Por Carlos Russo Jr.
Uma das páginas determinantes da História moderna, que deve ser lembrada sempre por todos aqueles que prezam a liberdade, é a ocupação de Berlim pelas tropas soviéticas, marco da completa e definitiva derrota da Alemanha nazista.
Em decorrência dos grandes sucessos alcançados pelas forças soviéticas no inverno e início da primavera de 1945, toda a linha de operações de guerra deslocara-se para o oeste e, já dentro do território alemão, margeava o rio Oder.
Então, de todos os pontos de vista, a situação do III Reich era desesperadora, mas seus líderes, tendo à frente Hitler, negavam-se a depor as armas. Desejariam arrastar todo o povo alemão a uma catástrofe ainda maior? Ou talvez esperassem que o desenvolvimento de uma alternativa nuclear de última hora mudasse o rumo da capitulação?
Ou quiçá, toda a resistência oferecida aos soviéticos objetivava a esperança de alguma negociação em paralelo com americanos e ingleses, rompendo a unidade dos Aliados? Ou simplesmente preferissem que os anglo-americanos fossem os primeiros a ocuparem Berlim? São questões para as quais dificilmente teremos uma resposta definitiva.
Em 2006, eu estive a trabalho em Moscou e a vida sempre nos prepara surpresas, algumas magníficas e absolutamente insuspeitáveis, outras nem tanto. Possuía uma guia e tradutora que falava fluentemente português. Nas horas extras do trabalho, apresentou-me seu marido, capitão reformado do Exército Vermelho o que me motivou a relatar-lhes meu passado de luta contra o fascismo em meu País. Percebi que se formara um clima de confiança que nada tinha a ver com o trabalho em si que nós desenvolvíamos. Para resumir, minha guia e seu marido me honraram com a apresentação de um parente próximo, um antigo coronel do Exército Vermelho, também fiel às bandeiras internacionalistas e que lutou na frente de batalha da Segunda Guerra, na denominada Guerra Pátria.
O encontro com o coronel ex-combatente foi definitivamente uma das melhores surpresas que tive em tantas viagens mundo afora. Entre copos de “kvas” e arenque em conserva, o coronel Vassili Iguichov contou-me uma pequena parcela de sua participação na guerra, sempre com a ajuda de sua sobrinha, minha tradutora. Fora tanquista na resistência de Moscou, em 1941 e, na Batalha de Berlim, era o comandante de um batalhão motorizado. Participou pessoalmente da rendição nazista, conforme ele, a “maior honraria de sua vida de soldado e de comunista”.
Em determinado momento, perguntei ao coronel Iguichov qual era sua opinião sobre o porquê da resistência de uma Berlim cercada e sem chance alguma de deter o avanço soviético. Por que não se rendera, evitando tantas mortes e destruições, sacrifícios inúteis do ponto de vista alemão naquele momento?
Ele me respondeu: “Foi simplesmente o medo. Medo que aqueles grandes assassinos, os comandantes, os oficiais das SS e da Gestapo, tinham dos soviéticos. Conosco não havia perdão. Na minha divisão, quase todo oficial SS ou agente da Gestapo que se rendia era fuzilado. Aquela matilha de cães raivosos, genocidas, não merecia viver ou ser tratado como prisioneiro de guerra. Foram eles que fizeram de tudo para que a luta se arrastasse, para que os outros chegassem antes de nós e, se isso tivesse acontecido, talvez lhes tivessem oferecido seus serviços de assassinos, mudando de patrão, como tantos que nos escaparam o fizeram”.
Visando a retardar a ação dos soviéticos, os nazistas concentraram para a defesa de Berlim cerca de um milhão de homens, mais de 10.000 canhões, 1.500 tanques e ao redor de 3.500 aviões. Entre o rio Oder e sua capital, construíram várias posições solidamente fortificadas, e os acessos à cidade se transformaram em fortalezas de cimento armado.
