Desde fevereiro de 2022 o exército russo iniciou a ocupação da Ucrânia, com objetivo de anexar porções de seu território. A invasão russa já dura quase 10 meses e a guerra segue promovendo crise e sofrimento aos povos do Leste Europeu e do mundo. Nesta matéria especial, Guilherme Rodrigues, militante da Unidade Popular pelo Socialismo que vive na cidade de Kursk, na Rússia, relatou um pouco sobre a relação histórica entre as duas nações em conflito e nos ajudou a desvendar as verdadeiras motivações desta guerra.
Guilherme Rodrigues
KURSK – Muito já foi falado na mídia sobre a guerra que está acontecendo na Ucrânia, sobre as consequências econômicas do conflito, tanto na Rússia, como na União Europeia, mas algo de extrema importância sempre fica em segundo plano: as pessoas. Quando não esquecidas, tornam-se apenas peças narrativas do teatro de guerra imperialista.
É estranho pensar que há menos de 30 anos os povos russos e ucranianos viviam em paz, compartilhavam o mesmo país, as mesmas lutas e tinham orgulho de serem irmãos.
Os dois povos marcharam juntos para a construção de um futuro melhor para toda a humanidade, mas, infelizmente, o belo sonho acabou em tragédia. Tragédia alimentada pelos sentimentos mais mesquinhos e terríveis que a humanidade já presenciou. Desde o dia em que o capitalismo voltou a tocar as terras da antiga União Soviética, seus povos irmãos de outrora passaram a ser inimigos, peças de um xadrez maquiavélico jogado por suas elites locais.
O desmembramento da União Soviética não pode ser entendido como um acontecimento distante. As consequências dessa catástrofe são sentidas até hoje na pele daqueles que habitavam suas fronteiras.
Russos e ucranianos foram separados de suas famílias, divididos por bordas que não eram mais amigáveis, em países que eram estranhos para ambos. A divisão apressada feita pelas elites locais com ajuda dos abutres do imperialismo criou fronteiras conflituosas, incompatíveis com os povos que lá habitavam, tanto cultural como economicamente. Este fato pode ser sentido em todas as ex-repúblicas do antigo gigante vermelho.
Mas o nosso tema aqui é a Ucrânia, para ela devemos voltar. A região que hoje é conhecida como Ucrânia foi, há milhares de anos, habitada pelos povos de origem eslava. Em seus rios e suas terras, o povo com a força e suor de seus braços ergueram suas cidades, sua cultura e religião.
Ao contrário das falácias dos fascistas que hoje governam o país, a antiga Kiev-rus¹ é o passado tanto de russos e bielorrussos, além dos ucranianos. Naquela época essa divisão não se encontrava nos dicionários, eram um só povo. A história vai-se desenrolando, Kiev-rus deixa de existir, é conquistada e saqueada por outros impérios e povos de sua época, do gigante Império Mongol, ao Grão ducado da Lituânia, passando pelo Reino da Polônia e muitos outros.
Após tantas rachaduras e conflitos, nascem os três povos distintos que conhecemos hoje em dia, mas ainda conectados por sua história, cultura e religião.
A Revolução Russa e a autodeterminação
Até o século XX os ucranianos nunca tiveram um Estado para chamar de seu, sempre foram subjugados por outros povos, contudo, essa história muda com o advento da grande Revolução de Outubro, a queda do Império Russo e o florescer vermelho. A Ucrânia conquista seu Estado pela primeira vez após a revolução de outubro de 1917. Mas as coisas não são tão fáceis assim, aquela região, por ter passado por tantos conflitos, era muito multiétnica, diversa e difícil de catalogar. Onde começava o Estado ucraniano e onde acabava?
Essa é uma questão que até hoje gera conflitos. A região ao leste, próxima da Rússia, onde se encontra Donbass, era e é amplamente habitada por pessoas que se reconhecem como russos. Durante a era do Império, aquela região era uma das mais industrializadas do gigante feudal, as fábricas presentes naquela área sempre estiveram intrinsecamente conectadas à economia de Moscou, dependendo deles para a obtenção das matérias para a sua indústria. As locomotivas que foram construídas durante o Império eram produzidas lá, sempre sendo uma parte fundamental da economia russa.
