Matheus Gomes
OSASCO (sp) – O funk brasilero, tal como o conhecemos hoje, cresceu e ganhou força nas periferias do país. Apesar de ser um gênero musical relativamente amplo e com diversas vertentes, uma de suas principais características sempre foi a denúncia, tornando-se ele o espelho que reflete a realidade da população pobre e marginalizada.
Desse modo, mesmo sendo alvo de uma série de estereótipos e estigmas, o funk sempre se destacou como uma produção periférica e “antissistema”.
Entretanto, a crescente mercantilização do funk e a sua apropriação pela chamada “indústria cultural” têm como resultado o desvirtuamento daquilo que ele realmente representa enquanto movimento cultural da periferia.
Uma das principais representantes dessa deturpação promovida pela ideologia liberal e hegemônica acerca do funk é a popular e pouco contestada frase “a favela venceu!”.
Fortemente passível de ressalvas, urge a necessidade de uma discussão mais profunda sobre ela, bem como sua problematização. Por isso, vale a reflexão: será que a favela realmente venceu ou vem vencendo durante os últimos tempos?
Uma análise histórica da trajetória das minorias sociais e daquilo que se entende como “povo brasileiro” nos permite concluir que não.
O passado do Brasil, marcado pela invasão dos colonizadores europeus e pela escravização dos negros e indígenas no processo de criação do Estado nacional encabeçado pelas elites e pela coroa portuguesa, por uma política de domínio burguês, entre outros fatores, demonstra que apesar de muita luta e de pontuais (porém significativas) vitórias, a favela poucas vezes venceu ao longo de nossa história, sendo ela constantemente alvo da repressão de classe por parte do Estado.
Tendo isso em vista, é necessário refletir sobre o “a favela venceu“ e como os desvios liberais se relacionam com essa ideia.
O liberalismo, enquanto corrente filosófica de pensamento, possui como uma de suas principais implicações a individualização das relações sociais, simplificando e reduzindo fenômenos complexos e estruturais à mera individualidade.
Sendo assim, tal característica pode ser notada nas mais diversas esferas da sociedade, inclusive quando se pauta a cultura.
É comum termos contato com letras de funk em que conquistas pessoais como a aquisição do carro do ano, a utilização de roupas de marcas de grife e a compra de uma mansão para si e para sua família são apresentadas como símbolos de vitória.
Apesar de tais elementos realmente significarem a ascensão de alguém que, com seu esforço, talento e determinação conseguiu “vencer na vida” é preciso se atentar aos limites de tais realizações, que não representam um triunfo geral e sim, individual.
Atribuir caráter coletivo às conquistas do indivíduo é um erro, pois endossa a narrativa meritocrática e liberal de que, no bojo do sistema capitalista de produção, basta que o indivíduo se esforce para que ele tenha êxito em sua vida, de modo que tanto seu fracasso quanto seu sucesso são frutos diretos e únicos do seu grau de esforço.
Advogar esse discurso é um equívoco desmedido já que ignora o fato de que para cada pessoa vinda da periferia e que alcançou o “sucesso” existem outras milhares que, mesmo trabalhando arduamente todos os dias, continuam a enfrentar as mazelas da pobreza e da desigualdade.
Como escreveu Mao Tsé-Tung, em seu artigo Contra o liberalismo, afirmar que a favela venceu enquanto a maioria das pessoas se encontra na condição de explorada e oprimida, nada mais é do que “desconsiderar os princípios de vida coletiva e deixar-se levar pelas inclinações pessoais”.
Por fim, ao recorrer-se a um panorama mais recente da situação da classe trabalhadora no Brasil, nota-se que o cenário ainda é de extrema fragilidade e, nos últimos tempos, a vida pouco melhorou para a fração pobre da população, especialmente após a adoção de uma agenda neoliberal promovida pelo governo Temer e mantida por Bolsonaro e Paulo Guedes.
Exemplo disso é a Emenda Constitucional de número 95 (PEC do Teto de gastos), aprovada em 2016, que limita os gastos e investimentos públicos dificultando ainda mais o acesso da população pobre à saúde e à educação.
Outro ataque ao povo brasileiro está explícito na Reforma Trabalhista de 2017 que desmantela os direitos dos trabalhadores e, na prática, legaliza a informalização do trabalho, além de enfraquecer a atividade sindical.
Atendo-se aos índices de desemprego formal somados à informalidade trabalhista, percebe-se que a população está abandonada à própria sorte e sem empregos.
Ademais, de acordo com o estudo “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, realizado por pesquisadores da Universidade Livre de Berlim (em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília), cerca de 59% das famílias brasileiras passaram por situação de insegurança alimentar em 2020.
Destaca-se ainda o fato da violência policial ser um problema recorrente nas favelas brasileiras sendo que, na maioria das vezes, as vítimas são jovens negros e pobres.
Em suma, sustenta-se a tese de que a favela poucas vezes venceu na história desse país.
Na verdade, como percebe-se acima, o que ocorre é que, apesar de muita luta, a favela enfrenta uma longa sequência de derrotas: ela vem perdendo direitos, vem perdendo empregos, vem passando fome a ponto de ser necessário recorrer aos ossos descartados pelos mercados e vem sendo morta nas mãos dos aparatos de segurança do Estado.
É necessário refletir a respeito das tendências liberais que esvaziam o funk e todos os outros movimentos culturais ligados à periferia (como o rap e o samba) a fim de retomar o caminho da utilização da música como forma de luta e resistência.
Posto isso, no fim das contas, admite-se que a favela só vencerá quando forem eliminadas as contradições que propiciam um mundo em que existam favelas.