O ultimo dia 23 de março marcou o Encontro dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA) em Belo Horizonte, MG, para fazer o Lançamento da 2ª edição do Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-Fé dos Povos e Comunidades de Tradição. Sobre isso, frei Gilvander escreve na sua coluna aqui no Jornal A Verdade.
MINAS GERAIS – Entrará para a história como dia histórico inesquecível para as 42 Unidades Territoriais Tradicionais (UTTs) dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA) dos municípios de Betim, Igarapé, Mário Campos, São Joaquim de Bicas, Juatuba e Mateus Leme, Região 2 da Bacia do Rio Paraopeba, em Minas Gerais, e para todos os Movimentos Sociais, Organizações e Entidades de luta por direitos Humanos fundamentais, que, dia 25 de março de 2023, fizeram um maravilhoso e inspirador Encontro no Auditório da OAB-MG, que ficou lotado, a manhã inteira, em Belo Horizonte, MG, para fazer o Lançamento da 2ª edição do Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-Fé dos Povos e Comunidades de Tradição, conforme é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1989, tratado internacional do qual o Brasil é signatário desde 2004.
O evento teve como objetivo apresentar a 2ª edição do Protocolo de Consulta dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA), como um instrumento de luta de um Coletivo auto-organizado de Terreiros e Reinados, que buscam a reparação integral dos Povos e Comunidades Tradicionais que sofreram e continuam sofrendo com o crime causado pela Vale S/A, que além de sepultar vivos 272 pessoas de forma instantânea e seguir matando de mil maneiras, inclusive pela contaminação do sangue da população de Brumadinho e região da bacia do rio Paraopeba com metais pesados, comprovado em pesquisa da Fio Cruz, golpeou e impactou de forma brutal os lugares sagrados da tradicionalidade das Religiões Ancestrais de Matriz Africana para quem o rio e as matas são sagradas, pois é onde habitam os espíritos de vida, as forças e luzes divinas, e onde se fazem as oferendas e as entregas. O crime da Vale S/A foi também espiritual, pois mata e dizima os espaços sagrados destas espiritualidades que tão amorosamente convivem em relações humanas de fraternidade e preservam o meio ambiente.
Na praça diante da OAB-MG, à rua Albita, 250, em Belo Horizonte, com atabaques, alfaia, surdos e pandeiros e tambores, aconteceu um momento de celebração espiritual mística que revelou a sacralidade de todas as pessoas e do ambiente. O Reinado conduziu todos/as em um cortejo com cantoria ao som dos tambores. A bandeira do PCTRAMA ia à frente conduzindo o cortejo. Alegria e fraternidade contagiavam a todos/as que ali participavam.
Após um café da manhã servido graciosamente pela AEDAS, todos/as se dirigiram ao Auditório da OAB-MG, que se tornou o palco de um Histórico Manifesto de representantes dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA) de seis municípios da bacia do rio Paraopeba, golpeada brutalmente pelo crime/tragédia hediondo da mineradora Vale S/A com a cumplicidade do Estado Brasileiro a partir das 12h28 minutos do dia 25 de janeiro de 2019, crime que continua se reproduzindo cotidianamente, deixando um rastro de devastação e morte no meio das Comunidades e de todos os ecossistemas.
Mãe Anaíse e Babá Marcílio foram mestres de cerimônia que, após se apresentarem na sua tradição pedindo a bênção aos mais velhos/as e licença aos mais novos/as, disseram de quais terreiros faziam parte e passaram a palavra às lideranças religiosas de vários dos 42 PCTRAMA ali presentes. Houve um minuto de silêncio e reverência às 272 “joias”/trabalhadores/as sepultadas vivas dia 25 de janeiro de 2019 pela Vale S/A em crime premeditado e que continua impune. Nenhum dos assassinos presos até agora. Até quando continuará a impunidade?
Para compor a mesa, foram calorosamente convidados/as o capitão Marambaia, Babá Edvaldo, Mãe Daniele, Mãe Kellen, Ogan João Carlos Pio, Kota Kyalunde, Tatá Ndengue Natal’ode, Capitã Pedrina/Kta Seji D’Anji. Em seguida, Babá Edvaldo se apresentou e apresentou o PCTRAMA, enquanto uma Comissão de Atingidos/as pelo crime da Vale S/A, que se auto-organizou em junho de 2019, composto por Povos de Reinados nas mais diversas linhas, de terreiros de Candomblé de Nação Angola/Angola Muxikongo, Ketu e Jeje, Omolocô e Umbanda nas mais diversas linhas, presentes nos seis municípios acima referidos.
