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quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Eisenstein e a polêmica do filme “Ivan, o Terrível”: mais um mito anticomunista

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Em “Ivan, o Terrível: Parte I” e “Ivan, o Terrível: Parte II”, os dois últimos filmes da exitosa carreira do mais importante cineasta soviético, Sergei Eisenstein, produzidos entre 1944 e 1947, temos a narrativa dramatizada de um dos acontecimentos mais importantes da história da Rússia, quando Ivan IV é coroado o primeiro Czar de toda a Rússia e passa a empreender a difícil missão de unificar o grandioso território combatendo inimigos externos vindo do leste e do oeste, bem como a oposição interna da aristocracia feudal reacionária (os boiardos), do clero ortodoxo e dos Romanov, família de sua esposa.

A obra-prima em duas partes de Eisenstein, no entanto, é mais lembrada como um exemplo da “tirania” de Stálin em perseguir os artistas soviéticos, promover censuras por mero capricho pessoal e, conforme consta no artigo da Wikipedia, ter banido o filme por ter “ficado indignado com a representação de Ivan no longa-metragem” uma vez que o dirigente soviético se “identificava a si mesmo como um sucessor” do czar. Mas, será que a história é por aí mesmo?

Gabriel Borges


SÃO PAULO – Para quem conhece a vida e obra do dirigente soviético Josef Stálin, filtrada toda a propaganda anticomunista construída em cima dele e do Partido Bolchevique durante sua liderança, esse orgulho mesquinho em banir o filme por detratar a imagem de Ivan IV parece uma história muito mal contada pela burguesia. E de fato é! Vamos aos fatos.

Em primeiro lugar, é um fato que a produção do filme foi comissionada pelo Comitê Central do Partido em uma tentativa no período pós-guerra de elevar o nível artístico da cultura soviética e eliminar fraquezas de conteúdo ideológico e político. Como revela um documento do Comitê Central do PCUS de 4 de setembro de 1946, a preocupação do Partido e do Governo era o fato de que “muitos de nossos principais trabalhadores do cinema – produtores, diretores e roteiristas – estão assumindo uma atitude despreocupada e irresponsável em relação às suas obrigações e não estão trabalhando conscienciosamente nos filmes que produzem”. Mais pra frente conclui “Os trabalhadores da arte devem perceber que aqueles que continuam a ter uma atitude irresponsável e despreocupada para com seu trabalho, podem muito bem se achar supérfluos e fora das fileiras da arte soviética progressista, pois as exigências culturais do espectador soviético se desenvolveram e o Partido e governo continuarão a cultivar o bom gosto entre o povo e a encorajar a exigência de obras de arte”.

Havia uma preocupação com a forma muitas vezes apolítica que o Conselho de Arte e o Ministério da Cinematografia acompanhava a produção de filmes soviéticos. Diferentemente da sociedade capitalista onde a produção de entretenimento está intimamente ligada à disseminação da ideologia burguesa e da obtenção do lucro, na União Soviética o cinema era visto como uma gigantesca forma de emulação dos ideias socialistas, patrióticos e de estímulo ao povo, mesmo nos filmes “não diretamente políticos”.

Um segundo ponto é que reduzir a produção de um filme sobre Ivan IV a um capricho pessoal de Stálin é uma simplificação grosseira. Não era novidade no cinema soviético a produção de filmes sobre o passado pré-revolucionário da Rússia, muitas vezes como alegoria ao presente (um exemplo é “Alexander Nevsky” de 1938 do próprio Eisenstein sobre a vitória da Rússia sobre a invasão da Ordem Teutônica alemã, uma forma de emular a confiança do povo soviético a impedir a invasão dos nazistas). Os historiadores Kevin Platt e David Brandenberger esclarecem, em um artigo amparado em muitas fontes originais em russo*, que nas décadas de 30 e 40 a figura do primeiro czar foi muito recuperada nos meios de agitação do Partido, entre historiadores profissionais e no meio artístico como uma figura progressista de sua época por ter enfrentado as elites tradicionais feudais e da Igreja para tornar a Rússia uma nação unificada e respeitada, e, acima de tudo, com capacidade de se defender de poderosos inimigos que vinham tanto da Europa como da Ásia. Essa história, tal como de Alexander Nevsky, respondia muito bem à demanda de elevação da moral do povo soviético por meio da sua própria história para mostrar que a União Soviética era capaz de se tornar uma potência e expulsar os invasores externos como já havia feito no passado. Em determinado momento, Stálin chegou a dizer que a contribuição mais notável de Ivan IV foi ter sido o primeiro a introduzir o monopólio governamental do comércio externo, tendo sido Lênin o segundo.

