Maior liberdade para a circulação do dólar, incentivo à produção privada e diminuição das subvenções públicas são algumas das medidas do governo do presidente Miguel Díaz-Canel para fazer frente à forte crise econômica agravada pela pandemia e pelo bloqueio promovido pelos EUA.
Sandino Patriota
SÃO PAULO – A tradicional marcha que reúne centenas de milhares de pessoas em comemoração ao triunfo da revolução cubana, no dia primeiro de janeiro, não ocorre este ano. As medidas de distanciamento social impostas pela pandemia não permitem grandes aglomerações, e por esse motivo o triunfo será comemorado com atos em diversas comunidades, marcando um início de ano que promete ser lugar de importantes mudanças para a economia e para história da revolução cubana.
De todas as nações deste continente americano, foi a soberana ilha caribenha de Cuba a que enfrentou com melhores êxitos os efeitos da pandemia da Covid19. Os números falam por si. Foram menos de 11 mil casos e 145 mortos, para uma população de mais de 11 milhões de habitantes. Nenhuma criança, profissional de saúde ou gestante morreu pelo coronavírus. Como comparação, podemos ver que apenas no estado de Pernambuco, com cerca de 9 milhões de habitantes, a pandemia matou mais de 9 mil pessoas. Isso foi alcançado garantindo ainda a permanência do trabalho das brigadas de solidariedade Henry Reeve, que mantém mais de 3 mil médicos em ações de solidariedade em diversos países do mundo. No entanto, o baixo número de contágios e mortes não mitigou os graves problemas econômicos vividos na ilha.
O presidente Díaz-Canel resumiu assim os acontecimentos deste ano que é um dos mais difíceis para a economia cubana desde a crise dos anos 90: “tivemos menos comida, transporte, mas também menos contágios, doentes e mortos. Isso só se explica porque tivemos mais justiça social, mais socialismo”. O governo anunciou que o PIB nacional decresceu 11% em 2020, e o déficit nas contas públicas será de 86.744 bilhões de pesos.
Para além dos números econômicos frios, o que mais castiga a população da ilha é o desabastecimento de produtos essenciais, as filas para compras de itens básicos, inclusive material de construção, e as dificuldades no fornecimento de energia elétrica e combustíveis. Após 60 anos de sua revolução nacional, a ilha que viveu um período de prosperidade com o apoio da União Soviética nos anos 70 e 80, não alcançou ainda um processo de industrialização que garanta uma independência econômica compatível com sua altivez e soberania nacional.
O problema da produção social
Dois fatores são grandes entraves para a construção do socialismo e o desenvolvimento econômico em Cuba. De um lado as imposições naturais insulares, ausência de acesso às matérias primas modernas (petróleo, quedas de água para energia elétrica) e as limitações próprias de um território e população reduzidos. De outro, o violento embargo econômico da maior potência mundial, os EUA, impedindo o acesso justo ao comércio internacional e gerando prejuízos trilionários. Vencer esses dois entraves sempre foram os desafios dos governos cubanos, que agora buscam outras armas econômicas.
De acordo com Ricardo Torres Pérez, doutor em economia pela Universidade de Havana, o início do atual processo de reformas econômicas tem lugar no ano de 2011, com a aprovação do programa de atualização do modelo econômico e social cubano. Desde aquele ano, o objetivo é criar uma perspectiva de mais longo prazo na agenda econômica nacional. Ricardo Torres afirma que junto às empresas estatais tradicionais, que seguem sendo dominantes, está delineado um crescente setor privado e cooperativo, conformado por empresas estrangeiras e, inclusive, indivíduos que realizam atividades informais, algumas de grande impacto em áreas sensíveis como o comércio varejista.
A principal medida que passa a vigorar no início deste ano de 2021 busca impulsionar exatamente a atividade deste setor privado no interior da ilha, acabando com o controle do dólar através do peso conversível, conhecido como CUC e criado em 1994 exatamente para limitar a circulação da moeda estadunidense. Com o fim do CUC, a relação entre a moeda cubana (peso cubano, conhecido como CUP) e o dólar passa a ser regida pelas próprias leis de mercado, sendo o dólar aceito nas transações entre empresas e para compras correntes no interior do país, tabelado pelo governo a 24 pesos cubanos (CUP). O governo cubano considera que, dessa maneira, haverá aumento de investimentos e a relação entre o setor privado e estatal será mais dinâmica, impulsionando o mercado interno.
