“Ela era, essencialmente, um governo da classe operária, o resultado da luta da classe que produz contra a classe que se apropria; a forma política, finalmente descoberta, na qual se podia realizar a libertação econômica do trabalho” (V.I.Lênin)
Com a derrota dos revolucionários em 1848, seguiu-se um período de calmaria no movimento operário europeu e um sentimento de desânimo se apoderou das lideranças remanescentes. Karl Marx, armado das leis da dialética, tranquilizou a todos, afirmando que novas crises se sucederiam e que a luta seria retomada de maneira ainda mais forte.
De imediato, o proletariado não representava nenhuma ameaça, mas a contrarrevolução burguesa resolveu dar um golpe preventivo para impedir um novo ascenso do movimento revolucionário. Em 2 de dezembro de 1851, Luís Napoleão Bonaparte implanta um regime monárquico-ditatorial e se intitula príncipe-presidente com o nome de Napoleão III.
Seguiram-se anos dourados para o capitalismo. Expandiu-se a indústria, a urbanização cresceu e a França dominou outras nações. “A sociedade burguesa atingiu um desenvolvimento que nem ela própria esperava. Sua indústria e seu comércio adquiriram proporções gigantescas”. (Karl Marx, em A Guerra Civil na França)
Mas, ao mesmo tempo em que se desenvolve, o capitalismo gera contradições insolúveis, cavando a sua própria sepultura. Nesse caso, “a especulação financeira realizou orgias; a miséria das massas ressaltava sobre a ultrajante ostentação de um luxo suntuoso, falso e vil. O poder estatal, que aparentemente flutuava acima da sociedade, era, de fato, seu maior escândalo e o viveiro de todas as corrupções”. ( Karl Marx, obra citada)
Na política exterior, em vista de sua expansão colonialista, o regime bonapartista entra em choque com interesses da Prússia, que havia se fortalecido e liderava o processo de unificação da Alemanha, constituindo séria ameaça ao imperialismo francês. À Prússia, interessava guerrear com a França, pois, derrotando-a, estaria livre para dominar toda a Europa. A Napoleão III, interessava guerrear com a Prússia para dar continuidade, sem obstáculos, a sua política de dominação do Continente e, internamente, promover a união nacional, minimizando as reivindicações operárias e trazendo para seu lado a parte insatisfeita da burguesia francesa.
A Prússia provocou o governo francês, deixando de receber seu embaixador, que negociaria concessões territoriais. Considerando uma afronta tal ato, Napoleão III conclamou os franceses à união nacional e declarou guerra à Prússia no dia 17 de julho de 1870.
O proletariado volta às ruas
O proletariado parisiense volta a se mobilizar e a se organizar abertamente a partir do ano de 1862, tendo enviado representantes ao congresso de fundação da Associação Internacional de Trabalhadores (Londres, 1864). No ano seguinte, eclodem inúmeras greves com manifestações de rua e divulgação de um manifesto expondo à população as suas reivindicações. Entre as lideranças do movimento operário parisiense, predominam então as ideias de Blanqui (anarco-socialista) e Proudhon (socialista pequeno-burguês). Em minoria, as teses marxistas do socialismo científico.
Seguindo a orientação da AIT, parte do proletariado francês e alemão resistiu ao que considerava uma guerra de rapina. Nas duas nações, houve manifestações públicas em que se ouvia uma só voz: “Jamais esqueceremos que os operários de todos os países são nossos amigos e os déspotas de todos os países são nossos inimigos”.
Apesar disso, os partidários de Proudhon e Blanqui defenderam o engajamento do proletariado francês na guerra, considerando que se tratava da defesa da nação.
Foi um fracasso para a França. Em seis semanas, o exército imperial se rendeu-se (2 de dezembro de 1870), Luís Bonaparte foi aprisionado e as tropas prussianas marcharam rumo a Paris.
Arde o fogo da Revolução
Ante a derrota de Napoleão III, no dia 4 de setembro eclode uma insurreição em Paris. Operários e a Guarda Nacional ocupam o corpo legislativo e decretam o fim do império. A República é proclamada e eleito um governo provisório, também chamado de Defesa Nacional, composto apenas por representantes da burguesia.