Do ponto de vista soviético, romper a linha de defesa do rio Oder era uma tarefa complexa, mas de extraordinária importância geopolítica e histórica. Para realizar a operação, que franquearia o acesso a Berlim, foram designadas tropas de três frentes: duas vindas da Bielo-Rússia, sendo a Primeira sob a liderança do marechal Zhukov; a Segunda, sob o comando do marechal Rokossovski, e ainda uma originária da Ucrânia, sob o comando do marechal Koniev. Dois corpos de Exército da Polônia livre também se incorporaram ao ataque.
Os soviéticos congregavam 2,5 milhões de combatentes, 42.000 canhões e morteiros, mais de 6.000 tanques e carros de assalto, em torno de 8.200 aviões. Para Zhukov, “a Pátria muniu-se de forças e recursos técnico-materiais que bastariam não para uma, mas para duas operações de igual envergadura”.
O plano de ataque consistia em romper, simultaneamente em diversos pontos, a linha de defesa nazista, cercar seu agrupamento de forças, dividi-lo e exterminá-lo por partes.
Ao mesmo tempo, a ofensiva soviética e a resistência guerrilheira na luta pela libertação de Praga (na Tchecoslováquia), de Budapeste (numa Hungria já parcialmente libertada) e da Iugoslávia, impediam que o comando alemão deslocasse tropas frescas para defesa de Berlim.
O plano de guerra ainda definia que, após apossar-se de Berlim, as tropas soviéticas deveriam atingir o rio Elba, onde elas encontrariam as demais forças Aliadas.
“O ódio que sentíamos dos nazistas, o entusiasmo de libertarmos o mundo dos invasores e de colocarmos as mãos em Hitler e em seu estado-maior, imperava em toda a frente. Em minha coluna de tanques, os soldados haviam pintado em vermelho: “Para Berlim!”, contou-me o coronel Iguichov. “E quando havia tempo, nossos meninos ainda escreviam a mesmo inscrição nos obuses, que em 16 de abril descarregariam um inferno de fogo sobre as fortificações inimigas”.
16 de abril foi o princípio da última e definitiva batalha em solo europeu da Segunda Grande Guerra. O ataque soviético enfrentou forte resistência, mas era impossível, desde o princípio, aos nazistas conterem tal avanço.
No dia 20 de abril, aniversário do Führer alemão, as baterias do Primeiro Front Bielorusso começaram a fazer fogo sobre Berlim. Era um sinal claro para aqueles que ainda mantinham esperança de deter os russos, que a guerra estava perdida.
No sexto dia dos combates, em 21 de abril de 1945, nos subúrbios do nordeste de Berlim irromperam as tropas de vanguarda do marechal Zhukov e, no dia seguinte, por sudoeste, as forças sob o comando do marechal Koniev.
No dia 24 de abril, as tropas se uniram em uma tenaz de fogo: mais de 200.000 soldados inimigos foram aprisionados! Em 25, enquanto a vanguarda das forças do general Russakov contatava as primeiras forças americanas no rio Elba, as tropas soviéticas fechavam o cerco a Berlim Oeste.
Os combates se tornaram encarniçados e sangrentos em seu maior nível. Em Berlim o terror se espalhou quando os pelotões das SS nazistas vasculhavam as ruas e porões à procura de desertores, os quais eram sumariamente executados, sendo centenas deles deixados enforcados em árvores para servirem de “exemplo” à população em desespero.
“Sabíamos que estávamos a um passo da vitória, que tanta dor custara, afirmou-me o coronel Iguichov. Às vezes, eu penso que não deveria ser fácil para alguém arriscar a vida quando a vitória definitiva era questão de dias. Mas tínhamos muito a conquistar, lutávamos por nós, pela Pátria, por nossos mortos e por toda a humanidade. Nem pensávamos na possibilidade de morrer e guerreávamos com a faca nos dentes, que é como luta um soldado de verdade.”
“Surpreendentemente, a noite de 26 para 27 foi de uma calma apavorante. Certa trégua ou preparação para o combate final? Não sabíamos. Praticamente não se ouviram mais as explosões das bombas lançadas pelos ares ou dos obuses terrestres. Mas, de repente, os incêndios avermelhavam tudo; bombas não detonadas explodiam quando as chamas as atingiam, mas havia o silêncio das metralhadoras. Quando amanheceu, ouvimos, com enorme surpresa, um concerto de pássaros. Mas no momento seguinte recebemos ordem de avançar e os lança-foguetes voltaram a rugir, os canhões de meu batalhão a trabalhar.”
