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domingo, 6 de outubro de 2024

Celso Furtado, economista amigo do povo

OPOSIÇÃO – “Você vai necessitar de apoios nessa luta dura contra privilégios e abusos de poder. Conte comigo sem reservas”. (Foto: Arquivo/Jornal A Verdade)
José Levino

RECIFE (PE) – “Você vai necessitar de apoios nessa luta dura contra privilégios e abusos de poder. Conte comigo sem reservas”. Estas foram palavras de dom Helder Câmara para Celso Furtado, ao tomar conhecimento do plano de ação para o Nordeste, apresentado pelo economista e aprovado pelo presidente Juscelino Kubitschek, em janeiro de 1959. Dois nordestinos históricos. Nesta edição, vamos falar da caminhada de Celso Monteiro Furtado em razão dos cem anos do seu nascimento, que aconteceu no dia 26 de julho de 1920 na cidade de Pombal, Alto Sertão da Paraíba.

A família se mudou em 1927 para João Pessoa, em 1932, para o Recife, e, em 1939, para o Rio de Janeiro, onde Celso se diplomou em Direito em 1944. No mesmo ano em que se formou, foi convocado para integrar a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Voltou para o Brasil em agosto de 1945, mês anterior ao fim da guerra. Resolveu conhecer melhor o Nordeste e constatou que as mudanças políticas em curso eram quase imperceptíveis, com as velhas estruturas dominando. Retorna a seguir para a Europa, para estudar na Universidade de Paris (Sorbonne). Em 1948, recebe o título de doutor em Economia com a tese A Economia Colonial Brasileira.

O interesse pela Economia veio da compreensão de que esta ciência é um instrumento para avançar no conhecimento da História, da vida humana. Concluído o doutorado, retorna ao Brasil e integra um grupo de economistas da Fundação Getúlio Vargas. Em 1949, muda-se para Santiago do Chile, assumindo função na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), entidade criada em 1948 pela ONU, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e social deste Continente.

A Cepal

Celso foi um dos responsáveis pela formação do Pensamento Cepalino. A análise da Cepal compreende a estruturação da economia em um Centro (Europa e EUA) e a Periferia (demais países). A periferia funcionava como produtora de bens primários destinados ao centro, por meio das exportações, e importadora de bens industrializados e serviços tecnológicos. A troca é desigual e o resultado das exportações não tem efeito multiplicador interno.

A saída proposta é a industrialização. Como isso depende da importação de equipamentos, propõe-se a substituição de importações, o que não acontecerá espontaneamente, pois não há poupança interna para investir. O Estado teria que assumir a responsabilidade. Não se trata de uma novidade, pois é o que acontecera no Brasil com a “Revolução de 30” sob o comando de Getúlio Vargas.

Superação da dependência e intervenção do Estado na Economia soam como heresia para o Centro, especialmente para os Estados Unidos, cujo governo se opusera à criação da Cepal e agora trabalha abertamente para liquidá-la até conseguir uma recomendação neste sentido por parte da Organização dos Estados Americanos (OEA). A ofensiva seria na Conferência do México, em 1951, mas as delegações latino-americanas se uniram e os EUA recuaram. Fundamental foi a posição dos representantes do Brasil, com determinação expressa do então presidente Vargas.

Vargas, avalia Celso, dotou o Brasil de bases firmes para a industrialização. Para não depender de investimentos externos, criou, em 1952, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Diante da redução drástica da entrada de capitais externos, estabeleceu controle sobre a remessa de lucros para o exterior.

A Conferência da Cepal, em abril de 1953, foi em Petrópolis (RJ). Havia no Brasil a confrontação entre o nacional-desenvolvimentismo do governo de Vargas e as forças associadas ou aliadas ao capital externo. Nas ruas, a campanha “O Petróleo É Nosso”, que triunfará com a criação da Petrobras, em outubro. Economistas defensores da liberdade do capital (liberalismo), a exemplo de Eugênio Gudin e Octávio Bulhões, chamaram as teses da Cepal de totalitárias e ineficazes, por defenderem a industrialização a partir das ações empresariais do Estado e do planejamento.

Em 1953, Celso Furtado volta ao Brasil, onde preside o grupo misto Cepal-BNDE, que elabora estudo sobre a economia brasileira, cujo relatório será utilizado por Juscelino Kubitschek para a elaboração do seu Plano de Metas. Getúlio não vê alternativa às pressões que levariam à renúncia ou a um golpe de Estado, senão suicidar-se (Leia a Carta-Testamento) em agosto de 1954. Neste ano, Celso lança seu primeiro livro, A Economia Brasileira.

