Desde Collor, sertanejos estão lado a lado com políticos de direita. Agora se sentaram no colo da extrema direita.
João Filho
The Intercpt*
BRASIL – Não é de hoje que artistas sertanejos estão associadas com os políticos de direita. No início da década de 90, durante o governo Collor e o boom da música sertaneja nas rádios, cantores sertanejos eram vistos com frequência na Casa da Dinda, residência oficial do então presidente Fernando Collor em Brasília. Só em 1992, o programa Sabadão Sertanejo, apresentado por Gugu Liberato no SBT, levou os nomes mais badalados do sertanejo para fazer uma roda de sertanejo no quintal da Casa da Dinda em duas oportunidades.
Naquele ano, diversos escândalos de corrupção envolvendo Collor pipocavam no noticiário e o colocavam nas cordas. A cena sertaneja se mobilizou para demonstrar apoio ao presidente que teria o mandato cassado meses depois (Collor renunciou antes do impeachment). Não é de hoje, portanto, que o grosso dos artistas sertanejos apoia a direita.
É uma relação simbiótica que vem sendo construída há décadas entre sertanejos, agronegócio e políticos da direita, um consórcio em que todos saem ganhando. Agora, com o agronegócio sentado no colo da extrema direita golpista e negacionista, a cena sertaneja se sentou também. E está faturando horrores vendendo shows para cidades administradas por prefeitos ligados ao bolsonarismo.
O esquemão bolsonejo veio à tona depois que o cantor Zé Neto, da dupla Zé Neto e Cristiano, aproveitou um dos seus shows para fazer uma patrulha moral sobre uma tatuagem feita por Anitta em uma parte íntima. Ele disse no palco para milhares de pessoas que não depende da Lei Rouanet para fazer shows, insinuando que a artista, uma feroz crítica ao bolsonarismo, dependeria.
Ocorre que a Lei Rouanet até pouco tempo atrás determinava um limite de R$ 45 mil para o cachê de um artista. Hoje, esse limite caiu para R$ 3 mil. No show em que usou o microfone para bancar o bedel do bolsonarismo, Zé Neto e Cristiano faturaram R$ 400 mil dos cofres públicos. O show foi feito na Exposorriso, uma feira agropecuária anual com leilões, shows e rodeios de Sorriso, Mato Grosso. A cidade mato-grossense é administrada por um prefeito tucano que é bolsonarista ferrenho. Tão bolsonarista que contrariou orientação do PSDB e anunciou apoio à reeleição de Bolsonaro.
A hipocrisia de Zé Neto ficou exposta e foi o estopim para que se passasse um pente fino em todas as contratações de shows de cantores sertanejos feitas com dinheiro público. Reportagens com levantamento de gastos indecentes das prefeituras com shows fez a “CPI do Sertanejo” virar um dos assuntos mais comentados nas redes sociais.
As investigações só estão começando e, por enquanto, nada de ilegal foi encontrado no esquemão bolsonejo. A coisa ainda está apenas no campo da imoralidade. O Ministério Público de diversos estados já está investigando a farra sertaneja com verbas públicas.
Um dos casos mais emblemáticos é o de Teolândia, Bahia, cidade com 14 mil habitantes, recentemente arrasada pelas enchentes. Apesar não ter grana para pagar o salário mínimo dos professores e socorrer às vítimas de enchentes, a prefeita bolsonarista decidiu torrar R$ 1,2 milhão dos cofres municipais para bancar artistas sertanejos. Só Gusttavo Lima receberá R$ 704 mil.
Segundo a prefeita do Progressistas, conhecer o artista era um sonho pessoal. Há poucos meses, essa mesma prefeita pediu para que a população mandasse PIX para a conta da prefeitura para ajudar os desabrigados pelas fortes chuvas que atingiram a cidade no começo do ano.
Gusttavo Lima é um caso à parte. O sertanejo mais famoso da cena é o que mais recebe verbas públicas para fazer shows em cidades do interior. É também o mais bolsonarista. Assim como Teolândia, diversas cidades com baixo orçamento pagaram cachês gordos para o cantor milionário. Enquanto ele ostenta carrões, mansões e fazendas, o povo pobre dessas cidades sofre com serviços públicos precários. O cantor cobrou R$ 800 mil da cidade de São Luiz, que tem o segundo pior PIB de Roraima. Já a cidade de Conceição de Mato Dentro, Minas Gerais, que tem pouco mais de 17 mil habitantes, iria desembolsar R$ 1,2 milhão para contratar o cantor.
‘Enquanto ele ostenta carrões, mansões, iate e fazendas, o povo pobre dessas cidades sofre com serviços públicos precários’.
A ligação de Gusttavo com a família do presidente é de muita intimidade e vem desde 2018. No início daquele ano, antes do início da campanha, o cantor e empresário postou uma mensagem de apoio ao candidato Bolsonaro junto a um vídeo em que aparece dando tiros de fuzil nos EUA: “Hoje em dia no Brasil só está desarmado o cidadão de bem. Revogação do Estatuto do desarmamento já… Nossas família e nossas casas protegidas, #bolsonaro2018 @jairmessiasbolsonaro“.
