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quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Padre Reginaldo Veloso: fermento na massa para a libertação

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José Levino | Historiador


LUTA POPULAR – Padre Reginaldo Veloso nasceu em 1937, na Zona da Mata de Alagoas, num distrito chamado Piquete, na época, pertencente ao Município de São José da Laje. Mudou-se para Recife aos 13 anos para estudar numa escola da Congregação do Sagrado Coração de Jesus. Aos 19 anos, fez os votos de pobreza, castidade e obediência, que ele fazia questão de esclarecer que “foram votos aos ensinamentos de Cristo e não à hierarquia da Igreja”.

Formou-se em Teologia na Pontifícia Universidade Católica, em Roma, acompanhou de perto os debates do Concílio Vaticano II e voltou para Recife em 1966, dois anos após o golpe militar, e de dom Helder Câmara ter assumido a chefia da Arquidiocese de Olinda e Recife. Encontrou a Arquidiocese dividida entre padres conservadores ligados à estrutura de poder, e aqueles que fizeram a opção preferencial pelos pobres, no espírito do Concílio Vaticano II, entre os quais estava o arcebispo dom Helder. Foi a esse grupo que padre Reginaldo se ligou. Junto com o padre Adriano Jansen, da Juventude Operária Católica (JOC), criou mais de 20 células de evangelização na Zona Norte do Recife, onde se ligava a reflexão do Evangelho com os problemas das comunidades. Veio o endurecimento da ditadura no final de 1968 e esse trabalho de evangelização foi acusado de “comunismo e subversão”. 

Repressão

Em 1969, padre Antônio Henrique, um jovem, responsável pela Pastoral de Juventude, foi sequestrado e assinado barbaramente pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Dom Helder acusou a repressão política. O enterro do padre levou às ruas 10 mil pessoas num cortejo que saiu da igreja da Torre até o Cemitério da Várzea, onde se deu o sepultamento. Foi a primeira grande mobilização de massa na vigência do AI-5. 

No dia 6 de maio de 1973, é publicado o documento OUVI OS CLAMORES DO MEU POVO, que não foi um pronunciamento oficial da CNBB, mas teve muito peso porque foi assinado por 13 bispos e cinco religiosos nordestinos. O documento mostrava a realidade do povo nordestino, denunciava a ditadura militar e chamava a Igreja para agir junto aos trabalhadores apoiando a sua luta por direitos. Na busca para recolher o documento e reprimir a Igreja, agentes da repressão chegam à Paróquia da Macaxeira, onde encontram o padre Reginaldo datilografando um boletim paroquial, que era distribuído na missa dominical, chamado “Ouvi a Voz das Comunidades”.

Não encontrando o documento dos bispos, levaram o padre Reginaldo para a sua residência, onde vasculharam tudo e o puseram na mala de uma veraneio, conduzida para um local que não conseguiu ver, pois estava sempre de olhos vendados, mas acredita ser o Quartel General do IV Exército porque ouvia o relógio da Faculdade de Direito do Recife, situada bem próximo ao QG no Parque 13 de Maio. Aí foi despido, ficando só de cueca, e colocado numa jaula.  Conseguiu ver outros cubículos com pessoas também enjauladas. Foi interrogado em torno das 20 horas que queriam saber quem escreveu o documento “Ouvi os Clamores do Meu Povo”. Ele nada revelou. Foi solto pelas 22 horas.

Pastoral libertadora no Morro

A repressão não o fez recuar. Continuou seu trabalho de base e, em 1978, assumiu a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, no Morro, onde ajudou a criar grupos e associações, e foi um dos líderes do Movimento das Terras de Ninguém, em Casa Amarela, que reivindicava a regularização da posse de terras ocupadas pelo povo. Na sua atuação, juntava pessoas de todas as religiões, inclusive as de matriz africana, e também aquelas sem religião. Não morava na Casa Paroquial, entendendo que esta devia estar a serviço da comunidade, e sim numa casa simples, no meio do povo. Pessoas do Conselho Paroquial e da comunidade testemunham que as pessoas tinham vez e voz, as crianças eram respeitadas e valorizadas. As pequenas comunidades eram ponto permanente de evangelização, de refletir, planejar e avaliar como se poderia contribuir para o bem comum. A fé era força motivadora para a luta. A Festa do Morro, em dezembro, era um momento forte que motivava as pessoas para o trabalho comunitário, não só da Paróquia, mas de toda a Região Metropolitana do Recife e até de outras regiões.