Um Bolchevista?

Em 1955, retorna para a sede da Cepal, em Santiago; no ano seguinte, muda-se para o México; em 1957, pede licença por um ano, cursa pós-graduação na Inglaterra e, em 1958, afasta-se definitivamente da Comissão Econômica para a América Latina, vindo para o Brasil, onde assume uma Diretoria no BNDE. O presidente Kubitschek (1956-1961) o designa para dirigir um grupo de estudos sobre o Nordeste, o qual levará à criação da Sudene, em 1959.

Uma série de debates foi promovida em todo o país com resultado positivo em ambientes diversos. Numa palestra em Recife, Assis Chateaubriand, dono do conglomerado de imprensa Diários Associados, disse sobre Celso: “Este é um novo Antônio Conselheiro, de fraque”.

Em 25 de abril de 1959, é instalado o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (Codeno) no Recife. Sua primeira missão foi elaborar um plano diretor para o Desenvolvimento da Região e encaminhá-lo para aprovação do Congresso Nacional.

O ponto de partida para o novo desenvolvimento do Nordeste foi a irrigação do semiárido, aproveitando as águas permanentes do Rio São Francisco e as águas represadas em açudes e barragens construídos para combate à seca. A ideia era implantar um projeto de irrigação para produção de alimentos que pusesse fim à promiscuidade entre os patrimônios público e privado, em benefício de poucos grandes fazendeiros.

Seguindo as linhas gerais adotadas em países centrais, o projeto previa a desapropriação de parte dos latifúndios para organização de unidades familiares, podendo o proprietário ficar com a maior parte, desde que aderisse à agricultura irrigada; a orientação era evitar culturas permanentes de modo a permitir reversão para produção exclusiva de alimentos de uso local em períodos de seca.

Antes de ir para o Congresso, o projeto foi enviado aos governadores. Os latifundiários nordestinos apontaram armas contra Celso, acusando-o de “Astuto economista empenhado em bolchevizar o Nordeste”. O Departamento Federal de Segurança Pública apresentou uma ficha que denunciava Celso como agente do comunismo internacional. As acusações delirantes não o afetaram, segundo ele, graças aos setores favoráveis ao projeto, a firmeza do presidente JK em mantê-lo na função e a simpatia da imprensa do Centro-Sul.

Sudene e Aliança para o Progresso

O projeto de irrigação do Codeno foi substituído no Congresso por outro afinado com os interesses dos fazendeiros, mas derrotado na batalha dos vetos. A seguir, a batalha foi para a aprovação da lei de criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Tanto na Câmara quanto Senado a tática da oposição foi atacar pontos do projeto, de modo a manter inalteradas as bases da “indústria da seca”. Houve mobilizações favoráveis e, finalmente, a Sudene foi instituída no dia 15 de dezembro de 1959, com a Lei nº 3.692, aprovada contra a vontade da maioria das bancadas nordestinas. Celso foi nomeado Superintendente. Em abril de 1960, o Conselho Diretor encaminha ao Congresso o Primeiro Plano Diretor, que reunia eletrificação, recursos hídricos, transporte, mineração, acesso ao ensino básico, incentivo a investimentos privados no setor industrial. O Plano demorou um ano e sete meses no Parlamento.

Fora FMI!

No ano de criação da Sudene, a balança de pagamentos não ia bem, o que motivou a vinda do FMI para impor suas políticas de redução de gastos públicos, arrocho salarial e outras medidas do tipo, tudo que leva à recessão. JK, que estava gastando muito com a construção de Brasília, anunciou aos assessores sua disposição de enfrentar os Estados Unidos. Eles ouviram calados, menos Celso, que deu a maior força e redigiu a justificativa para a decisão, na qual deixava claro que “a política de desenvolvimento do país não seria sacrificada para satisfazer exigências doutrinárias de uma agência multilateral que estava longe de desempenhar a missão para a qual foi criada”.

Desde a eleição de Jânio Quadros para a Presidência da República (outubro de 1960), começa a campanha para “tirar o comunista da Sudene”. Entretanto, para surpresa geral, Jânio o mantém no cargo e lhe confere o status de ministro. O Plano Diretor permanece nos corredores do Parlamento, mas algumas ações que se enquadram no plano são encaminhadas com recursos do orçamento federal.

