O Jornal A Verdade visitou alguns cemitérios de São Paulo e conversou, em condições de anonimato, sobre as angústias de funcionários que lidam com uma das questões mais complexas da humanidade: a morte.
Redação São Paulo | São Paulo
BRASIL – Trabalhar com a morte não é tarefa fácil. Em uma cultura na qual a morte é vista com uma tristeza pouco ritualizada e elaborada, o ofício de coveiro é um ofício solitário que pesa em muitos ombros. “A morte é vista como um fracasso, ninguém quer trabalhar com fracasso”, um coveiro disse, certa vez.
A morte no sistema capitalista é entendida como um fracasso. Pessoas que não conseguiram chegar ao fim de suas vidas. Pessoas que “morreram na véspera”, “não viram sua hora chegar”, “anteciparam no relógio da morte o seu dia”. Nos cemitérios das cidades, coveiros, veloristas, administradores, jardineiros, obreiros velam, com os munícipes, seus entes queridos.
Esse velar conjunto torna o ofício penoso, torturante. “Não somos acostumados a lidar com a morte no dia a dia, mas aqui não tem jeito, temos que nos habituar”, dizem em meio a histórias que os marcaram, cenas que os impactaram e dificuldades que desenvolveram ao longo do seu percurso.
Quando o ofício é realizado de forma precária, sem reconhecimento e sem as ferramentas necessárias torna-se ainda mais difícil. O serviço funerário de São Paulo vem passando, há anos, por uma precarização que avançou a ponto de ter sido vendido pela prefeitura de São Paulo a quatro concessionárias que hoje administram os cemitérios e produzem um ambiente de trabalho humilhante a todos os trabalhadores.
As quatro concessionárias se apossaram dos coveiros que lá atuavam como terceirizados, contratados principalmente durante a pandemia e treinados pelos próprios servidores públicos. A privatização começou como a de qualquer área: sem concursos públicos desde 2012, o serviço funerário foi envelhecendo e para lidar com as aposentadorias o serviço abriu terceirizações. Iniciadas com os motoristas, a terceirização avançou para os cemitérios, sendo acompanhadas por empresas que oferecem trabalhos gerais.
Os trabalhadores também tiveram que assinar a permuta de seus cargos de concursados (coveiros, veloristas, motoristas) para o de “agentes de apoio”, dificultando planos de cargos e salário e inviabilizando um reajuste adequado ao trabalho executado. Foram perdendo autonomia e sendo desmobilizados da luta por seus direitos.
Durante a pandemia sofreram por ser a última categoria a ser entendida como essencial. Muitos contaminados por não ter material adequado encararam a fila da vacina posteriormente aos profissionais de saúde, enfrentaram munícipes enlutados por não ser permitido velar seus entes queridos devido aos protocolos da pandemia.
Com a chegada das concessionárias, a condição de trabalho piorou. O acordo da prefeitura de manter os funcionários públicos até dezembro deste ano e a justificativa de que isso seria necessário para a “passada de bastão” fez com que os funcionários públicos estejam ainda atuando nos cemitérios. Porém, sem nenhuma condição de cumprir com seu trabalho.
A internet que a administração dos cemitérios utilizava para acessar os processos foi cortada na segunda semana da chegada das concessionárias para instalação da internet das empresas, que não compartilham a rede com os funcionários. Os armários onde deixavam seus itens foi retirado, assim como mesas de copa, bebedouros e até mesmo salários cortados em prol da tomada do espaço pelas empresas.
São trabalhadores que não tem condições de trabalho e que, de repente, “saem de casa pra fazer nada”. Dizem ter que se trocar nos túmulos e que o sistema foi feito pensando puramente em dinheiro, deixando mais de 800 trabalhadores sem condições de vida. “Sair de casa pra ser humilhado”, é o que dizem em todos os cemitérios São Paulo a fora.
Alguns ainda lembram que o coveiro sempre foi uma função discriminada socialmente, vistos como bandidos malfeitores e dizem que é como se finalmente tivessem os colocado exatamente nesse lugar, jogando uma pá de cal em toda a dignidade merecida por um trabalhador.
Nesse cenário, a saúde física e mental é afetada. Pressão alta, recaídas ao uso abusivos de álcool, transtornos de ansiedade, depressão e pânico tem sido cada vez mais comuns nessa população.
Também relatam o abandono do serviço ao munícipe. A gratuidade do sepultamento para aqueles que necessitam encontra-se cada vez mais dificultada, para não dizer impossível. Concessionárias “empurram” munícipes enlutados de um lugar para outro e a média de valores dos serviços para o sepultamento subiu 300% após a terceirização (um serviço que podia ter o valor mínimo de R$700,00/ R$800,00 hoje, a depender da concessionária, sai por volta de R$3600,00).
Com todo esse desmonte que vem junto com a piora do serviço questionamos: até quando iremos sustentar a humilhação que a prefeitura de São Paulo tem colocado em nossas condições de vida?