Recomendações da Comissão Nacional da Verdade precisam sair do papel para que torturadores paguem por seus crimes

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Grande parte das 29 medidas propostas pela CNV, em 2014, para impedir que graves violações dos direitos humanos continuem acontecendo no país não foram postas em prática pelo Estado brasileiro, deixando impunes os crimes da ditadura e incentivando os golpistas de hoje.

Heron Barroso | Redação


EDITORIALEm 1º de abril de 1964, as Forças Armadas, com apoio de ricos empresários e latifundiários, dos grandes meios de comunicação, do imperialismo norte-americano e de setores reacionários da Igreja, impuseram a mais ferrenha ditadura da burguesia sobre os trabalhadores e o povo brasileiro.

Por 21 anos (1964-1985), os militares perseguiram, sequestraram, torturaram, estupraram e assassinaram milhares de pessoas impunemente. Os sindicatos sofreram intervenção e o direito à greve foi cassado. Entidades estudantis foram proibidas. O Congresso Nacional foi fechado e a imprensa amordaçada. Dezenas de jornalistas foram presos e músicas censuradas. Não havia mais liberdade nem democracia no Brasil.

Para manter esse estado de terror, a ditadura militar fascista assassinou aproximadamente 10 mil brasileiros: 434 militantes políticos, mais de 8.350 indígenas, mortos em massacres, remoções forçadas de territórios e por doenças infectocontagiosas, e cerca de 1.200 camponeses, mortos  ou desaparecidos por razões ideológicas e em disputas pela terra. Houve ainda 6.591 militares perseguidos, 500 mil pessoas investigadas pelos órgãos de repressão e 10 mil exilados.

A face mais brutal deste regime foi reservada aos comunistas, homens e mulheres que lutaram pela volta das liberdades democráticas e pela revolução socialista em nosso país. Praticamente todos os revolucionários presos foram cruelmente torturados. Após receberem socos e pontapés, esses militantes eram pendurados no pau de arara e submetidos a choques elétricos e afogamentos. Seus corpos eram queimados com cigarros, velas e maçaricos. Dentes e unhas eram arrancados e os olhos, vazados. Muitas mulheres foram estupradas, tiveram mamilos arrancados com alicates, ratos introduzidos em seus corpos. Os homens tinham seus testículos amassados, cabos de vassoura enfiados no ânus. Nem mesmo crianças foram poupadas pelos torturadores.

Só sádicos fascistas são capazes de defender conscientemente tais ações e reivindicar a volta da ditadura militar. Entre estes, estão o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro, a cúpula das Forças Armadas e setores ultra reacionários da burguesia, em geral ligados ao agronegócio com seu DNA escravagista.

Hoje, quando o golpe militar de 1964 está prestes a completar 59 anos, é fundamental que os trabalhadores e a juventude saibam a verdade sobre a ditadura e tenham consciência de que está em suas mãos a tarefa de exigir punição para os golpistas de ontem e de hoje e impedir que um novo golpe fascista aconteça em nosso país.

Em setembro, completam-se 50 anos dos cruéis assassinatos de Manoel Lisboa de Moura, Emmanuel Bezerra dos Santos e Manoel Aleixo, dirigentes do Partido Comunista Revolucionário (PCR) perseguidos, presos, torturados e mortos pelos agentes da ditadura militar. Assim, toda a militância do PCR está chamada a, desde já, preparar as merecidas homenagens a estes camaradas e a recrutar mais e mais militantes para as fileiras do Partido como maior forma de prosseguir o seu legado.

Comissão da Verdade

Nessa luta, uma arma importante para a promoção de memória, verdade, justiça e reparação é o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Criada em 2011, durante o Governo Dilma Rousseff (PT), após muitos anos de luta e mobilização de ex-presos políticos, de familiares dos mortos e desaparecidos, de partidos e organizações da sociedade civil, a CNV analisou milhares de documentos, ouviu 1.121 depoimentos, visitou unidades militares e locais usados para a prática de tortura e periciou centenas de atestados de óbito falsos de opositores assassinados pelo regime.