As organizações operárias pediram armas para defender Paris, dado o iminente ataque prussiano. O Governo de Defesa Nacional se acovarda e fala, pela boca do general Trochu, chefe do Estado-Maior: “não podemos nos defender”. O povo, entretanto, exige resistência. O Comando tergiversa, realizando escaramuças em que se deixa derrotar propositalmente, enquanto negocia a paz, até propor abertamente a rendição.
Nem o proletariado civil nem a Guarda Nacional aceitam a rendição. Ao contrário, mobilizam o povo para a defesa da capital. O Governo Provisório capitula com a rendição do Marechal Bezaine, em Metz, no dia 27 de outubro de 1870, retirando 173 mil homens do combate. Diante disso, o proletariado passa a conclamar à derrubada do Governo Provisório, já denominado de traição nacional. Grande manifestação se realiza em Paris no dia 31 de outubro de 1870, exigindo eleições.
A essa altura, as classes dominantes francesas já viam, como principal inimigo, não o invasor prussiano. Mas sim o proletariado parisiense. Desencadeia-se intensa perseguição às organizações operárias e suas lideranças com o fechamento de sindicatos, associações e clubes de trabalhadores.
Paris cercada, sob incessante bombardeio dos invasores, repressão do governo burguês traidor, o povo suporta tudo, menos a rendição. “O frio, a fome, o bombardeio, as longas noites nas trincheiras, as crianças morrendo aos milhares, os mortos semeados nos ataques, tudo isso para acabar na vergonha. Parecia ouvir-se o escárnio prussiano. Em alguns, o assombro tornou-se fúria”. (Lissagaray, Prosper-Olivier, História da Comuna de 1871).
Essa fúria cresceu e foi se tornando coletiva, quando, a 28 de janeiro de 1871, o governo de “defesa” nacional divulgou as bases de um acordo de paz humilhante para a França. A Guarda Nacional, composta por operários, bem como parte do Exército e da Marinha, recusaram-se a entregar as armas, mas depois a maioria recuou, permitindo o avanço das tropas prussianas até os Campos Elíseos, onde estacionaram. Bismarck, comandante prussiano, conforme os termos do acordo, ficou aguardando a eleição da Assembleia Nacional a quem caberia aprovar os termos da rendição final.
Nas condições em que se realizam as eleições, o proletariado é derrotado pelos votos da Zona Rural. A Assembleia propôs a restauração da monarquia e nomeou Thiers, monarquista adepto da dinastia dos Orleans, como chefe do Governo.
Tomando o céu de assalto
De sua parte, a Guarda Nacional realizou, no dia 3 de março de 1871, uma Assembleia em que se constituiu como organização independente, aprovou seus estatutos e elegeu um Comitê Central, afirmando a República como “único governo de direito e de justiça”. Em represália, uma semana depois, a Assembleia Nacional transferiu a capital para Versalhes e suspendeu o soldo da Guarda. A medida revoltou todo o povo de Paris, exceto a grande burguesia. “O que os perigos do sítio não haviam conseguido, a Assembleia Nacional alcançou: unir a pequena-burguesia ao proletariado. A média burguesia sublevou-se; o afastamento da Assembleia feriu-lhe o orgulho, alarmava-a quanto a seus negócios”. (Lissagaray, Prosper-Olivier, obra citada)
A 18 de março de 1871, já se desencadeava a contrarrevolução burguesa. As tropas de Thiers tomaram da Guarda Nacional as colinas de Montmartre. O proletariado civil marchou para as colinas. O general Lecomte mandou as tropas abrirem fogo contra o povo, mas, para sua surpresa e terror, os soldados se confraternizaram com os operários e dispararam suas armas contra Lecomte e outro comandante, Clément Thomas. No mesmo dia, o proletariado “tomou o céu de assalto”, no dizer de Marx, ocupando as dependências governamentais e proclamando a Comuna de Paris.
O primeiro decreto da Comuna dissolveu o exército regular, substituindo-o pelo povo em armas, a Guarda Nacional Democrática. Logo nos primeiros dias, ficou claro que a máquina administrativa sabotava as ações do Governo Revolucionário e que era preciso organizar um novo tipo de Estado que garantisse o poder popular.
A organização político-administrativa se baseou na democracia de massas, tendo como organismo de base a comuna local e, como instância maior, a Convenção Nacional. O Conselho da Comuna, eleito pelo voto direto, tinha função executiva e legislativa. Quanto ao Judiciário, o Conselho nomeava os juízes de paz e havia eleição direta para os tribunais.