Segunda Prisão

Em setembro de 1980, o padre italiano Vito Miracapillo é expulso do Brasil por ter se recusado a celebrar missa no dia 7 de Setembro em memória da proclamação da independência do Brasil, afirmando que o povo brasileiro não é independente.  Por defender o padre Vito e criticar o regime, Reginaldo Veloso foi acusado de crime contra a Lei de Segurança Nacional. Foi julgado e condenado a pena de dois anos. Por ser réu primário, teve direito a responder em liberdade. Mas, certo dia, a polícia o levou preso para o Quartel da Cavalaria. Houve mobilização promovida pelas pastorais da Arquidiocese, com apoio de dom Helder e, segundo testemunho de padre Reginaldo “O povo fazia peregrinação até o quartel. Ia pela manhã e à tarde. As autoridades penitenciárias só aguentaram quatro dias, até um sábado à tarde. Certamente, acharam que o domingo ia ser um horror. Me soltaram e disseram que tinha sido um engano”. O morro fez uma festa. 

Repressão na própria Igreja

Em 1985, dom Helder renuncia ao cargo de arcebispo, por ter completado 75 anos de idade (norma do Vaticano). O novo arcebispo, dom José Cardoso Sobrinho, havia passado 25 anos no Vaticano, representando a Ordem dos Carmelitas e se aperfeiçoando no Direito Canônico. “Ele vem, justamente, para esvaziar, desmontar tudo o que havia sido construído no tempo de dom Helder. A gente, que tinha sofrido a perseguição da ditadura militar, de 1964 a 1985, ano em que já está funcionando certa abertura política, começa agora a ser vítima de uma perseguição dentro da Igreja”, dizia padre Reginaldo.

A Paróquia do Morro passa a ser tratada como inimiga do novo arcebispo. Essa perseguição ao setor progressista se torna mais forte em 1988 com o fechamento do Seminário do Regional Nordeste II, do Instituto de Teologia (ITER) e o isolamento e até expulsão dos padres comprometidos com as pastorais sociais. “No tempo de dom José, os padres que continuavam seguindo a linha de dom Hélder ou foram embora espontaneamente ou quem ficou, como eu, foi afastado das paróquias e proibido de exercer a função sacerdotal; era a “suspensão de ordem”. Esta pena foi aplicada a padre Reginaldo.

As lideranças comunitárias se sentiram expulsas também e convocaram uma grande assembleia, na qual foi aprovada uma passeata em que duas mil pessoas marcharam pelas ruas em direção ao Palácio dos Manguinhos, com o objetivo de mostrar para a população o que estava acontecendo na Igreja, especialmente, a demissão e suspensão de ordem do padre Reginaldo Veloso. Chegando ao palácio, os portões foram fechados.

Certo dia, a Arquidiocese foi buscar a chave da Igreja, mas “ninguém sabia com quem estava”. O arcebispo entrou com ação judicial e, com mandado, acionou a polícia para garantir a entrada na Igreja. O povo fez uma ciranda rodeando o prédio para impedir a ação do batalhão de choque da PM. À noite, acendeu-se uma fogueira e o povo cantava: “A chave, a chave, a chave eu não dou. A chave é de Pedro, que foi Pescador. A Igreja é do povo, que foi construtor. Nela está nosso sangue e também nossa dor”. Uma comissão soltou um balão com a chave, que foi “para o céu”, mas não foi entregue. A PM arrombou a Igreja e a casa paroquial.

Coerência, sempre!

Padre Reginaldo deu continuidade ao trabalho comunitário. Resolveu constituir família e se casou com a coordenadora da catequese, Edileuza Osório, em abril de 1994.  O casal teve um filho, João José, no ano seguinte. Isso, diz Reginaldo, “me enriqueceu na compreensão da família, da missão de ser pai, de educar filho, fortaleceu meu trabalho pastoral”. Além do trabalho de base, nos últimos anos, coordenou o Movimento dos Trabalhadores Cristãos (MTC) e desenvolveu ações culturais, pois era também poeta, músico e cantor.  

Padre Regional foi coerente até o fim com a opção pelos pobres e nos deixou a lição de firmeza e resistência junto ao povo.  Assim, partiu para a imortalidade no dia 19 de maio de 2022. Mas viverá sempre, como “fermento na massa”, como canta numa de suas músicas, como semente da luta por libertação.

NOTA: Este artigo tem como fonte de consulta o documentário O AMOR MAIS PROFUNDO, de Daniela Kyrillos (2017). Veja no YouTube.

Texto publicado na edição impressa nº 256 do Jornal A Verdade

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