Pelo arranco de um finado/E o baque de um corpo ao mar.” 

Aqualtune, jovem, resistiu a todo esse horror, foi desembarcada no Porto do Recife e vendida para um fazendeiro de Porto Calvo (então Província de Pernambuco, hoje Estado de Alagoas). Mas, como uma guerreira provada nos combates e na liderança de tropas em sua terra natal poderia ser mantida sob o jugo de senhores? Não demorou para que reunisse um grupo de escravos e partisse para a liberdade, fundando o Quilombo dos Palmares, o mais famoso da História do Brasil.

Se Palmares fosse um reino despótico e seus líderes, uns tiranos, como querem fazer crer certos historiadores ou copidesques1 oportunistas, como explicar que sua população atingisse o nível de 30 mil habitantes, entre os quais  índios e brancos pobres, comprovando que a questão negra tem origem de classe e não de raça, e resistisse por um século aos constantes ataques do Exército e das milícias (bandeirantes) coloniais, com a união do seu povo e o apoio da população dos arredores?

Nos quilombos, os negros retomavam as práticas que viviam em seus países, onde o regime de comunidade não havia ainda degenerado, especialmente em alguns territórios como o Congo, onde já havia um regime monárquico, mas a Corte era muito próxima do povo, tanto que resistiu à cooptação e à invasão armada praticada pelos traficantes da Europa e de países vizinhos da própria África.

É claro que, sob fogo cerrado permanente, torna-se limitada a democracia participativa, precisando de centralização da autoridade num líder militar capaz e reconhecido, nada tendo a ver com despotismo, que mais caberia a regimes que têm constituições altamente democráticas no papel, mas práticas autoritárias e tendenciosas, que negam a todo instante o ordenamento jurídico.

A Genética da Libertação

Aqualtune gerou Ganga Zumba, que a substituiu na liderança do quilombo. Ganga Zumba gerou Zumbi, que sucedeu o pai e se tornou uma lenda e símbolo da luta de libertação, não apenas dos negros, mas de todos os oprimidos pelo sistema de classes, que hoje se chama capitalismo. Raptado, junto com a mãe, o futuro Zumbi chegou a ser Francisco, batizado por um padre, que lhe ensinou português e latim e sonhava com a inclusão do garoto, liberto, no meio da sociedade colonial, quiçá como padre, a mostrar que os negros são tão capazes quanto os brancos e que alma não tem cor. 

Mas o sacerdote se frustrou, pois o menino carregava nas veias o sangue da avó Aqualtune, ou seja, a genética dos bravos, e não aceitou essa proposta de inclusão social. O caminho da libertação é que lhe chamava. Aos 15 anos, fugiu e foi reencontrar seu povo. Ainda bem jovem, contrapôs-se à decisão do seu pai, Ganga Zumba, que aceitou o canto de sereia dos dominadores e fez acordo de paz, propondo a mudança para um território pré-estabelecido pelo governo colonial dos senhores de engenho. Zumbi apelou, argumentou, não convenceu o pai, mas convenceu o povo dos Palmares, pois apenas umas 300 pessoas, entre milhares, seguiram Ganga Zumba. Logo ficou clara a arapuca, e, como o chefe não queria voltar atrás, os próprios seguidores o envenenaram e voltaram para o território livre.

O Caminho da Libertação

Malditos sejam os opressores, os detratores e os traidores, simbolizados na atualidade por Sérgio Camargo, que é negro, mas nega a existência de racismo no Brasil e chega a afirmar, sem vergonha nenhuma, que a escravidão foi benéfica para os povos africanos. Ele foi nomeado para presidir a Fundação Palmares, responsável pela disseminação da cultura afro em nosso país e pelo reconhecimento dos territórios quilombolas, como previsto na Constituição Federal.

Louvada seja Aqualtune, negra, guerreira, que gerou Ganga Zumba, que gerou Zumbi, que vive para sempre naqueles e naquelas que não se deixam enganar pelo canto do enriquecimento e do poder individual. Nos negros e negras quilombolas, nos camponeses e camponesas pobres, assim como nos trabalhadores e trabalhadoras oprimidos de todas as raças e cores, vítimas comuns da exploração de classe, e nos povos originários (indígenas), que se uniram em Palmares mostrando por onde passa o caminho da verdadeira libertação. As tentativas de inclusão, desde a ilusão de Ganga Zumba, o abolicionismo, os programas compensatórios, mostraram-se uma armadilha que nem liberta nem inclui (exceto alguns indivíduos).

Desse modo, a libertação passa pelos caminhos apontados por Aqualtune e seu neto, Zumbi dos Palmares, com a constituição de novos quilombos rurais e urbanos, nos quais a economia seja coletiva, a democracia participativa e a ideologia comunitária. Assim, tal qual novos palmarinos, cantaremos hinos, aclamando o poder popular  e seus líderes como Aqualtune e Zumbi, nascidos no seio do povo brasileiro e vivos eternamente por sua luta e seu exemplo.

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