A Comuna confiscou as propriedades dos burgueses que haviam abandonado Paris, entregando-as para os operários explorarem de forma coletiva e suas residências foram destinadas a famílias sem casa, priorizando-se aquelas atingidas pelos bombardeios.
Quanto aos bancos, numa atitude surpreendente, a Comuna não expropriou seus ativos; ao contrário, levantou um crédito de 500 mil francos junto ao Banco Rotschild para garantir o funcionamento da administração e as necessidades básicas do povo.
Apesar do cerco, o abastecimento se deu de forma regular; não houve necessidade de racionamento; as mercadorias eram adquiridas pela Comissão Superior de Contabilidade e vendidas aos distribuidores pelo preço de custo, garantindo a todos o acesso aos produtos de primeira necessidade.
A Comuna proibiu as punições e multas aplicadas por patrões a seu bel-prazer e estabeleceu que a remuneração e as condições de trabalho fossem negociadas entre as partes, assegurando aos operários ampla liberdade de organização. Proliferaram as organizações sindicais, populares e de mulheres. Para o funcionalismo público, fixou-se o salário médio do operário, vedando o acúmulo de cargos.
Desesperada e incapaz de enfrentar Paris com suas tropas, a burguesia negociou com o invasor prussiano a libertação de soldados presos. Com isso, Thiers reuniu 170 mil homens autorizados a avançar pelas linhas prussianas, surpreendendo a defesa da Comuna que, acreditando numa pretensa neutralidade de Bismarck, não esperava ser atacada por aquele lado. Além disso, faltou à Comuna um comando militar centralizado. Imperavam na Guarda Nacional a desorganização e a indisciplina. O ataque de surpresa acabou de desnorteá-la.
A resistência maior foi mesmo do proletariado civil. Homens, mulheres, jovens e crianças defenderam resolutamente cada palmo de Paris revolucionária, a sua Comuna. Mas a superioridade das tropas burguesas em quantidade, qualidade de armamentos e treinamento foi decisiva. No dia 28 de maio de 1871, caía a última barricada operária.
Um massacre impiedoso
“Em 1848, a burguesia já havia mostrado a que extremo de crueldade e vingança era capaz de chegar sempre que o proletariado se atreva a defrontar-se com ela… E, apesar disso, 1848 não foi mais do que um brinquedo de criança, comparado com a fúria selvagem de 1871”. (Engels, Introdução à Guerra Civil na França, edição de 1891)
Cerca de 30 mil trabalhadores de todas as idades e sexo foram humilhados e executados sumariamente. Mais 40 mil foram deportados. A Internacional fez denúncias e mobilizações em todo o mundo, mas não conseguiu conter o massacre. Tratava-se de exterminar o maior número possível de combatentes. Foi tão grande a matança de operários que a indústria parisiense demorou a recuperar o nível de produção anterior à guerra civil.
Era das revoluções proletárias
A Comuna de Paris durou apenas 72 dias, deixando sérias e importantes lições. A principal, segundo Marx, é que o proletariado não pode tomar o poder e simplesmente pôr a máquina do Estado burguês para funcionar a seu favor. É preciso destruir esse aparelho e criar novas formas de organização e administração, ou seja, um Estado de novo tipo, de transição para a sociedade comunista em que esse aparelho será substituído pela sociedade organizada.
Derrotado pela burguesia, o proletariado parisiense foi vitorioso em nível mundial, do ponto de vista dos interesses históricos da classe operária, pois provou que é possível a sua emancipação e a construção do socialismo.
Com o extermínio dos operários de Paris, a burguesia acreditou ter posto termo à luta de classes. Ledo engano. A Comuna de Paris marcou o fim da era das revoluções burguesas e o início da era das revoluções proletárias. Os acertos e os erros dos seus primeiros passos mostraram a justeza do caminho. Iluminaram o proletariado mundial. Como disse Marx, ainda sob o impacto do sangue proletário derramado, “a luta voltará a eclodir muitas vezes, em proporções sempre crescentes. Não pode haver dúvida sobre quem será o vencedor: se os poucos que vivem do trabalho alheio ou a imensa maioria dos que trabalham”.
Alguns anos depois, o jovem proletariado russo comprovaria a veracidade de suas proféticas palavras.
Luiz Alves, da Redação
Publicado na edição nº 52 (2004)