Ao longo de dois anos e sete meses de trabalho, a Comissão também descobriu cerca de 30 tipos diferentes de práticas de torturas realizadas pelos agentes da ditadura em instalações oficiais do Estado ou em centros clandestinos, como a “Casa da Morte”, em Petrópolis, e comprovou a participação direta dos cinco generais ditadores (Humberto Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo) na cadeia de comando da repressão.

O resultado de todo esse trabalho de pesquisa e investigação foi sintetizado em 29 recomendações para que não se repetissem violações cometidas no passado. Porém, transcorridos mais de oito anos desde o fim da CNV, a maior parte dessas propostas não saiu do papel.

Quem tem medo da verdade?

Entre as medidas apresentadas pela Comissão da Verdade estão a necessidade do reconhecimento oficial, por parte das Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pelos abusos ocorridos durante a ditadura, a punição dos agentes públicos responsáveis por violações de direitos humanos, a revisão da Lei de Anistia e a reparação financeira e moral às vítimas e seus familiares.

Há também outras recomendações, como a criação de um memorial em homenagem às vítimas da ditadura; pôr fim às comemorações do golpe militar de 1964; modificar o currículo das academias militares e policiais para reforçar pontos como democracia e direitos humanos, além do reforço de valores democráticos na educação nacional; assegurar dignidade dentro do sistema prisional; desmilitarizar as polícias militares e acabar com a Justiça Militar estadual; seguir a busca por corpos e preservação da memória e ampliar a abertura dos arquivos da ditadura.

A lentidão e a recusa de enfrentar os interesses contrários à implementação de todas essas medidas fortalecem o sentimento de impunidade, o negacionismo histórico e incentivam que setores reacionários da sociedade se sintam à vontade para irem às ruas pedir a volta da ditadura e tentar um novo golpe fascista, como vimos no dia 8 de janeiro.

Mas, quem tem medo da verdade e da justiça? A resposta é fácil: em primeiro lugar, as Forças Armadas, que até hoje se negam a reconhecer o golpe de 1964 e os crimes cometidos pelos governos militares. Em seguida, os grandes meios de comunicação, como Rede Globo, SBT, Folha de S. Paulo e Estadão, que colaboraram de diversas formas com a ditadura. Banqueiros e grandes empresários, que fizeram fortuna graças à política econômica dos generais e ao falso “milagre econômico”, também têm as mãos sujas de sangue. Por fim, a maioria dos ministros do STF, que se nega a reinterpretar a Lei de Anistia e a colocar os torturadores no banco dos réus, apesar de o Brasil já ter sido chamado à responsabilidade várias vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Toda vez que se fala em rever o passado e promover memória, verdade e justiça, imediatamente os defensores da exploração dos patrões sobre a classe trabalhadora tremem e dizem que se trata de “revanchismo” e de “andar olhando pro retrovisor”. Mas como construir uma sociedade verdadeiramente democrática e humana sem conhecer a própria história, sem assumir os erros do passado e aprender com eles? Será revanchismo querer que torturadores, estupradores e assassinos sejam julgados pelos crimes que cometeram e que um passado de violência, censura e repressão nunca mais aconteça?

Punição para todos os golpistas

Sem dúvida, a luta por memória, verdade, justiça e reparação às vítimas da ditadura militar não é feita olhando apenas para o passado, mas, principalmente, mirando o presente e o futuro do país.

No próximo dia 1º de abril, vamos às ruas exigir a punição dos golpistas de 1964 e que os golpistas dos dias de hoje também paguem por seus crimes. Devemos também lutar para que Bolsonaro e seus cúmplices respondam pelas mais de 700 mil mortes causadas pelo negacionismo da pandemia de Covid-19, pelo genocídio Yanomami, pela corrupção das barras de ouro do MEC e das joias sauditas, pela destruição da Amazônia e por todas as desgraças que trouxe para a vida do povo brasileiro.

Por estes mortos, nossos mortos, pedimos justiça!

Editorial publicado na edição impressa nº267 (2ª quinzena de março) do jornal A Verdade.