O anúncio do fim do peso conversível veio junto com outros dois anúncios de impacto para a população cubana. O governo declarou, de um lado, a retirada de subsídios à produção de energia elétrica, aumentando o preço da tarifa, e de produtos da cesta básica de alimentos fornecidos a grande parte da população. Por outro lado, anunciou o aumento do salário mínimo nacional para 2.100 pesos, um aumento de 400%. As pensões e aposentadorias também foram aumentadas.
O governo também anunciou a retirada dos subsídios às empresas estatais, que vão passar a ser exigidas em critérios de lucratividade em 2021. As empresas que geram déficit financeiro terão um ano para se recuperar, até que o estado retire seus subsídios. O pesquisador da Universidade de Havana, Ernesto Wong Garcia, opinou que ao melhorar os salários e reduzir os subsídios vai haver uma maior necessidade de produção, gerando um mercado maior.
A grande preocupação expressa em todos os debates nacionais e presente nos discursos dos representantes do governo tem um nome bastante conhecido aqui no Brasil: inflação. O critério do lucro como motivo da produção aumenta seus custos relativos no primeiro momento e gera aumento de preços em um ambiente com pressão monetária estrangeira. A possibilidade de aumento excessivo dos preços fez o governo recuar no montante do aumento da tarifa de energia prevista, anunciar a manutenção do subsídio aos preços de medicamentos e medidas repressivas contra especuladores e empresários com práticas abusivas.
O caminho de Cuba
Ser a única nação verdadeiramente independente e soberana do continente latino-americano é uma conquista do seu corajoso povo e, ao mesmo tempo, um peso às vezes demasiado para uma ilha com tão poucos recursos que sofre o isolamento imposto pelo vizinho do norte. Apoiar a soberania cubana, seu direito à autodeterminação sem ingerência de nenhum imperialismo, é também conhecer o caminho que Cuba tem escolhido, sem ilusões ou enganos.
As mudanças econômicas impulsionadas no ano de 2011 e aprofundadas a partir de 2021 vão gerar, cada vez mais, uma classe de capitalistas em Cuba, com negócios dentro e fora da ilha. O pequeno capital, que pode se tornar grande, tende a exercer nos próximos anos uma pressão política maior no interior do país, ameaçando as conquistas sociais que fundamentam a sociedade cubana. Estes capitalistas pequenos e médios tendem a se tornar, em alguma medida, representantes dos interesses dos imperialistas no país na medida que seus negócios são mais lucrativos a partir de uma relação de dependência com os países estrangeiros.
Esses são perigos reais, muito provavelmente levados em conta pelo governo e pelo Partido Comunista Cubano, mas que por si só não dão conta de revelar qual então o caminho mais indicado para o desenvolvimento da economia cubana. Uma revisão histórica do período de relações entre Cuba e União Soviética permite verificar como o alçamento econômico e a industrialização da ilha, em um sentido mais amplo, não foram alcançados, tornando o país dependente da monocultura da cana de açúcar e trazendo consequências para o período atual. Ao mesmo tempo, permite ver a força ideológica da revolução nacional cubana, que mesmo diante de um desastre econômico como o ocorrido na década de 90 manteve seus valores e soberania de pé.
O sistema que tem seu motivo de produção centrado no lucro, o capitalismo, vive uma crise de enormes proporções e não pode oferecer hoje sequer um emprego para parte importante da população, vítima do desemprego estrutural. O setor de serviços ganhou relevância principal em todos os países ocidentais, concentrando o fundamental da classe trabalhadora, enquanto a indústria de transformação cada vez emprega menos pessoas.
A tarefa de construção do socialismo nos dias atuais precisa levar em conta esses fatores e construir saídas para uma produção industrial independente, que eleve a produtividade do campo, em uma lógica produtiva distinta da monocultura e tornando cada país autossuficiente e soberano em sua alimentação; garanta água, energia e conexão de internet para a produção e o consumo, explorando as possibilidades tecnológicas adequadas à condição geográfica e climática e cada país; e construa condições viáveis de transporte público e moradia de qualidade para o conjunto da população.