Juliete Pantoja, Giovanna Almeida, Heron Barroso e Raphael Almeida estão sendo acusados pelo Supermercado Mundial de extorsão e associação criminosa por participarem de manifestação no supermercado contra a fome e o aumento do preço dos alimentos. Caso está sendo acompanhado pela Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ
Por Redação Rio
LUTA POPULAR – A rede de supermercados Mundial, uma das maiores do Rio de Janeiro, registrou boletim de ocorrência na 5ª Delegacia Policial, no centro da cidade, contra quatro manifestantes que participaram de protesto contra a fome e o aumento no preço dos alimentos em uma de suas lojas, na Rua Riachuelo, no último dia 17 de dezembro.
O ato foi organizado pelo MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas, que há mais de 15 anos promove ações semelhantes em todo o país às vésperas do natal para denunciar a existência de milhões de famílias famintas, enquanto as grandes empresas e meios de comunicação celebram hipocritamente o espírito natalino de fraternidade e solidariedade.
Os denunciados pelo Mundial por extorsão e associação criminosa são Juliete Pantoja, coordenadora do MLB no Rio de Janeiro, Giovanna Almeida, militante da UJR e do Movimento Negro Perifa Zumbi, Heron Barroso, que cobria a manifestação pelo jornal A Verdade, e Raphael Almeida, diretor da UEE-RJ. Todos estão sendo acompanhados pela Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ. O inquérito policial, que foi concluído pelo delegado responsável sem ouvir os acusados, ainda aguarda parecer do Ministério Público (MP-RJ).
Segundo os representantes do supermercado, os manifestantes entraram na loja “todos vestidos de camisas na cor vermelha, faixas e megafone ‘exigindo’ a entrega de 150 cestas básicas”. Omitiram, contudo, que, semanas antes, o próprio MLB havia entregue ao Mundial ofício solicitando a doação de cestas básicas para famílias sem-teto organizadas no movimento e que vivem em situação de extrema pobreza devido à crise e ao desemprego, aprofundados pela pandemia de Covid-19.
“A fome mata mais pessoas do que AIDS, malária e tuberculose juntas! No Brasil, segundo o IBGE, mais de 65 milhões de pessoas não se alimentam o suficiente para viver com saúde e qualidade. Por isso, o MLB promove todos os anos esses protestos. São ações pacíficas de repúdio à desigualdade social e à pobreza, que ficam mais escancaradas durante as festas de fim de ano. Mas, o Mundial está preferindo tratar a questão como um caso de polícia”, afirma Juliete, uma das acusadas.
Lutar não é crime
Para o MLB, o objetivo do Supermercado Mundial com essa denúncia não é outro senão intimidar o movimento e criminalizar uma manifestação justa e necessária contra a escandalosa escalada no preço dos alimentos de primeira necessidade para as famílias mais pobres.
As acusações contra os quatro manifestantes são graves, apesar de mentirosas. Segundo o Código Penal brasileiro (art. 158), extorsão “é o ato de obrigar alguém a tomar um determinado comportamento, por meio de ameaça ou violência, com a intenção de obter vantagem econômica”. A pena é de quatro a dez anos de prisão, além de multa. Já associação criminosa (art. 288) consiste no fato de “associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”, e tem pena de um a três anos de prisão.
Entretanto, os vídeos do protesto disponíveis nas redes sociais mostram claramente que nem os quatro acusados nem o MLB em momento algum obrigaram o Mundial, “por meio de ameaças ou violência”, a atender a reivindicação das cestas. “Ao contrário. Após duas horas de manifestação, a própria coordenação do movimento decidiu deixar o local da mesma forma que entrou, ou seja, pacificamente. Prova disso é que a polícia militar estava presente e não precisou intervir. É um absurdo caracterizar isso como um ato de extorsão”, protesta Juliete.
“A acusação de associação criminosa contra um movimento social como o MLB é caluniosa e tão absurda que só pode ser fruto da vontade dos representantes das elites econômicas que dominam a economia brasileira de intimidar, sufocar e criminalizar toda e qualquer manifestação de inconformismo ou protesto da classe trabalhadora e do povo pobre”, conclui Juliete.
Giovanna, outra acusada, também contesta a denúncia do supermercado. “Durante e após o ato, recebemos várias manifestações de apoio dos clientes que estavam no local e de moradores da região pelas redes sociais. Todos dizendo que a iniciativa do MLB de protestar contra a fome e a carestia era muito importante. Percebíamos esse apoio, inclusive, dos próprios funcionários do supermercado, que também são prejudicados com a inflação, pois recebem baixíssimos salários do Mundial”.
