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domingo, 24 de novembro de 2024

A dura rotina da enfermagem no Rio de Janeiro

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SOB PRESSÃO – Medo, angústia e ansiedade fazem parte da rotina da enfermagem no Rio de Janeiro (Foto: Toni Pires/El País Brasil)

O movimento Trabalhadores pelo SUS conversou, a pedido do jornal A Verdade, com alguns profissionais de saúde do Rio de Janeiro. Os depoimentos são um retrato do desrespeito e do descaso com a vida das equipes de saúde, dos ataques que o SUS vem sofrendo ao longo dos anos e do desmonte promovido pelo presidente Bolsonaro em conjunto com a gestão desastrosa do prefeito Marcelo Crivella.

Por Trabalhadores Pelo SUS

RIO DE JANEIRO – Segundo o Conselho Federal de Enfermagem (COFEn), até o dia 18 de maio 14.987 profissionais de enfermagem haviam sido infectados pelo Covid-19 no Brasil. Destes, 116 vieram a morrer. O Rio de Janeiro é o estado com o maior número de mortes no país: foram 29 profissionais vitimados pelo vírus.

Diante desses dados, e considerando o sofrimento vivenciado pela categoria, o movimento Trabalhadores pelo SUS conversou, a pedido do jornal A Verdade, com alguns profissionais. Os depoimentos aqui reunidos são um retrato do desrespeito e do descaso com a vida das equipes de saúde, dos ataques que o Sistema Único de Saúde (SUS) vem sofrendo ao longo dos anos e do desmonte promovido pelo presidente Bolsonaro em conjunto com a gestão desastrosa do prefeito Marcelo Crivella. Por questões de segurança e privacidade, o nome dos profissionais que deram seus relatos foram alterados.  

“Vi colegas desabarem diante do medo”

A primeira a falar foi Rosa, profissional da área de enfermagem há mais de 12 anos, todos eles vividos no SUS. Atualmente, trabalha em hospital, que mesmo não sendo uma unidade de referência para o tratamento da Covid-19, cuida de muitas pessoas infectadas. “No primeiro momento, a falta de equipamentos de proteção individual (EPI) e de treinamento foram decisivos para a grande quantidade de profissionais da saúde contaminados. Perdemos alguns colegas, porém o que mais tem me assustado é o estado emocional e de estresse, não só causados pelo isolamento, mas também pelo aumento de carga horária, situação que aflige diversas categorias profissionais, não apenas a de enfermagem”, relata. 

Rosa afirma que a rotina de tensão tem pesado na vida de muitos trabalhadores do hospital. “Me vi diante de colegas que estão comigo desde que entrei no serviço público, que eram fortalezas e desabaram diante dos medos e angústias. Muitas vezes não podemos retornar para as nossas famílias. Os EPIs ainda são insuficientes e vão seguir faltando, em virtude do despreparo de nossos gestores, que nunca se preocuparam em manter uma gestão clara e eficiente. O meu questionamento é como nós, profissionais da saúde, estaremos mentalmente quando tudo isso acabar? De fato seremos reconhecidos?”. 

Sentimento parecido é compartilhado por Girassol, enfermeira em dois hospitais no Rio de Janeiro. “Às vezes, quando eu penso em desistir me vem à mente os diversos colegas que estão comigo nessa guerra. Lembro que, assim como eu, todos têm, além do extremo cansaço físico e mental, medo, angústia e ansiedade. Logo percebo que estamos todos no mesmo barco e que eu não posso, não devo parar”. 

Perguntada sobre de onde vem todo esse estresse, ela responde: “Meu maior medo é levar a doença para dentro da minha casa. Saio do plantão e tento imaginar o que pode estar contaminado. Sapatos e roupas são deixados na porta de casa. Nada de abraços, beijos, afagos… Isso acontece de segunda a sexta-feira, como ritual nada sagrado”.

Mas, além da preocupação com a família, a resistência das pessoas em respeitar as medidas de isolamento social também aflige a enfermeira. “Me preocupa o aumento de pessoas nas ruas. Isso vem acompanhado do aumento no número de casos de pacientes graves que chegam aos hospitais. Me pergunto se esse comportamento condiz com as inúmeras manifestações de palmas pelas janelas em prol dos profissionais de saúde. Para mim, não faz muito sentido, porque ao sair do isolamento a pessoa fere o pacto social necessário nesse momento, há um desrespeito com os profissionais e com a população. É frustrante!”, lamenta. 

CUIDADOS – Profissionais de enfermagem são fundamentais no combate à Covid-19 (Foto: Toni Pires/El País Brasil)

Profissionais expostos ao vírus

O pano de fundo que acompanha a rotina de todos os profissionais que atuam no SUS são as precárias condições de trabalho encontradas nos instituições públicas de saúde. por anos seguidos, o SUS vem sendo sucateado. Com a aprovação da Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos novos investimentos nas áreas sociais, a esperança de uma mudança nessa realidade ficou ainda mais distante. 