Recentemente, o empresário chegou a postar uma foto em que aparece pegando uma piscininha com Jair Renan Bolsonaro — o filho do presidente investigado pela Polícia Federal por atuar junto ao Executivo em benefício de sua empresa. Há poucas semanas, antes da farra com as verbas públicas estourar, o locutor do show de Gusttavo Lima em Brasília foi ao microfone e gritou para milhares de pessoas como se fosse um pastor neopentecostal bolsonarista: “O Brasil é nosso, porra! É o Brasil do trabalho. É o Brasil da conquista. É o Brasil de Deus, Pátria e Família. Aqui é terra de gente abençoada por Deus.” No final, emendou: “Aqui nunca vai ser o comunismo!”.
Gusttavo Lima não é apenas um artista. É um grande empresário do agronegócio que viu seus negócios no setor bombarem durante o governo Bolsonaro. Ele costuma se apresentar como “embaixador do agronegócio”. Segundo o site De Olho nos Ruralistas, o cantor é dono de pelo menos três grandes fazendas, curiosamente todas em nome de terceiros. Em 2020, no auge da pandemia, o “embaixador do agronegócio” realizou uma live no meio da plantação de soja da Nutribras, em Sorriso, do Mato Grosso, e falou que gostaria de comprar uma fazenda por lá.
É também um dos donos de uma marca de carnes goiana que faz campanha aberta em favor de Jair Bolsonaro. O Frigorífico Goiás vendia uma picanha, batizada de “Picanha Mito”, cujo preço era de R$1.799,00/kg e tinha uma embalagem estampada com um meme do Bolsonaro.
Além de ser um dos sócios, o cantor é também o principal garoto-propaganda da marca, ajudando a vender franquias de açougues em todo o país. Foi ele quem trouxe outros grandes nomes do sertanejo como Leonardo, Marrone, Rodolffo e Naiara Azevedo para ajudar a divulgar a marca bolsonarista.
Na última semana, durante uma passagem de Bolsonaro por Goiânia, o frigorífico de Gusttavo Lima envelopou um helicóptero com a imagem de Bolsonaro e sobrevoou o percurso da comitiva presidencial. Recentemente, o mesmo frigorífico foi condenado a indenizar uma trabalhadora submetida a jornadas de trabalho extenuantes e que sofreu uma série de acidentes de trabalho por falta de equipamento adequado. Não é de se estranhar que um frigorífico ostensivamente bolsonarista não respeite direitos trabalhistas básicos, não é mesmo?
O Frigorífico Goiás militou firme durante a campanha eleitoral de 2018, quando foi intimado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Goiás por vender uma peça de carne na promoção por R$ 17, numa óbvia referência ao número de campanha de Bolsonaro. A carne só seria vendida por esse preço a quem chegasse no frigorífico com um adesivo da campanha eleitoral do atual presidente na camisa. No Instagram, imagens como essa abaixo eram divulgadas faltando poucos dias para a eleição:
Após as verbas milionárias que recebeu serem expostas, Gusttavo Lima chorou ao se dizer vítima de perseguição e se fez de louco ao explicar que “não pactua com ilegalidades” e que não é seu papel “fiscalizar as contas públicas”, como se fossem esses os problemas em debate. O sertanejo milionário poderá escolher o lugar mais quentinho para chorar: na sua Ferrari, na sua Porsche, no seu iate ou em alguma das suas propriedades nababescas.
Mas Gusttavo não vai chorar sozinho. A rede bolsonarista está aí para acolher o reizinho do sertanejo, cuja riqueza é em parte proveniente de dinheiro público de cidades pobres, o que não é ilegal, mas é descaradamente imoral. Além de receber a solidariedade do senador Flávio Bolsonaro e do ministro Fábio Faria, militares da PM de Goiás foram ao seu encontro e cantaram uma música em sua homenagem.
‘O Sabadão Sertanejo com Collor na Casa da Dinda chega até ser algo inocente se comparado com a relação pornográfica entre o sertanejo e o bolsonarismo’.
A cena da música sertaneja virou uma espécie de soft power do agronegócio e do bolsonarismo, que têm andado juntos desde 2018. Uma espécie de sertanejismo cultural que atende aos interesses dessa turma e difunde a ideologia reacionária da extrema direita.
Os festivais de agropecuária, vaquejadas, rodeios e feiras de agronegócio, patrocinados pelo poder público e pelos barões ruralistas, são os principais contratantes de artistas sertanejos. O boom do sertanejo nas últimas décadas é indissociável do boom do agronegócio. Hoje, a ligação do bolsonarismo com os cantores sertanejos é tão estreita que o presidente do PL, partido de Bolsonaro, orientou os músicos sertanejos a não fazerem pedidos de voto explícito ao presidente para evitar problemas com o TSE.
O Sabadão Sertanejo com Collor na Casa da Dinda chega até ser algo inocente se comparado com a relação pornográfica entre o sertanejo e o bolsonarismo. Hoje, temos até cantor sertanejo que virou deputado federal e usou o mandato para convocar a população para um ato golpista que pedia o fechamento do STF.
A CPI do Sertanejo é urgente. Com a instalação da CPI será possível demonstrar como artistas ligados ao agronegócio, que defendem o estado mínimo e ajudam a difundir o ideário moralista do bolsonarismo, são alguns dos maiores sanguessugas de verbas públicas do país.
*Publicado originalmente em www.theintercept.com sob o título “A aliança lucrativa do agro, sertanejo e direita dá as caras de novo”