A decisão obrigou o Arquivo Nacional a vetar partes do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) que mencionam o ex-coronel da Polícia Militar de Pernambuco Olinto de Sousa Ferraz, responsável pela morte de Amaro Luiz de Carvalho, fundador e dirigente do PCR.
Heron Barroso | Redação Rio
BRASIL – A Justiça Federal atendeu o pedido feito por Marcos Olinto Novais de Sousa, Leandro Ribeiro Novais de Sousa e Maria Fernanda Novais de Souza Cavalcanti para que partes do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) que mencionam o ex-coronel da Polícia Militar de Pernambuco Olinto de Sousa Ferraz sejam vetadas. A decisão foi proferida pelo juiz Hélio Campos, da 6ª Vara Federal de Pernambuco. O conteúdo total do processo, que correu em segredo de justiça, pode ser conferido aqui.
O coronel Olinto comandava a Casa de Detenção do Recife na época que Amaro Luiz de Carvalho, fundador e dirigente do Partido Comunista Revolucionário (PCR), foi barbaramente assassinado pela Ditadura, em 22 de agosto de 1971, quando faltavam apenas dois meses para o fim de sua pena na prisão. Sua morte foi tramada pela cúpula dos usineiros mais sanguinários de Pernambuco, chefiados por José Lopes de Siqueira (o mesmo que tentou matar Gregório Bezerra) e Júlio Maranhão. O então secretário de Segurança de Pernambuco, o general Adeodato Mont’ Alverne, comemorou na imprensa a morte de Capivara, afirmando que “acabou a subversão em Pernambuco”.
Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), agora parcialmente censurado pela justiça, “Amaro Luiz de Carvalho morreu em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro, de causa não natural, sendo falsa a versão de morte por envenenamento, divulgada à época dos fatos. Essa ação foi cometida em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura militar implantada no país a partir de abril de 1964”.
A CNV também recomendou “a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso para a retificação de todos os documentos que atestem falsa causa mortis, bem como para identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos”.
No volume III do relatório, o nome do coronel Olinto de Sousa Ferraz é citado como integrante da “cadeia de comando do órgão envolvido com a morte” de Amaro Luiz de Carvalho (p. 702). Na página 871 do volume I do relatório, o nome do ex-coronel da PM de Pernambuco é mais uma vez mencionado como “agente de graves violações de direitos humanos”, informação que se repete no volume II (p. 117).
Apesar disso, o Judiciário brasileiro preferiu dar guarita a um pedido que, na prática, apaga parte da história da luta contra a ditadura e reforça a impunidade ainda hoje imperante sobre todos os crimes cometidos por agentes do Estado durante o regime militar fascista. Essa é apenas mais uma das inúmeras decisões similares da justiça brasileira, escandalosamente refratária à memória, verdade e justiça.
A colunista Juliana Dal Piva, do UOL, apurou que a Advocacia Geral da União (AGU) simplesmente não recorreu da decisão e encaminhou o cumprimento da ordem judicial ao Arquivo Nacional.
Com essa decisão, todas as menções ao coronel Olinto Ferraz como responsável pela morte de Capivara nos documentos digitais disponibilizados pelo Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN) foram tarjadas em preto. Há pelo menos outros 20 documentos disponibilizados pelo SIAN que mencionam a atuação do ex-coronel da PM de Pernambuco nos órgãos de repressão da ditadura.
Além de injusta e absurda, a sentença abre um perigoso precedente, que pode ser utilizado por todos os envolvidos nas perseguições, sequestros, estupros, torturas e assassinatos cometidos na ditadura para apagar seus crimes e negar a história.
A decisão da Justiça Federal de aceitar o pedido feito pela família do ex-coronel também desobedece a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), que determina que “a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior evidência” (Art. 31, V, § 4).
Recomendações da CNV não saíram do papel
Passados pouco mais de sete anos desde que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade foi apresentado, praticamente nenhuma das 29 recomendações que constam no documento saiu do papel.
Segundo a procuradora Eugênia Gonzaga, ex-coordenadora da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Político, “uma das recomendações foi a responsabilização dos agentes da ditadura. Isso recai sobre o Ministério Público Federal, que montou grupos de trabalho e instaurou inquéritos. Os resultados foram pequenos, primeiro porque os réus e testemunhas em sua maioria estão mortos e, em segundo lugar, porque o Judiciário não está cumprindo essa recomendação. O Judiciário ainda é a favor de que a Lei da Anistia (promulgada pelo general-presidente João Batista Figueiredo, em 1979, que concede anistia a todos os que cometeram crimes políticos entre 1961 e 1979) seja aplicada em qualquer caso”.
Para Edival Nunes Cajá, dirigente do PCR, “é necessário continuar a luta pelo fim da impunidade dos agentes da ditadura e por justiça a todos os mortos e desaparecidos políticos”. Cajá fala de Amaro Luiz de Carvalho como um companheiro que “até o último instante de sua vida foi coerente consigo e com seu Partido, convertendo-se em um dos mais dignos heróis dos trabalhadores e da causa do socialismo no Brasil”.
Por tudo isso, é preciso continuar com as denúncias dos crimes cometidos contra o povo e a Nação durante a ditadura militar; resgatar a memória dos nossos combatentes, homens e mulheres que não temeram enfrentar o regime fascista; fortalecer a campanha que exige do STF a reinterpretação da Lei da Anistia a fim de que os responsáveis pelas graves violações dos direitos humanos sejam julgados e punidos; e, o mais importante, contribuir para o avanço da consciência do povo brasileiro de que o terror daqueles anos não pode se repetir nunca mais no Brasil ou em qualquer outro país.
Com informações de www.mailchi.mp