Além disso, falta valorização dos profissionais, que até hoje não tiveram o piso salarial e a carga horária da categoria regulamentados. Resultado: esses trabalhadores são tratados como descartáveis pelo poder público. “Não testamos os servidores que apresentam sintomas gripais. Não há testes! Se você tiver qualquer sintoma, será afastado por 7 ou 14 dias. E para retornar ao trabalho não é exigido nenhum novo teste. Já não temos mais disponíveis leitos de UTI, os hospitais estão superlotados, não há respiradores”, desabafa Girassol.

“Não posso deixar a equipe sozinha na luta”

Na região mais populosa da cidade do Rio de Janeiro, a Zona Oeste, Margarida trabalha há 5 anos como enfermeira numa Clínica da Família. Ela afirma que já passou por muita coisa, mas nada parecido com o que enfrenta hoje em dia. “Trabalhei em epidemias como a da dengue e da zika, mas nada como agora. No início, tive muito medo, sou hipertensa e cardiopata, com pai diabético. Eu sabia dos riscos caso contraísse a doença, mas em nenhum momento recuei. Sou responsável técnica, não me sinto no direito de recuar e deixar a equipe sozinha na luta”, relata.

Ela explica que toda a dinâmica de trabalho teve que ser alterado diante da pandemia. “Na minha unidade montamos uma rotina bem amarrada de resposta rápida aos casos sintomáticos gripais conforme o protocolo para cuidado da Covid-19. Fomos nos adaptando à nova rotina do uso do EPI, escalas de atendimento, aumento absurdo das demandas com a síndrome gripal e também muita gente com ansiedade e depressão devido ao confinamento, ao medo da doença e da morte”. 

A essa mudança na rotina se somou o cuidado com os próprios colegas de trabalho. “Consolei muitos colegas com crises de choro devido ao medo, e fui consolada algumas vezes por eles também. Em abril, fiz o teste e o resultado foi positivo para Covid-19. Novamente o medo pela minha família retornou, mas segui a rotina de cuidados e tratamento, que foi realizado pela equipe com a qual trabalho, o pessoal do programa Mais Médicos, profissionais em quem confio intensamente. Estou de volta ao trabalho e seguimos lutando contra a pandemia, comemorando cada baixa nas notificações, cada colega que retorna ao trabalho, cada paciente que curamos e esperamos que tudo isso acabe logo”, confia Margarida.

ROTINA – “A sensação é de medo, insegurança e desamparo”. (Foto: Reprodução/Internet)

“Me sinto exausta”

Essa esperança de que tudo acabe logo é contraposta ao medo sentido e relato por todos esses trabalhadores que estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus. 

Camélia, que é enfermeira em CTI, nos contou um pouco das dificuldades que enfrenta diariamente durante o trabalho. “A princípio, os casos de Covid-19 estavam restritos a uma área isolada onde foram colocados leitos. A logística desse isolamento é péssima. Não fomos treinados, apenas foram dadas algumas informações pelo WhatsApp. Foi tudo muito rápido e assustador. Ficamos perdidos. A sensação é de medo, insegurança e desamparo”.

Perguntada o porquê dessa mistura de sentimentos, ela desabafa: “Não temos EPI adequado, as máscaras N95 são escassas. Caso seja preciso substituir antes de 30 dias, temos dificuldades para conseguirmos outra. O hospital inteiro possui pacientes de Covid-19. Não temos um fluxo organizado, os profissionais atuam cada um de uma forma. Trabalhamos com um número muito reduzido de profissionais. É muito estressante não poder sair para fazer necessidades básicas por medo de contaminação no momento da desparamentação. Eu tenho pavor de levar contaminação para meu filho de dois anos e meu marido. Luto contra a ansiedade, momentos de extrema tristeza, irritabilidade e apreensão todos os dias. Me sinto exausta”.

Defesa do SUS

Lírio, que trabalha tanto na rede municipal quanto na rede estadual de saúde, relata que os problemas enfrentados pelos profissionais variam. “O contexto pandêmico dentro das instituições nas quais trabalho apresentam diferentes ações de prevenção e disponibilização de EPI. No município falou-se muito da doença, mas pouco se fez quanto à oferta de EPI. Chegou-se mesmo a se defender o não uso do equipamento de proteção, com protocolos focados em assintomáticos. Já na rede estadual , o foco foi maior e houve antecipação na compra de materiais. Com a chegada doença com mais intensidade, as demandas se multiplicaram e a dispensação de EPIs passou a ser cada vez mais difícil. É muito intensa a luta dentro das instituições para garantir qualidade e segurança”,disse. 

Segundo ele, essa variação também se refletiu na jornada de trabalho. “Houve diferença entre as redes. Em uma delas, a carga horária foi reduzida com o objetivo de proteger o profissional. Na outra, a perda de profissionais resultou no aumento de horas trabalhadas, produzindo um ambiente ainda mais inseguro em virtude do cansaço”.

Lírio acredita que o momento é de fortalecer a luta da categoria e a defesa da saúde pública. “É um momento delicado. Parece que a sociedade está percebendo a importância que temos e também a do SUS. A enfermagem deve, como categoria, lutar por qualidade, segurança e valorização do profissional”.

Esses depoimentos falam por si a respeito da tragédia que assola o país e da importância de se valorizar os profissionais de saúde e defender o SUS como patrimônio essencial para a vida do conjunto do povo brasileiro. 

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