Pandemia: desemprego e morte para os pobres, lucros para os ricos
O Mundial é uma das maiores redes de supermercados do Rio de Janeiro. Possui 19 lojas espalhadas por toda a capital e uma em Niterói. Seus lucros bateram recordes com a pandemia devido ao aumento descontrolado dos preços dos alimentos.
De fato, em 2020 o preço do arroz e do feijão chegou a subir 69,5%, do frango 14%, do leite 24,9%, da carne suína 30,05%, da batata 55,9% e do açúcar 20,54%.
Mas, ao que parece, os bilhões que seus donos faturam todos os anos não se devem apenas à especulação com os preços dos produtos que vendem. Há fortes suspeitas de que um megaesquema de sonegação fiscal também engorda o caixa da empresa.
Isso foi revelado pela operação “Armadeira 2”, realizada no dia 18 de novembro do ano passado, pela Polícia Federal e o Ministério Público Federal, para investigar a existência de um esquema para blindar os supermercados Mundial e Guanabara de fiscalizações pela Receita Federal.
Segundo a Receita Federal, o esquema contava com “um complexo arranjo que buscava reduzir a cobrança de tributos devidos ou blindar empresas de fiscalizações”. Entre as irregularidades investigadas estão o “sumiço” de R$ 3,2 bilhões do sistema da Receita e um suposto acordo para reduzir ou cancelar a cobrança de tributos das duas redes de supermercados em troca de propinas milionárias. A Justiça Federal Criminal do Rio de Janeiro determinou o bloqueio de bens dos investigados em quase R$ 520 milhões.
Um verdadeiro escândalo, que deveria ocupar a primeira página dos jornais e repercutir nacionalmente, mas que vem sendo ocultado pela grande mídia, pois Mundial e Guanabara estão entre os dois maiores anunciantes comerciais dos jornais e TVs cariocas.
Trabalhadores do Mundial estão entre os mais explorados do RJ
Enquanto gastam verdadeiras fortunas comprando o silêncio da imprensa com propagandas de suas “promoções”, os donos do Mundial se mostram assustadoramente avarentos quando o assunto é doar cestas básicas para famílias necessitadas ou oferecer melhores salários e condições de trabalho para seus funcionários.
Segundo o Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro, o Mundial foi uma das primeiras empresas a pôr em prática as novas leis aprovadas com a Reforma Trabalhista. A rede cortou o pagamento adicional de 100% sobre as horas trabalhadas aos domingos e feriados, reduziu as horas-extras a que os funcionários tinham direito de duas para uma e reduziu, assim, o salário de muitos trabalhadores pela metade. Quem protestou foi demitido. Apenas depois de muita pressão da categoria e da ameaça de greve é que a empresa decidiu voltar a pagar o adicional para quem trabalhar aos domingos, mas manteve a suspensão do pagamento em feriados.
Também são comuns protestos dos funcionários do Mundial contra as más condições de trabalho e baixos salários. “As empacotadoras são obrigadas a ir pro caixa, às vezes sem treinamento pra isso, e se tem algum prejuízo é a gente que paga”, denunciou ao sindicato uma trabalhadora da loja do bairro da Cacuia. “Estou aqui há anos na mesma função e nunca tive promoção. Mas sou o tempo todo mandado trabalhar em áreas onde o salário é maior, sob ameaça de tomar advertência. É muita humilhação para um pai de família”, completou um repositor da loja de Copacabana.
No início da pandemia, o Mundial chegou a se negar a fornecer álcool gel, máscaras e luvas aos funcionários que continuavam trabalhando e se expondo ao coronavírus. Foi preciso uma decisão da Justiça para que a rede disponibilizasse esses equipamentos de proteção e garantisse também a higienização das lojas e o controle de acesso de entrada e saída dos clientes.
Contra a criminalização dos movimentos sociais
Em resposta à tentativa de intimidação e criminalização do movimento, o MLB já está montando uma grande rede de solidariedade com outros movimentos sociais, sindicatos, entidades estudantis e de direitos humanos, parlamentares e com as comissões de Direitos Humanos da Câmara do Rio e da Assembleia Legislativa.
Segundo Juliete, é preciso fazer uma ampla denúncia desse absurdo que é qualificar a ação de um movimento social como crime. “Queremos não apenas que essa denúncia seja arquivada pelo MP-RJ, mas que se ponha fim de uma vez por todas em nosso país à criminalização da luta popular”, afirma a coordenadora do MLB no Rio de Janeiro.