Negar o direito ao aborto é uma forma de opressão, controle e perseguição às mulheres, cujo direito ao próprio corpo ou à decisão de ter filhos é posto à mercê do Estado para a manutenção do sistema capitalista.
Por Lorena Pires Barros
Rio de Janeiro
MULHERES – Sempre que o aborto é levantado como uma pauta no calendário de lutas da esquerda gera polêmicas imensas. Mas qual o verdadeiro motivo de tamanha censura em discussões como as sobre o aborto? Negar o direito ao aborto é uma forma de opressão, controle e perseguição às mulheres, assim como a esterilização involuntária, uma prática extremamente comum usada em mulheres marginalizadas em diversos países, como o é no Brasil. Em ambos os casos o objetivo é o mesmo: a concessão de um amplo controle do trabalho de reprodução da vida ao capital. À mulher não pode ser cedido o direito ao próprio corpo ou à decisão de ter filhos; esse controle deve ser reservado ao Estado para a manutenção do sistema capitalista.
Neste domingo (16), fundamentalistas religiosos “pró-vida” tentaram invadir o Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros (Cisam), em Recife (PE), para impedir o aborto legal de uma criança de 10 anos, que engravidou após ser estuprada pelo tio, fato que ocorria desde os seus 6 anos de idade. Com a gravidez comprovada e com direito previsto em lei de interromper a gestação, o Estado permitiu a realização de um aborto seguro, após grande pressão e repercussão do crime. A criança, vítima de estupro, foi exposta pela fascista e fanática bolsonarista Sara Winter, tendo o seu nome divulgado e identidade comprometida nas redes sociais.
Esse tipo de violência é comum no Brasil, país que tem uma legislação rígida em relação ao aborto, apesar de atualmente permiti-lo em caso de estupro, anencefalia ou risco de morte para a gestante. A falta de políticas públicas de natalidade e educação sexual levam a situações absurdas, como a revelada por uma CPI nos anos 1990, que constatou que 45% das mulheres em idade reprodutiva haviam sido esterilizadas. Estranhamente, as entidades que fizeram as cirurgias seguiam recomendações dos EUA.
Mais recentemente, o caso de Janaína Aparecida Querino, mulher em situação de rua que sofreu esterilização forçada em 2018 e gerou repercussão pública, nos fez rememorar esta violência. Aos prantos no maior programa jornalístico dominical da TV nacional, ela afirmou em entrevista que jamais desejou a operação da qual foi vítima.
No capitalismo, as mulheres são sempre as responsáveis por parir e cuidar dos novos seres humanos que serão força de trabalho no futuro, ou seja, por gerar novos trabalhadores e cuidar deles durante seu crescimento, muitas vezes sem a participação do próprio pai. O sistema capitalista não possui gasto algum com o processo de produção e reprodução biológica da vida, o que compõe uma importante parte do lucro da burguesia, já que o trabalho reprodutivo, que consiste em atividades básicas como o ato de cozinhar, limpar, lavar roupa e louças, etc., não é remunerado.
Essas atividades são essenciais e garantem a manutenção das forças produtivas, repondo a força de trabalho (daí o termo reprodutivo). Quanto trabalho feminino não pago está por trás dos homens mais bem-sucedidos da nossa sociedade? É por isso que ao capitalista não interessa políticas públicas que distancie a mulher dos trabalhos domésticos e reprodutivos.
No entanto, com tantas pessoas desempregadas no mundo, é justo que surja o questionamento: se já há mão de obra suficiente no planeta, por que motivo a burguesia não afrouxa o controle do trabalho reprodutivo? Simples, pois é por meio do exército de reserva, isto é, do exército de pessoas desempregadas, que o capitalista usa os trabalhadores sem emprego para pressionar pelo rebaixamento dos salários de quem está empregado, através do simples e cruel argumento: “Aceite o salário que te pago, caso contrário alguém lá fora pega seu lugar e ainda aceita salário menor”.
O mesmo tipo de questionamento pode surgir em relação aos procedimentos de esterilização involuntária, que também existem para manter o controle de natalidade. Esse tipo de procedimento costuma ser realizado em situações de pobreza, quando as mães têm muito mais filhos do que se espera que tenham e enfrentam situação de pobreza tão extrema que não há condições materiais para a reprodução da vida, não sendo interessante para o Estado provê-las.
Historicamente, a moral burguesa rejeita tudo o que não é reprodutivo e considera como obsceno, antinatural e pervertido. O aborto, a homossexualidade, os métodos contraceptivos são exemplos disso. Não é à toa que polêmicas em virtude da produção em escala de pílulas de farinha distribuídas pela indústria farmacêutica são comuns. No Brasil, isso aconteceu de forma pública em 1998, com a fabricação do anticoncepcional Microvlar, que distribuiu 600 mil comprimidos de pílula falsa para o mercado, e também em 2007, quando 200 mil mulheres usaram anticoncepcionais ineficazes distribuídos pela rede pública de saúde de São Paulo.
Mais: diversos são os ataques aos métodos contraceptivos como a pílula do dia seguinte ou o DIU, como ficou exposto ano passado com projeto de lei 261/2019, criado pelo deputado federal Márcio Labre (PSL/RJ), que defendia a proibição de ambos. A LGBTfobia como um projeto institucionalizado também é um exemplo, já que a subordinação da sexualidade à reprodução da força de trabalho torna a heterossexualidade o único comportamento sexual socialmente aceitável.
A Igreja também é uma importante peça desse tabuleiro. Desde 1890, o Estado no Brasil se diz laico. O que não se diz, no entanto, é que até hoje a separação em questão, isto é, entre a Igreja e o Estado, não saiu do papel. No congresso, a bancada religiosa conquista cada vez mais espaço e se mantém sendo uma das mais influentes nas decisões políticas, não permitindo um diálogo justo sobre a legalização do aborto, o que afeta profundamente a saúde pública do país e facilita o retrocesso desejado pela burguesia.
O que fica claro é que a sexualidade feminina, seja pelo meio que for, está sempre sob controle, seja através da lei, da medicina ou da dependência econômica das mulheres aos homens. A repressão sexual na família é um método importante para realizar esse controle. Sendo assim, pais, irmãos, maridos atuam como “agentes do Estado”, monitorando o trabalho sexual e assegurando que as mulheres forneçam serviços sexuais na medida que as normas de produtividade socialmente estabelecidas ditam.
A acumulação capitalista é estruturalmente dependente da apropriação de imensas quantidades de mão-de-obra e recursos externos ao mercado, como o trabalho doméstico não pago que as mulheres desempenham, sobre o qual os empregadores se apoiam para a reprodução da força de trabalho. Em outras palavras, as principais funções que reproduzem a classe trabalhadora ocorrem fora do local de trabalho. Este é o motivo pelo qual o capitalismo controla a reprodução social para sempre ganhar a batalha na produção. O capital explora compulsoriamente as mulheres – no mercado de trabalho, elas constituem a maioria nos empregos informais, recebem os salários mais baixos, enfrentam assédio, violência, etc. –, que ainda precisam conciliar duas jornadas de trabalho. O fim dessas realidades só é possível com o fim desse sistema de produção, com a coletivização do trabalho reprodutivo, com a desnaturalização do trabalho doméstico e a sua remuneração.
Apesar disso, até lá temos um longo caminho a percorrer e seguimos lutando: salário igual por trabalho igual, jardins materno-paternais, licença paga em casos de violência, redução da idade da aposentadoria, fim dos feminicídios, combate à LGBTfobia, educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer.
Excelente texto. Feminismo classista
Excelente artigo!