Por Acauã Pozino
RIO DE JANEIRO – Um debate que vem ganhando agradável protagonismo é o debate da opressão e exclusão as quais as pessoas com deficiência (PcDs) somos submetidas. Muito se tem discutido a respeito, seja nos diversos setores da academia, seja em espaços de militância, embora ainda com muita timidez nestes últimos.
O problema é que, embora haja muitos PcDs com uma perspectiva anticapitalista – vale lembrar que nossa existência não se resume à deficiência e que, portanto, construímos posições político-ideológicas como todo indivíduo –, falta ao debate do capacitismo uma perspectiva que tenha um horizonte revolucionário e que promova, consequentemente, emancipação concreta e não apenas ideal. Essa carência se faz notar, principalmente, em ambientes de militância. Minha intenção é, portanto, evidenciar a impossibilidade de se dissociar o capacitismo da luta de classes e, por conseguinte, lançar alguns acúmulos para a construção de um pensamento marxista anticapacitista.
Primeiramente é preciso mapear a trajetória histórica desta terminologia e desta opressão. O termo capacitismo, traduzido do inglês abilism pela antropóloga catarinense Anahí Guedes de Melo (uma das poucas vozes, aliás, que pauta um anticapacitismo anticapitalista de base marxista) trata da opressão que é exercida sobre um determinado conjunto de indivíduos em função de suas conformações corporais, que não se configurariam como “corretas” ou “funcionais”. Assim, em virtude de tais conformações corporais, essas pessoas seriam dadas como “menos capazes” ou “incapazes”, sendo definida pelo grau de distanciamento entre a conformação de seus corpos e a norma estabelecida.
Contudo, estas normatizações não se dão aleatoriamente ou por qualquer tipo de capricho separado de uma realidade histórica. Embora esta normatização de corpos tenha sempre existido dentro do que se conhece da história, o capacitismo tal como o conhecemos nasce de uma certa concepção de deficiência que surge pela mão de ideólogos ingleses em meados do século XIX com o advento da produção em massa e do consequente aumento de acidentes laborais. Estes ideólogos começaram a classificar esses trabalhadores acidentados como “disabled people” – em tradução literal, pessoas inabilitadas, pessoas inaptas. Ao traduzir-se ao português, cunhou-se o termo “deficiente”, por sua conexão semântica com déficit, defeito etc.
Esta concepção de inaptidão/inabilitação foi amplamente corroborada pelas ciências anatômicas da época – as mesmas que viriam a corroborar o racismo – e dominou o pensamento científico quase até os dias de hoje, sendo ainda um elemento constitutivo da análise de muitos profissionais que se debruçam sobre a vivência PcD (a maioria deles distanciados dessa vivência, vale ressaltar). Como a moral burguesa se desenvolve a partir do paradigma da produtividade, sobretudo do lucro, constrói-se uma superestrutura que concebe essas pessoas como desabilitadas, como inaptas, seja para a produção material, para a produção intelectual ou para sua própria autodeterminação.
Pensemos no seguinte: a forma molecular do capitalismo é a mercadoria, sendo a força de trabalho dos trabalhadores um “item” imprescindível na manutenção do domínio burguês e também uma mercadoria. A moral burguesa concebe a força de trabalho destas pessoas que possuem estas conformações corporais, semelhante à dos acidentados laborais, como mercadorias defeituosas. E no mercado apenas dois tipos de pessoa comprarão uma mercadoria defeituosa: aquele que, compadecendo-se da pobreza do vendedor, compre seu produto para depois descartar e aquele que não tiver a seu alcance estritamente nenhuma outra opção, nenhum outro vendedor que lhe possa vender o mesmo produto – sem defeito. Essa oscilação, entre a piedade e a repulsa, está impressa na moral burguesa e são raríssimos os espaços em que nós, pessoas com deficiência, não somos recebidas em nenhum desses dois termos. Às vezes, em um grau intermediário destes.
Portanto, é preciso que qualquer marxista consequente tenha em mente que, além da exploração das mulheres nesse sistema patriarcal, da exploração e genocídio do povo negro e periférico, além da criminalização e política de morte dirigida à comunidade LGBT+, é também preciso denunciar e combater a segregação, a invisibilização e o extermínio de pessoas com deficiência na sociedade capitalista. Sim, companheiros, extermínio.
No final do passado junho, um homem negro com deficiência deu entrada em um hospital dos Estados Unidos com sintomas de Covid-19 e teve seu tratamento negado em função da sua deficiência. Indagado por sua esposa, o médico alegou que Michael Hickson não receberia os cuidados relativos ao novo Coronavírus porque não tinha “qualidade de vida”. Algumas semanas depois, um sem-teto numa cadeira de rodas foi baleado por um policial (também nos Estados Unidos) por se negar a se levantar – coisa que não poderia fazer. No Brasil, também nessa época, um rapaz negro, surdo e autista foi morto pelas costas ao não reconhecer uma abordagem policial. Sim, companheiros, extermínio.
É muito importante que um marxismo consequente se proponha a pensar uma sociedade onde conformações corporais não sejam motivo de segregação. Sofremos discriminação na busca por emprego, ao não nos considerarem capazes de realizar tarefas simples de forma autônoma. Somos discriminados quando contratados, pelo mesmo motivo. Nas ruas, nos dizem que não deveríamos sair de casa. Nas instituições de ensino, somos o problema, a exceção, aquilo que precisa ser resolvido. Na cultura de massas, somos a referência negativa, a metáfora jocosa, ou quando muito o “exemplo de superação”.
Pessoas com deficiência são, antes de tudo, pessoas. Entender e praticar isso é a base do anticapacitismo. Entender e praticar isso, combatendo a lógica de produção tanto imediata como moral que nos ensina o lugar de marginalizados é a base do anticapacitismo revolucionário.
Existe um estilo de arquitetura chamado de “desenho universal”. Trata-se de um estilo de construção de edifícios, confecção e disposição de mobílias, equipamentos etc. que considere todas as conformações corporais e seja acessível a todas elas, por exemplo, portas e mesas acessíveis a cadeirantes, inscrições em Braille, interpretação em LIBRAS etc. Companheiros, considerando o que foi escrito por Marx e Engels – “De cada um segundo suas habilidades para cada um segundo suas necessidades” – o que é o comunismo, nosso horizonte de sociedade, senão o desenho universal aplicado às relações de produção e socialização?
Sou uma mulher com deficiência, negra e moro na favela. Muito bom ler esse texto assuntos que vem debatendo…
Adoreii