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sábado, 4 de maio de 2024

Brasil precisa recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos

A busca pela memória e pela verdade consiste em desmascarar as farsas típicas de regimes autoritários relatadas como verdades oficiais para encobrir seus crimes. Trata-se de uma condição para que a sociedade reconheça seu passado autoritário de práticas abusivas e criminosas para que não se repitam.

Thiago Santos | Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE


BRASIL – A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada em 2011 por meio da Lei 12.528 e instalada em 16 de maio de 2012. Seu objetivo era investigar os crimes cometidos por agentes do Estado ou pessoas atuando com seu apoio durante o período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. Na lista das atrocidades cometidas estão prisões ilegais, sequestros, torturas, estupros, assassinatos e ocultação de cadáveres. O principal período investigado foi a ditadura militar fascista, implantada com o golpe de 1964.

Em 2014, a CNV confirmou 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura. Entre estas vítimas, 210 sequer puderam ser enterradas por seus entes queridos e estão desaparecidas até hoje, como os casos de Fernando Santa Cruz, Manoel Aleixo dos Santos, Amaro Félix Pereira, Ranúsia Alves Rodrigues e Helenira Resende. 

O relatório de encerramento dos trabalhos recomendou a adoção de 29 medidas pelo Estado brasileiro em resposta aos crimes cometidos. A lista compreende ações tais como o reconhecimento de culpa, punição de agentes públicos, indenizações de vítimas, modificação do currículo das academias militares e policiais e mudanças nos registros de óbito das vítimas. 

Lamentavelmente, apenas duas recomendações foram atendidas. Quanto às demais, 48% ignoradas e 21% foram parcialmente realizadas revela o relatório “Fortalecimento da Democracia: monitoramento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV)”, do Instituto Vladimir, lançado em março de 2023.

Justiça de Transição 

Quando as forças populares e democráticas de um país conseguem derrubar uma ditadura, para constituir um novo regime democrático em seu lugar é necessário adotar mecanismos para assegurar que o autoritarismo e as sistemáticas violações de direitos do antigo sistema sejam sepultadas.

Esse conjunto de mecanismos é chamado de Justiça de Transição. Sem a implantação deles não é possível a consolidação completa do novo regime democrático. O direito à memória, à verdade, à justiça, à reparação e à reforma institucional são as bases para se realizar a Justiça de Transição.

A busca pela memória e pela verdade consiste em desmascarar as farsas típicas de regimes autoritários relatadas como verdades oficiais para encobrir seus crimes. Trata-se de uma condição para que a sociedade reconheça seu passado autoritário de práticas abusivas e criminosas para que não se repitam. Baseado nessa premissa, por exemplo, é que o relatório da CNV recomendou a alteração nos registros de óbito das vítimas. 

Como parte dos crimes da ditadura, pessoas que morreram em decorrência de violência de agentes do Estados têm descrições totalmente falsas nos seus assentamentos de óbito.

Manoel Lisboa, por exemplo, foi sequestrado, preso, torturado e assassinado em Recife, mas teve seu corpo levado para São Paulo a fim de compor a versão oficial dada pelos órgãos de segurança de que ele fora morto em um tiroteio com a polícia.

Permaneceu na condição de desaparecido por 30 anos, quando finalmente pôde ser sepultado por familiares e camaradas de partido graças a um árduo trabalho de buscas promovido em parceria com a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (criada por força da Lei nº 9.140/1995).

Comissão foi extinta por Bolsonaro

Para piorar, no dia 30 de dezembro de 2022, ou seja, no apagar das luzes do governo do fascista Bolsonaro, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos foi extinta e, até agora, ainda não foi recriada pelo novo governo, apesar das pressões dos familiares. O movimento segue firme pressionando pela reativação, tendo em vista que ainda há desaparecidos a serem localizados e um imenso trabalho de reparação histórica e recuperação da verdade.

Como disse Amelinha Teles, integrante da Comissão: “O povo do Brasil precisa conhecer a sua história. Muitos torturadores daqui foram matar na região do Araguaia, depois também nos países do Cone Sul: Uruguai, Argentina, Chile”.

Mobilização da sociedade

A memória e a verdade são as bases para que os outros componentes da Justiça de Transição sejam aplicados. Esclarecer os fatos permite que os culpados sejam punidos. Reconstituir a memória é essencial para que haja a efetiva reparação do dano causado às vítimas. Além disso, recompor a verdade fornece os elementos necessários para que a sociedade compreenda a necessidade de as instituições serem reformadas.

O direito à Justiça, por sua vez, além do direito individual das vítimas de que seus algozes sejam punidos pelos crimes que cometeram contra elas mesmas ou contra seus familiares e entes queridos, engloba ainda o direito coletivo de toda a sociedade de que os criminosos não permanecem impunes. 

A punição aos culpados é um dos aspectos essenciais para a efetivação do direito à Justiça, que compreende ainda a reparação material e psicológica.

Mas, na contramão da Justiça de Transição, o STF decidiu (ADPF 153) que a Lei de Anistia, de 1979, deveria ser estendida aos agentes do Estado que cometeram crimes!

No terreno da reparação, além das ajudas financeiras ou indenizações compensatórias pagas pelo Estado, há ainda a reparação simbólica, com a construção de monumentos, memoriais e a celebração de datas. Essa reparação compreende ainda a reformulação de nomes de ruas e tombamento de locais que serviram como centros de tortura e repressão política. 

Outro ponto importante é que o Estado, além de reconhecer seu passado autoritário e violento, tem o dever de extinguir práticas violentas, modificando as instituições responsáveis por isso. Trata-se, por exemplo de crimes de violência policial e abuso de autoridade praticados em abordagens policiais e nas instituições carcerárias.

A CNV recomendou reestruturar as polícias e revisar a formação das Forças Armadas e Polícias Militares, além de modificar a atuação dos órgãos de perícia. Orientou a adoção de mecanismos de prevenção e combate à tortura e o fortalecimento da Defensoria Pública.

Afinal, é na impunidade histórica dos crimes da ditadura que se encontram as bases de repetidas cenas, como a da morte de um garoto de apenas 13 anos, baleado durante uma operação da Polícia Militar do Rio de Janeiro na Cidade de Deus, na Zona Oeste da capital fluminense. Ou o caso da Operação Escudo, na Baixada Santista, litoral de São Paulo, que deixou 16 mortos, sendo 12 no Guarujá e quatro em Santos, ambos os casos ocorridos nas últimas semanas. Em 2019, houve o assassinato do músico Evaldo Rosa dos Santos (fuzilado com mais de 80 disparos) e do catador de recicláveis Luciano Macedo (baleado ao tentar ajudar a família que estava no veículo). Ambos foram mortos no Rio de Janeiro numa barreira promovida pelo Exército.

Ora, se a democracia brasileira está ameaçada, como ficou claro com as manifestações fascistas pró-ditadura, preparadas nos acampamentos em frente aos quarteis (com a conivência dos Comandos Militares) e que resultaram nos atos antidemocráticos do dia 08 de janeiro contra o resultado das eleições que deram a vitória ao presidente Lula (PT), ela precisa, portanto, ser reforçada e consolidada, acabando com o que ainda resta da ditadura militar. Por tudo isso, o país precisa implantar a Justiça de Transição.

Matéria publicada na edição nº 277 do Jornal A Verdade.

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