Em 27 de abril, os russos dirigem um assalto geral contra o centro de Berlim. Tomam a estação de Anhalt, atingem a Leipzigerstrasse e a Prinzalberststrasse, entram no QG da Gestapo, onde encontram centenas de cadáveres de presos políticos executados. A Chancelaria encontra-se a 300 metros apenas. Mas defensores nazistas surgem das ruínas e repelem o assalto; somente uma nova ofensiva retomaria o edifício da Gestapo e chegaria ao Reichstag.
A artilharia e os lança-foguetes reabrem fogo. Os caças-bombardeiros russos, que substituíram as esquadrilhas americanas, mergulham em enxames. Uma formidável detonação sacode a cidade inteira, quando um depósito de Panzerfäust explode em Potsdamerplatz, provocando enorme carnificina.
Uma tragédia mais horrível desenrola-se sob as calçadas. Os sapadores nazistas haviam executado a ordem de fazer explodir as comportas do Landwehr Kanal, com o objetivo de inundar os subterrâneos do metrô, que poderia ser utilizado pelos russos. Nas trevas, milhares de civis, que ali se refugiavam, tentam escapar da enchente. Centenas de não combatentes, dos quais uma proporção imensa de crianças perece, seja por afogamento ou por asfixia, entre as estações de Leipzigerplatz e a Unter den Lenden.
Mais um crime hediondo dos nazistas contra sua própria população!
No dia 30 de abril, as tropas de assalto sob o comando dos generais Chatilov e do coronel Nogoda iniciaram o ataque ao Reichstag. Os destacamentos de elite nazista ofereceram feroz resistência, mas, na noite desse mesmo dia, os sargentos Kantaria e Iegorov levantam sobre a cúpula do Reichstag a bandeira da Vitória, da libertação Vermelha.
Em 2 de maio, finalmente, o comando militar de Berlim comunicou pelo rádio que aceitava a capitulação incondicional exigida.
A tomada de Berlim custou mais de 300.000 mortos e feridos às forças soviéticas; os alemães sofreram mais de 450.000 mortos, feridos ou desaparecidos, incluindo civis.
O general Chatilov escreveu sobre a população da cidade arrasada: “Os berlinenses observavam nossa gente cada vez com mais atenção. Os seus olhares eram diferentes: uns submissos e com medo, outros bajuladores, ainda outros mal escondendo um ódio contido. No entanto, cada vez mais frequentemente, líamos uma surpresa sincera naqueles olhos. Formado sob a influência da propaganda nazista, o alemão não podia compreender o comportamento dos vencedores. Os russos não matavam, não pilhavam e não se vingavam pelos crimes do exército alemão em solo soviético, mas, pelo contrário, alimentavam aqueles a quem deveriam considerar como inimigos mortais”.
“Muitas vezes tornava-se difícil manter a disciplina de jovens soldados que haviam perdido suas famílias e amigos massacrados pelas tropas alemãs. A nós cabia a obrigação do exemplo. Em meu batalhão, tenho orgulho de dizer, durante os três meses em que permanecemos na Berlim ocupada, não ocorreu nem um só caso de desrespeito ou de falta de prestação de auxílio à população civil da Alemanha vencida”, disse-me com o orgulho de um soldado o meu mais novo amigo, o coronel Vassili Iguichov.
No dia 8 de maio de 1945, finalmente, a Alemanha nazista reconheceu-se vencida e, em Karlshorst, os representantes do comando alemão assinaram o ato de capitulação incondicional. Assumia a presidência, interinamente, o marechal da União Soviética G. Zhukov.
O Dia da Vitória tão esperado chegara afinal! O dia 9 de maio foi comemorado em todos os recantos de um mundo mais livre!
Carlos Russo Jr. é editor do Espaço Literário Marcel Proust