Margarida Maria Alves: “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”

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GUERREIRA – Margarida Maria Alves em meio a luta no dia primeiro de maio. (Foto: Reprodução/Arquivo)

José Levino
Historiador

RECIFE (PE) – Apesar das leis impostas pelo Governo de Getúlio Vargas, os trabalhadores, no período 1945-1964, tentaram quebrar a rígida estrutura sindical com a realização de vários congressos sindicais unitários, continuação das greves e criação de muitos movimentos como o Movimento Unificado dos Trabalhadores (MUT), em 1945, o Pacto de Unidade e Ação (PUA) em 1960, O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e a Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco (Fetape), ambos em 1962, junto com a famosa greve dos 7.000, em 1963, que obteve aumento de 80% no salário dos trabalhadores canavieiros de Pernambuco.

Assim, passaram a ser fundados os sindicatos rurais, no término dos anos 50 e início dos anos 60, pelos trabalhadores. Os primeiros sindicatos foram reconhecidos no Congresso de Itabuna, pelo Ministério do Trabalho, entre eles os de Panela, Timbaúba e Jaboatão. Durante todo o período de 1945 a 1964, o movimento sindical chegou a ter uma força muito grande. No momento em que se encaminhavam essas lutas é que se deu o golpe militar de 1964. Devido à forte repressão dos militares, de 1968 a 1974 o movimento sindical teve que atuar quase na clandestinidade.

Foi nesse período que se expandiram os grupos de trabalhadores nas fábricas e nas comunidades de base, no campo e na cidade. Passaram a fazer um trabalho miúdo de implantação e de lutas. Estes grupos de base deram origem, a partir de 1974, à nova fase do sindicalismo na história brasileira.

Quem é Margarida?

Às cinco horas da manhã do dia 12 de agosto de 1933, no agreste de Alagoa Grande, na Paraíba, nascia a líder sindical Margarida Maria Alves, que logo aos oito anos de idade começou a trabalhar a terra. Nascida de uma família de onze filhos, entre os quais seis mulheres, ela sempre foi de tomar iniciativas de justiça. João Senhor, proprietário rural em Alagoa Grande e dono da terra onde nasceu e trabalhava a família de Margarida, expulsou sua família da terra. Margarida não se curvou. Entrou com uma ação trabalhista, e conseguiu que seus pais recuperassem a terra. Católica por tradição, frequentava a igreja de sua terra natal, sob a orientação do Padre Geraldo, pároco local e responsável pelo seu ingresso no sindicato, aos 18 anos de idade.

A Pedra no Sapato dos Patrões

Os trabalhadores passaram a confiar e ver em Margarida uma líder nata, elegendo-a tesoureira do sindicato por várias vezes e, logo depois, para sua presidente. O trabalho de base de Margarida, feito diretamente com a massa, de conscientizar o trabalhador para lutar pelos seus direitos, passou a incomodar os patrões. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande destacava-se na luta em defesa dos direitos dos trabalhadores rurais, desde 1980.

O início da campanha foi pela carteira assinada, depois pelo pagamento do 13º salário, pelo direito à greve, que para Margarida era inalienável, tendo em vista que somente com a greve os trabalhadores conseguem melhores salários e ter uma jornada de trabalho mais justa. Apenas no ano de 1983, de janeiro a agosto, o STR entrou com 57 ações trabalhistas contra alguns patrões, entre eles Agnaldo Veloso Borges, que posteriormente viria a ser seu assassino.

Margarida chegou a enviar, em 19 de fevereiro de 1983, um ofício ao usineiro Agnaldo Veloso Borges, em resposta a um recado mandado por ele mesmo, para que Margarida deixasse de criar caso, para seu próprio bem. O sindicato foi proibido de entrar nas propriedades para se reunir com os trabalhadores, que passaram a se encontrar na sede da entidade. A cada fim de semana, reuniam-se trabalhadores de uma ou duas propriedades, para discutir os encaminhamentos da luta.

“É melhor morrer na luta do que morrer de fome”

“E vocês fiquem certos de que não fugimos da luta. É mais fácil saber que tombamos do que dizer que nós corremos”. Eram estas as constantes palavras de Margarida em seus discursos. Em repúdio à proibição da entrada nas propriedades rurais, Margarida deixava claro que quem estava invadindo os direitos dos trabalhadores, ao não pagar o 13º salário, eram os proprietários. A luta era por aquilo que pertencia aos trabalhadores, direitos trabalhistas, “porque entendo que é melhor morrer na luta do que morrer de fome”.  As citações são do discurso de Margarida, na comemoração do 1º de maio de 1983, na cidade paraibana de Sapé, berço das Ligas Camponesas na Paraíba, e solo manchado do sangue de outro líder camponês, João Pedro Teixeira, assassinado em 02/04/1962 a mando de latifundiários liderados por Aguinaldo Veloso Borges.