O fato é que este era um debate aberto com narrativas sobre Ivan IV que iam desde os historiadores soviéticos até artistas de primeiro escalão como Sergei Eisenstein e Leon Tostói. O primeiro filme de Eisenstein sobre o tema foi marcado por mostrar como Ivan conseguiu liderar vitórias importantes e ser reconduzido ao poder mesmo isolado por traidores boiardos e pela Igreja graças ao grande apoio do povo à causa da Rússia livre e soberana. O segundo filme, porém, apesar de esteticamente irretocável (contando, inclusive, com as primeiras cenas coloridas filmadas pelo diretor), incorreu em algumas adaptações históricas que contribuíam muito para um estudo de personagem mais intimista e psicológico do czar, mas em contrapartida, na avaliação do Partido, esvaziava o significado político que se podia extrair daquela história para a emulação do povo.

Não se trata de avaliar se a avaliação artística que o Partido fez era certa ou errada, mas de provar que a questão nunca foi de cunho pessoal de Stálin e nem mesmo de uma censura, mas de uma orientação do Partido quanto aos frutos positivos que o filme poderia ter caso se apegasse mais a certos detalhes da história. Uma discussão, documentada e traduzida pelos camaradas da “Revolutionary Democracy” da Índia é reveladora. No final de 1947, a direção do Partido Comunista na figura de Stálin, Zhdanov e Molotov se reuniu com o diretor Sergei Eisenstein, o protagonista Nikolay Cherkazov e um certo “M.S” a pedido do própria equipe do filme após receber as primeiras críticas do Partido.

Em uma conversa bastante leve, incisiva apenas em alguns momentos, percebe-se claramente que as críticas do Partido se concentravam em três questões essenciais:

  1. Ivan parece muito indeciso e manipulável, com um foco muito grande no seu psicologismo e pouco na visão nacional e avessa à invasão estrangeira. Do mesmo modo, a oprichnina (a guarda pessoal formada pelo czar) se pareceria mais com uma Ku Klux Klan do que com um exército regular paralelo aos exércitos dos inimigos feudais;
  2. Há pouco foco nas situações, de forma que as atitudes extremas do czar parecem deslocadas e sem justificativas. O Partido orienta dar mais ênfase nos incidentes históricos para não parecer que Ivan era apenas um louco.
  3. Ao contrário do primeiro filme, o povo mal aparece nesta segunda parte, com os conflitos reduzidos às disputas da corte. Molotov sugere “a segunda série é muito restrita em cúpulas e abóbadas, não há ar fresco, nem Moscou mais ampla, ela não mostra as pessoas. Pode-se mostrar conversas, repressões, mas não isso.

A discussão segue com outros pequenos apontamentos e conversas sobre as atuações, com Stálin recomendando a Eisenstein que seria melhor não ter pressa em lançar o filme para garantir a qualidade. O documento encerra demonstrando uma amistosidade, inclusive com Stálin desejando boa sorte e empolgação com o resultado final do filme.

Como se vê a partir da documentação e da análise honesta dos fatos, a ideia-comum da censura e do orgulho de Stálin é mais uma mentira criada pela burguesia para desprestigiar a arte soviética e a política do Partido. Em tempos de guerra, principalmente para nações novas, é uma operação muito comum usar o passado como emulação ao presente, mas quando se trata da primeira nação proletária do mundo, a burguesia e seus intelectuais e propagandistas faz parecer mais um desígnio individual da mente insana de um ditador.

Independentemente se as sugestões feitas pelo Partido eram as mais corretas ou não do ponto de vista artístico, é preciso combater os ataques do capital à arte soviética. Eisenstein acabaria morrendo antes de terminar o filme, e a Parte II sem as alterações que a equipe estava disposta a fazer foi lançada em 1958, após a morte de Stálin e com grande entusiasmo dos revisionistas posteriores em enxergar naquele filme uma crítica velada ao dirigente soviético. Nada mais comprovadamente falso!

* “Terrivelmente romântico, terrivelmente progressista, ou terrivelmente trágico: reabilitando Ivan IV sob J.V. Stálin”, em tradução livre. O artigo, apesar de cheio de vícios anticomunistas, em particular com Stálin, é bastante revelador e honesto.

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