Na última década, população de rua triplicou empurrada pelo aumento do desemprego e da fome.
Rafael Freire e Claudiane Lopes | Redação
Pessoas sobrevivendo nas ruas podem ser vistas em todas as cidades médias e grandes do Brasil. Abrigam-se em moradias improvisadas com lonas, papelões, plásticos e pedaços de madeira nas praças, parques, marquises, pontes e viadutos. Alguns conseguem uma vaga nos poucos abrigos públicos existentes.
Jorge da Silva, 71 anos, mora em situação de rua há quatro décadas. Vive nas redondezas da Praça da Bandeira, em Belém (PA). Seus únicos pertences são uma mochila com algumas mudas de roupas e uma sacola plástica, onde carrega os poucos alimentos que consegue. Trabalhou como garimpeiro no interior do Pará, mas, quando voltou para a capital, seus pais tinham falecido e teve que viver na rua. Ainda conseguiu se manter durante um tempo como feirante no mercado do Ver-O-Peso e trabalhando numa fábrica de castanha. Veio então o desemprego e, com ele, o desprezo da família.
“Para viver na rua é preciso ter coragem, não é fácil. Na rua a vida é solitária e triste. Mas existe muita solidariedade também. Noite passada, choveu bastante e vi uma mulher se tremendo de frio. Dei o único cobertor que tinha para ela se aquecer”, relata.
Seu Jorge diz que deseja estudar, aprender, se sentir útil, ter condições de ajudar as pessoas que estão na mesma condição e ter uma casa para descansar no final do dia. “É uma crueldade ter tanto prédio vazio e tantas pessoas vivendo na rua. Não tem nada dentro desses prédios. A gente podia morar neles. A gente mesmo limpava e organizava tudo”.
Crise piora vida dos trabalhadores
Levantamento inédito do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado no final de 2022, estima que a população em situação de rua seja de 281.472 pessoas em todo o país. Certamente, um dado subnotificado. Desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, ao menos 38 mil pessoas começaram a viver nas ruas. A crise tem impactado fortemente a vida da classe trabalhadora, resultando no crescimento do desemprego e na alta dos preços dos itens básicos de consumo das famílias e dos aluguéis.
O aumento da população de rua nos últimos anos tem relação direta também com o desmonte da política habitacional feito pelo presidente fascista Jair Bolsonaro, que se limitou a entregar residenciais do Programa Minha Casa, Minha Vida contratados pelas gestões petistas anteriores.
Em seus três primeiros anos de mandato (2019 a 2021), o ex-capitão não realizou nenhuma nova contratação para construção de moradias populares. Só em março de 2022 é que “retomou” esse processo com a contratação de míseras 2.450 unidades, num país onde o déficit é de mais de oito milhões de famílias sem casa para morar.
Em dez anos, número triplicou
Já na amostragem da última década (2012 a 2022), a população em situação de rua triplicou de tamanho: cresceu 211%. Trata-se de uma expansão muito superior à da população brasileira em geral, que foi de apenas 11% no mesmo período aproximado, segundo o IBGE.
“O crescimento da população em situação de rua se dá em ordem de magnitude superior ao crescimento vegetativo da população. Além disso, esse crescimento se acelerou nos últimos anos”, resume o pesquisador Marco Antônio Carvalho Natalino, autor do estudo do Ipea.
A região Sudeste concentra 62% dessa população, a maior parte (40%) no Estado de São Paulo, onde estão quase 86 mil pessoas em situação de rua. O Nordeste possui 15% da população de rua; o Sul, 14%; o Centro-Oeste, 7%; e o Norte, 2%.
Somente na capital paulista estão duas em cada dez pessoas em situação de rua. As outras capitais com maior número são Rio de Janeiro (12.162), Belo Horizonte (11.165), Brasília (7.308) e Salvador (6.952).
“Aqui na rua todo dia é um pesadelo”
Esse crescimento do número de pessoas em situação de rua tem ligação direta com o aumento no preço dos aluguéis. De janeiro de 2011 a dezembro de 2020, o IGP-M, índice que determina a variação oficial desses preços, duplicou: variação de 105,68%, segundo dados do Banco Central do Brasil. O IGP-M (Índice Geral de Preços-Mercado) é calculado mensalmente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Só em 2020, ano em que se iniciou a pandemia de Covid-19, a inflação para os aluguéis foi de 22%.
