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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Thiago de Mello: “Faz escuro, mas nós cantamos!”

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José Levino | Historiador


É o vaivém da vida. A vida vai e vem. Então a história é um círculo vicioso? Pergunta a jovem que questiona tudo: “vale a pena aprender os segredos, os caminhos, oferecer a vida e transformar o mundo?”. É preciso, no escuro, ver como felino; ser como um barco, ir contra o destino; saber que a história não é uma roda, mas se movimenta sempre em espiral. 

A autocrítica e os ovos da serpente 

Sendo assim, faz escuro de novo, uma nuvem escura nos ameaça, aos povos do Brasil e do mundo, e a faca amolada do nazifascismo cresce e se espalha pela humanidade, pairando ameaçadoramente sobre os nossos pescoços. Onde erramos que deixamos mais uma vez os ovos da serpente germinarem? Não aprendemos a aprender com a história? A refazer os caminhos? E nos perdemos, nos diluindo em águas falsamente limpas, que escondiam pantanosos lamaçais, ou nos fechamos em seitas dogmáticas distantes do povo e querendo libertá-lo, quando o mestre barbudo já nos ensinara há mais de século e meio que “a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, e outro, sem barba e quase sem cabelo, do fundo da sabedoria oriental, deixara claro pela palavra e pelo exemplo que a mudança só acontece quando os revolucionários, os homens da vanguarda, vivem no meio do povo como peixe dentro d’água, fazendo com o que eles têm, do jeito que eles sabem, crescendo junto e sempre em movimento, como um trem em que a locomotiva puxa pra frente, mas sem se desligar dos vagões.

A força da poesia

Para nos manter em movimento, não bastam a consciência de classe, as razões da razão; é preciso também a emoção, e aí entra a poesia, a função social revolucionária dos poetas engajados, entre os quais, em nossa história, se destaca Amadeu Thiago de Melo. Nascido no interior do Amazonas, na cidade de Barreirinha, era criança ainda quando sua família se mudou para Manaus, onde estudou até os 17 anos. Ocorreu, então, nova mudança, para o Rio de janeiro, onde ingressou na Faculdade de Medicina e conviveu com uma geração de poetas que o influenciaram, de quem se tornou amigo e se firmou no mesmo círculo de Carlos Drummond e Manuel Bandeira. 

Thiago deixou a faculdade para se dedicar integralmente à poesia, não dando ouvidos aos conselhos de Drummond: “Ninguém vive de poesia neste país”. De fato, teve de buscar outra carreira, a da diplomacia, na qual, entre outras funções, foi adido cultural da embaixada brasileira no Chile (1959 a 1965), onde se tornou amigo do grande Pablo Neruda. Em 1965, retornou ao Brasil, há um ano sob a ditadura militar que durou 21 anos. No mesmo ano do retorno, publicou Faz escuro, mas eu canto: Faz escuro mas eu canto/porque a manhã vai chegar/Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar/Vamos juntos, multidão/trabalhar pela alegria…”. Sua motivação: “Na ditadura militar, com o seu terror cultural e a indignidade da condição humana, meus versos se ergueram em defesa do homem, sobre os deserdados e a esperança de quem tem fé”.

No estádio, a bala em vez da bola, é que rola sobre o gramado e mira a arquibancada

Thiago de Mello volta ao Chile em 1970, permanecendo até 1973, quando se implanta uma ditadura militar feroz (e existe alguma que não seja?) que leva milhares ao Estádio Nacional, mas não para vibrar com os dribles e os gols, e sim para a tortura, o sofrimento e a morte. Thiago foi levado por um pelotão de carabineiros, junto com outros companheiros, chegou a ser perfilado para o fuzilamento, mas, de repente – nunca soube o motivo – chegou um militar e falou ao ouvido do chefe do paredão que suspendesse a operação. Seguiu para uma cela em Santiago, de onde saiu exilado, passando pela Argentina, Portugal, França e Alemanha.

Com a abertura “lenta, gradual e segura”, volta ao Brasil em 1977 e foge dos grandes centros urbanos, regressando para sua origem, Barreirinha, onde não ficou isolado, como alguns criticam, mas sempre conectou o rio (Amazonas) com o mundo.  Afinal, como afirmou Leon Tolstói, “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Assim fez Thiago de Mello, que produziu muita poesia, teve obras publicadas em quase todas as línguas do mundo e foi premiado no Brasil e em tantos países.

Amazonense do interior, cidadão do mundo, Thiago de Mello passou para a imortalidade em 2022, dia 14 de janeiro, aos 95 anos. Seu legado é fundamental. Foi assim descrito por Pablo Neruda: “Thiago é a síntese de tudo o que viveu, dos lugares por onde passou, das pessoas por quem se encantou, das dores por que passou”.

Ato Institucional Permanente, os Estatutos da Humanidade Liberta

Não há como concluir este artigo sobre o poeta do povo, da liberdade, sem citar os Estatutos do Homem, sua obra mais famosa e declamada em todo o planeta, o canto maior por uma sociedade libertada da exploração do homem pelo homem, justa e fraterna, o reino da liberdade que não existe sem igualdade, destacando dois artigos: o primeiro, de chamamento, de convocação: “Fica decretado que agora vale a verdade, agora vale a vida e de mãos dadas marcharemos todos pela vida verdadeira”, e o artigo final, da determinação da nova ordem: “Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso da dor. A partir deste instante, a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem”.

Texto publicado na edição nº264 do Jornal A Verdade.

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