Todas as lideranças religiosas espirituais do PCTRAMA falaram da sua espiritualidade e como compreendem a natureza como sagrada, os rios e as matas. Denunciaram também as perseguições que vêm sofrendo não só com o crime da Vale S/A, mas também de movimentos religiosos cristãos (neo)pentecostais que os agridem violentamente, violando o fato de estarmos em um Estado laico com Constituição de 1988 que assegura o direito de liberdade religiosa. Benditas as pessoas, igrejas e religiões que admiram e respeitam também as religiões ancestrais de matriz africana que fomentam o amor ao próximo, a fraternidade, o respeito e o cuidado com todo o meio ambiente! Infelizes as pessoas religiosas que perseguem os povos e comunidades religiosas ancestrais de matriz africana por ignorância, preconceito ou moralismos e fundamentalismos violentadores! Ai de quem usa em vão o nome de Deus para promover perseguição e violência aos terreiros do Candomblé e da Umbanda, e os Reinados.
Foi denunciado que o crime continuado da Vale S/A segue violentando todas as tradições, nações, linhagens de tradição africana, rompendo por vezes com suas tradições, rituais e sobrevivência, impondo exílio e eliminação de lugares sagrados.
O Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-Fé, garantido pela Convenção 169 da OIT da ONU, dos 42 Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA) dos seis municípios referidos acima é o primeiro em nível nacional, fruto da luta coletiva de muitas lideranças que compõem o PCTRAMA em parceria com a AEDAS no contexto de luta por Reparação Integral pelo crime da Vale S/A. O Protocolo está respaldado pelo decreto 6.040, de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento dos Povos e Comunidades Tradicionais; a Lei 12.288, de 2010, do Estatuto da Igualdade Racial e a Lei 21.147, de 2014, que instituiu a Política estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais. O Protocolo aponta as leis e 21 regras que devem ser respeitadas pelo Estado em todas suas Instituições, Organizações e empresas que queiram apresentar projetos que de alguma forma possam impactar seus tradicionais territórios.
Foram apresentadas Carta de Reivindicação do PCTRAMA e Nota de Repúdio à Defensoria Pública do estado de Minas Gerais por ter cancelado o uso do seu auditório, onde tinham planejado fazer o Lançamento da 2ª edição do Protocolo de Consulta do PCTRAMA, já com convites distribuídos, inclusive. O cancelamento foi denunciado como racismo institucional.
O histórico evento foi finalizado com ciranda de um grupo de crianças cantando e tocando instrumentos e tambores. Saímos deste evento em estado de graça com as sagradas forças espirituais ancestrais das religiões de matriz africana que clamam com absoluta justeza para serem respeitadas na sua forma de ser, conviver e celebrar sua dimensão espiritual. Gratidão mil a todos/as dos PCTRAMA! Sigamos irmanados/as na luta coletiva por direitos e por tudo o que é justo, ético e necessário!
27/03/2023
¹Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
²Ordem dos Advogados/as do Brasil, secção Minas Gerais.
³A primeira edição foi lançada virtualmente em outubro de 2020.
⁴Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social, Assistência Técnica Independente (ATI) das Regiões 1 e 2 da bacia do rio Paraopeba.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Capitã Pedrina: “Mineração mata e trucida desde os tempos do Brasil Colônia, da escravidão”1º/3/2021
https://www.youtube.com/watch?v=IPi1hGPijdo
2 – Capitã Pedrina: “Se nós destruímos a Natureza, nós estamos destruindo a nós mesmos!” – 28/02/2021
https://www.youtube.com/watch?v=SGWFK5l4crA
3 – Capitã Pedrina: “Acordão é desgoverno, é desrespeitos aos atingidos/as. Reverenciamos a natureza.”
https://www.youtube.com/watch?v=wIIgOfbIzsg
4 – Capitã Pedrina: “A água é tudo!” – 04/21/2021
https://www.youtube.com/watch?v=Psk_2V4fGsg
5 – Capitã Pedrina, atingida: “Respeitem nossos ancestrais. O Rio e as matas são sagrados. Acordão?”.
https://www.youtube.com/watch?v=98bjeRu9aFk