Jorge Ferreira
São Paulo
Quem não se lembra do homem negro asfixiado até a morte por seguranças do Carrefour às vésperas do dia da Consciência Negra no último mês de novembro? João Alberto Silveira Freitas, ou Beto, como gostava de ser chamado pelos amigos, tinha 40 anos e trabalhava como soldador numa empresa de portões. Milhares de pessoas foram às ruas em protesto, avenidas foram trancadas e lojas queimadas. Em cinco dias, os donos do Carrefour anunciaram a criação de um fundo com R$ 25 milhões para combater o racismo, além da criação de um comitê com representantes de movimentos negro.
O assassinato de Beto e o modo como a burguesia atuou para desmobilizar as manifestações que tomaram conta do país são demonstrações de que no Brasil a luta antirracista é capaz de fazer os ricos tremerem de medo. Por isso, tudo fazem para impedir seu desenvolvimento, pois sabem que seu avanço é também o avanço da classe trabalhadora.
À viúva de Beto, a rede de supermercados ofereceu indenização de R$ 1 milhão, o mesmo valor pago pelo Carrefour quando, em 2018, um de seus seguranças foi flagrado espancando uma cachorra. Por outro lado, em março deste ano, a empresa, que ocupa o primeiro lugar em faturamento no setor de varejo no Brasil, anunciou a compra da rede BIG, antigo Walmart, por um total de R$ 7,5 bilhões. Com a compra, o grupo passa a ter um faturamento de R$ 100 bilhões, somando os R$ 74,9 bilhões do Carrefour, no ano passado, com R$ 24,9 bilhões do BIG. A verdade é que os ricos acham que podem comprar tudo, a vida, a dignidade humana ou mesmo a luta antirracista.
Mas, afinal, o que é luta antirracista?
As classes dominantes tentaram, ao longo dos séculos, enfiar goela abaixo a ideia de que o regime de escravidão foi abolido graças à benevolência de uma princesa e que, portanto, deveríamos celebrar o dia 13 de maio como a data em que, por meio de uma lei, os negros foram finalmente libertos.
Em contraposição, o pensador brasileiro Clóvis Moura ensina em sua obra Rebeliões de Senzala que, na verdade, foram os próprios negros os protagonistas da superação desse sistema que, durante quase 400 anos, construiu todas as riquezas do Brasil e de vários países europeus à custa do sangue de milhões de homens e mulheres negras, e que, apesar disso, os condenava à condição de coisa, objeto, propriedade. Foram as revoltas, a quilombagem (projeto político muito mais avançado que o das classes dominantes) o motor da História que possibilitou o fim da escravidão.
No entanto, em Dialética Radical do Brasil Negro, outro livro de Clóvis Moura, o autor também demonstra como se articulou o processo de abolição de modo que aqueles que eram escravizados, ao saírem da senzala, fossem condenados à marginalização, sem direito à moradia e ao emprego, e fossem ainda o principal alvo do sistema criminal e de todo tipo de violência do Estado.
Fica evidente não ser coincidência que aqueles que outrora eram escravizados hoje sejam a maioria da população carcerária, com uma grande parcela de presos que sequer foram julgados; ou que a grande maioria da população sem teto seja de negros; que a maioria dos desempregados e daqueles que ocupam os postos de trabalho com menor remuneração sejam negros; que a maioria dos assassinados pela polícia, ou mesmo perseguidos por seguranças de supermercado, sejam jovens negros.
Os capitalistas atuam para acreditarmos que o racismo é exclusivamente um problema entre indivíduos, de caráter, de preconceito, e que, portanto, basta criar um comitê antidiscriminatório que “ensine” as empresas e seus funcionários a não serem racistas. Fazem isso para esconder que a causa de todo o racismo está no sistema econômico que garante seus bilhões em lucros. Não querem que o povo compreenda que é o próprio racismo uma ferramenta de dominação para aumentar a exploração sobre a classe trabalhadora.
Portanto, a verdadeira luta antirracista não é para que meia dúzia de negros estejam em cargos de chefia, como querem fazer crer os reformistas, mas para que os milhões de negros e negras tenham uma vida digna; não é para chegar no topo da pirâmide, como pregam os movimentos liberais, mas para que não exista pirâmide, que sejam superadas as classes sociais.
A fúria negra ressuscita outra vez
No meio de uma pandemia que já matou mais de três milhões de trabalhadores em todo o mundo, os povos oprimidos e explorados lutam pelo fim do racismo e das injustiças do sistema capitalista. Os trabalhadores estadunidenses incendiaram diversas delegacias de polícia e organizaram grandes manifestações contra o assassinato de George Floyd, o que pressionou o sistema de justiça a compor um júri multirracial, que levou o policial assassino à condenação.
No Brasil, no entanto, a burguesia tem motivos para ter ainda mais medo das manifestações e da luta antirracista. Diferente dos Estados Unidos, aqui a maioria da população é de negros, o que evidentemente levaria a revoltas de proporções muitos maiores, uma vez que, para além da violência policial, são os negros a maioria de quem tem fome, frio, e que está morrendo na pandemia. Por isso, os ricos, quando precisam, rapidamente montam comitês antidiscriminatórios, criam fundos “para combater o racismo”, querem asfixiar também a verdadeira luta antirracista. Mas não tem jeito! A questão racial no Brasil é um barril de pólvora, central na luta de classes e nenhum dinheiro poderá deter a fúria negra.