É no governo de Jânio que ascende à Presidência dos Estados Unidos o conhecido John Kennedy, do Partido Democrata, portador de uma visão reformista do capitalismo, especialmente quanto às relações com a periferia. Logo, Kennedy manda ao Nordeste uma comissão, preocupado com as agitações promovidas pelas Ligas Camponesas. A comissão procura a Sudene e, segundo Celso, sai com a convicção de que o quadro social é grave, mas está sendo enfrentado com realismo, e a Sudene conta com credibilidade ampla. Kennedy acabara de lançar o programa Aliança para o Progresso.

Em julho de 1961, o Superintendente é convidado oficialmente para expor nos Estados Unidos o Plano Diretor da Sudene, obtendo a simpatia do presidente estadunidense, que o recebeu pessoalmente e disse que, para liberar recursos, só dependia do Congresso onde estava sendo debatida a Lei de Ajuda. Entusiasmado, Celso perceberia tempos depois que nem tudo era tão fácil como parecia. Na verdade, a Aliança para o Progresso virou um programa assistencialista, ao qual a Sudene não aderiu porque estava fora da estratégia do seu Plano Diretor. O órgão, então, passou a ser classificado de antiamericanista e Celso voltou a ser atacado pela grande imprensa. O Cruzeiro, revista de maior circulação nacional, destacou em letras garrafais “uma trama comunista no Nordeste da qual faria parte o marxista Celso Furtado para quem o combate a fome não conta”.

“Fantasia Desfeita”

Em 25 de agosto de 1961, Jânio renuncia. O vice-presidente João Goulart quase não assume, mas, uma vez na Presidência, nomeou Celso para Ministro do Planejamento. Em 14 de dezembro, é aprovado o Plano Diretor da Sudene, que, avalia Celso, proporcionou os recursos necessários para levá-lo adiante, destacando incentivos para a industrialização do Nordeste, realização de obras rodoviárias e de eletrificação. Políticos nordestinos pressionaram o primeiro-ministro Tancredo Neves (foi na fase do parlamentarismo) porque queriam recursos da Sudene para seus projetos eleitoreiros. Celso foi despedir-se de Goulart, mas este bateu o martelo e sentenciou: “Você fica. Volte para o Nordeste e continue seu trabalho”.

Na segunda metade de 1963, provavelmente tendo observado in loco que o plano diretor da Sudene estava longe de uma estratégia subversiva, Celso é convidado para conversar em Washington e integrar o Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso. Só pôde viajar em março de 1964, quando já estavam perceptíveis os sinais de gestação de um golpe de Estado, que ocorreria precisamente no 1º de abril.

Dia 31 de março, em seu gabinete, Celso Furtado toma conhecimento da sublevação militar em Minas Gerais. Dirige-se para o Palácio das Princesas e fica com o governador Miguel Arraes até o momento de sua prisão, na tarde do dia seguinte. Dirigiu-se então à Sudene, esvaziou as gavetas e comprou passagem para Brasília, onde, no dia 4 de abril, ouviu pelo rádio a relação dos cidadãos que tiveram seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional nº 1. Celso estava na linha de frente.

Embarca para Santiago do Chile, onde ministra palestras para o Instituto de Estudos do Desenvolvimento Econômico e Social (Ipes), ligado à Cepal. Não faltaram convites de universidades prestigiadas em todo o mundo. Ele lecionou nos Estados Unidos, França, Japão e cumpriu missões da ONU em diversos países e continentes.

Após a Anistia, em 1979, integra-se à luta pela redemocratização, vinculando-se ao MDB. Participa da Comissão de Elaboração do Plano de Governo de Tancredo Neves. Foi Ministro da Cultura do Governo Sarney e responsável pela primeira lei de incentivos fiscais à cultura. Depois da participação no Governo Sarney, anunciou seu afastamento da vida política, mas continuou na ativa. Escreve obras, integra a Comissão Mundial da ONU para a Cultura e o Desenvolvimento. Em 1997, torna-se membro da Academia Brasileira de Letras, e da Academia Brasileira de Ciências, em 2003, ano em que foi indicado para o Prêmio Nobel de Economia, mas não venceu. Foi homenageado pela ONU, em 2004, e, neste mesmo ano, faleceu de parada cardíaca em seu apartamento no Rio de Janeiro, aos 84 anos. Celso Furtado dizia que “O Fundamento da Liberdade é a Coragem”. Ele foi um homem livre, pois coragem nunca lhe faltou.

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