Já o oeste da Ucrânia era e é uma região produtora de alimentos, agrária. A maioria do povo ali se identificava mais com os poloneses do que com os russos, mas, claro, mantendo suas particularidades, distinguindo-se de ambos.
A Ucrânia sempre teve esses dois lados, o industrial conectado à economia do gigante russo e o agrário que era mais independente do resto do império.
Com o advento da revolução, essa panela de pressão de interesses distintos foi organizada pelos sovietes, para manter a região em equilíbrio. Vladimir Lênin e outros revolucionários decidiram que era melhor Donbass ficar com a nascente República Soviética da Ucrânia, pois assim o proletariado daquela zona poderia balancear com a gigantesca massa campesina, criando melhores condições para a república construir o socialismo.
Essa decisão na época não causou tantos problemas, visto que, no fundo, todas as repúblicas ainda eram um país só, ou seja, a indústria de Donbass e as famílias que ali habitavam continuavam gozando de livre circulação e mesmo direitos que todas as outras regiões da antiga URSS. Esse equilíbrio só era mantido pela união desses povos em construir um futuro comum, um futuro igualitário e socialista.
A partilha imperialista pós-URSS
Nos anos 50, com a morte de Josef Stálin, o próximo líder do gigante país, Nikita Kruschev, que era de origem ucraniana e que por muito tempo trabalhou como secretário do partido na República da Ucrânia, decidiu entregar para a sua terra natal, Crimeia, como um presente.
A península há muito tinha maioria russa e também estava intrinsecamente conectada à República Socialista da Rússia. Com o fim da URSS nos anos 90, todo o equilíbrio que impedia os conflitos naquela região acabaram, as pessoas foram divididas em nações distintas, com propósitos de diferentes naturezas. O capitalismo dividiu famílias e povos, mas não bastava, era necessário alimentar os sentimentos mais reacionários possíveis, pois a elite agrária precisava se desvencilhar da decadente Rússia de Yeltsin e servir aos senhores do Ocidente. Mas claro que a elite industrial não estava contente com isso, fechar as portas para a Rússia e abrir para a União Europeia, era declarar o fim da indústria, do lucro e a servidão as indústrias poderosas do Ocidente.
Com a recuperação da Rússia nos anos 2000, o então presidente Vladimir Putin começou a sua política de reconstrução da Rússia como potência mundial e, para isso, a rica região de Donbass não podia estar de fora, e as elites dessa região também não desejavam estar fora. Essa posição encontrou grande oposição na porção oeste do país, que no golpe de 2004 e depois novamente em 2014, passaram a governar e chefiar Kiev.
A única maneira que todo capitalista encontra de conseguir o que quer é gerar ódio entre o povo, alimentar os sentimentos mais reacionários e chauvinistas que lá existiam, criando as raízes do conflito que encontramos hoje.
Essa breve história nos ajuda a entender como o conflito começou, mas esconde que no meio de todas essas intrigas é o povo que está sofrendo, sendo explorado, morrendo e lutando por motivos que até eles próprios desconhecem.
A cada dia que passa, ambos os lados desejam paz, mas suas elites não vão parar enquanto não atingirem o que desejam, uma se ligar ao mercado da União Europeia como agroexportadora e a outra se unir ao complexo industrial-militar de Moscou.
E cabe a nós, comunistas, denunciar os crimes e lembrar que a melhor saída sempre foi e sempre será o socialismo.
Notas:
- A Rússia de Kiev ou Kiev-Rus, foi uma confederação de tribos eslavas do Leste Europeu dos séculos IX ao XIII. Bielorrússia, Ucrânia e Rússia reivindicam a Rússia de Kiev como seu ancestral cultural.
Muito bom, camarada!