Assim fica impossível um trabalhador sobreviver com um salário mínimo de apenas R$ 1.302,00 tendo que pagar aluguel, comprar alimentos, roupas, passagem e remédios. Por isso é cada vez mais comum encontrar nas ruas pessoas que trabalhavam como autônomas e até com carteira assinada, mas que perderam seus empregos, sua fonte de renda.
É caso de Roberto Silva, 33 anos, hoje morador de rua no bairro da Cidade Baixa, em Porto Alegre (RS). “Estou há dois anos em situação de calçada. O motivo principal de estar nessa situação é estar desempregado. Antes de sair de casa, trabalhei por um tempo como ajudante de cozinha, aluguei um quarto, mas, com a pandemia, o restaurante fechou e fiquei sem ter como pagar o aluguel. É difícil, pois aqui na rua todo dia é um pesadelo. Isso aqui não é vida pra ninguém!”, conta Roberto.
Somente na capital gaúcha existem aproximadamente 2.700 pessoas em situação de rua, segundo dados da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc).
Em Maceió (AL), José Cícero Duarte, 62 anos, passa o dia nas ruas catando material reciclável para juntar o dinheiro das quentinhas que leva para repartir com a família, que mora na Grota Boa Esperança. “A essa altura da minha vida, eu trabalhei muito, mas não tenho nada”, lamenta, mostrando as mãos calejadas. Como não conseguiu se aposentar nem trabalhar mais como agricultor, saiu do município de Minador do Negrão para morar com a família da filha na capital.
Cícero também não recebe nenhum tipo de auxílio. Segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), divulgados em setembro de 2022, Alagoas é o estado brasileiro em que a situação de fome das famílias é mais grave: em 36,7% das residências falta alimento.
Já na cidade mais rica do país, São Paulo, existem atualmente mais de 48 mil moradores de rua, de acordo com o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População de Rua. Uma delas é Maria Gorete Araújo da Silva, 54 anos, natural de Natal (RN). Ela veio para a região Sudeste há cinco anos, em busca de trabalho. Há dois anos está em Santo André (ABC Paulista). Já trabalhou como empregada doméstica e faxineira, mas, há dois meses foi morar na rua com seu companheiro, com quem convive há 25 anos, porque não conseguiam mais pagar aluguel.
O casal tem dois filhos adultos, que ficaram em Natal, mas não têm contato com eles e nem com outros familiares há muito tempo. Atualmente, dona Gorete recebe auxílio emergencial de R$ 300,00. Além disso, ela apresenta dificuldade para falar, sequela de um AVC que sofreu há 15 anos. Tem pressão alta e estava com o pé esquerdo enfaixado porque se queimou ao improvisar um fogão com lata e álcool.
Desigualdades sociais
Em 2009, o então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome publicou a Pesquisa Nacional Sobre a População de Rua, primeira e única do tipo. Como vimos, o número de pessoas nesta condição aumentou bastante desde então, mas, em geral, o perfil apontado pela pesquisa mostra o seguinte:
- 70% dormem na rua; 22% em albergues; 8% alternam entre rua, albergues e outras instituições;
- Motivos para estarem em situação de rua: 35% por problemas com álcool ou outras drogas; 30% por desemprego; 29% por desavença com parentes;
- 82% são homens; 53% têm entre 22 e 44 anos; 67% são negros;
- 53% sobrevivem com R$ 20 a R$ 80 por semana;
- Quase metade concluiu o 1º grau; 15% nunca frequentaram a escola; 74% sabem ler e escrever;
- 71% exercem alguma atividade econômica, sendo que 2% até possuem carteira assinada; quase metade nunca teve emprego formal; 16% pedem dinheiro como principal forma de se manter.
Enquanto milhares de brasileiros vivem nessas condições, a burguesia “nacional” aumentou sua fortuna em R$ 138 milhões entre junho de 2021 e junho de 2022, somente com o lucro líquido do sistema bancário.
Por mais que se prometam políticas públicas para reduzir as desigualdades socais, a verdade é que, enquanto o modo de produção capitalista existir no Brasil, o abismo que separa ricos e pobres continuará se aprofundando.
Como afirmou Karl Marx, em 1867, n’O Capital: “A acumulação de riqueza num polo é, portanto, simultaneamente, acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravatura, ignorância, brutalidade e degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que produz o seu próprio produto como capital”. Ontem, como hoje, só a revolução socialista poderá pôr um fim a essa situação e abrir caminho para a construção de uma nova sociedade, igualitária, onde todos tenham direito a uma vida digna.
Matéria publicada na edição nº 265 do Jornal A Verdade.