1983: O Assassinato

Aconteceu numa sexta-feira, 12 de agosto, por volta das 17 horas. Quem conta é Severino Cassimiro, esposo de Margarida, que estava em casa com um filho do casal: “Em dado momento, ouvi uma grande explosão. Olhei para a porta onde se encontrava Margarida e deparei-me com seu corpo banhado de sangue. Fiquei chocado ao ver seu rosto completamente deformado e ela já sem vida”.

O vizinho Natanael Marinho viu três homens num Opala vermelho, dando voltas pela rua por onde andava Margarida. Um dos homens desceu do carro com um saco nas mãos, onde escondera a arma. Correu em direção a Margarida e deu-lhe um tiro à queima-roupa, de uma espingarda calibre 12. O criminoso desceu rapidamente a calçada, em direção ao Opala, que o esperava.

A notícia da morte de Margarida ganhou os jornais que publicavam o clima de grande comoção em Alagoa Grande, durante o enterro: “Cerca de mil pessoas entoavam cânticos de conotação político-religiosa” (Jornal União 14/08/83). Alagoa Grande passou a ter menos uma luz, a partir daquela tarde de agosto de 1983.

Com a Marca da Impunidade

O processo instaurado para apurar a identidade dos autores e mandantes do assassinato da líder sindical paraibana Margarida Maria Alves é mais uma demonstração, entre milhões, de quanto o poder judiciário brasileiro pratica uma “justiça” de classe.

Os depoimentos das testemunhas desde o início comprovaram o envolvimento do poderoso Grupo da Várzea, especialmente de Aguinaldo Veloso Borges (já falecido) e do seu genro José Buarque de Gusmão, o Zito Buarque. Os irmãos Amaro e Amauri José do Rego, executores do crime, estão foragidos desde a época do assassinato. Durante todo esse tempo, o único acusado que chegou a ser preso foi Zito Buarque, mas ficou apenas três meses na cadeia.

O julgamento foi adiado por seis vezes, num artifício jurídico destinado a alcançar a prescrição, mas, depois de um intenso movimento nacional contra a impunidade, ocorreu no dia 11 de julho de 2001, em João Pessoa. Só que o criminoso foi absolvido.

Não é difícil constatar a omissão e a parcialidade da “justiça” brasileira, que não puniu nenhum dos envolvidos no crime, mandantes ou autores. Os trabalhadores rurais, entretanto, são presos arbitrariamente e, por uma simples manifestação, ocupação de terras improdutivas ou desapropriação de alimentos para saciar a fome, são acusados de formação de quadrilha, roubo e violência, e lançados em cárceres insalubres, torturados e tratados de forma desumana.

Foi aceita uma representação apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). No dia 14 de dezembro de 2018, a CIDH decidiu pela responsabilização do Estado brasileiro pelo assassinato de Margarida, mas como não tem poder de aplicar penalidade, emitiu recomendações:

1. Reparação aos familiares da vítima, de cunho financeiro;

2. Investigação efetiva e plena em prazo razoável para identificar e sancionar os responsáveis pela morte (mandantes e executores);

3. Disponibilizar medidas de atenção a saúde física e mental dos familiares;

4. Adotar medidas para que tais fatos não se repitam, a exemplo da proteção a defensores de direitos humanos. Como era de se esperar, o Estado brasileiro fez ouvidos de mercador.

Margarida e as Margaridas

O dia 12 de agosto foi definido como Dia Nacional de Luta contra a Violência no Campo pela Reforma Agrária. Na data ou em dias próximos, se realiza a Marcha Nacional das Margaridas, liderada por mulheres trabalhadoras rurais, com a participação de movimentos sociais, sindicatos e organizações populares. A marcha que sai de todos os estados do país até Brasília, é coordenada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e neste ano de 2020 será virtual, em razão da pandemia da Covid-19.

Margarida deixou-nos uma grande lição: a da coragem e da persistência. Essa coragem passou a ser a bandeira da nova diretoria do sindicato. “Trabalhadores, não vamos temer nada, a não ser a Deus; vamos lutar porque, unidos, teremos forças para derrubar a prepotência e os poderosos, que não podem ficar eternamente de cima do muro, massacrando o pobre, prejudicando e usurpando aquilo que é nosso direito.” Palavras da líder camponesa.