“O povo deve defender-se. O povo não deve se deixar arrasar nem tampouco humilhar-se.” Salvador Allende, em seu último discurso
Clarice Oyarce* | Belo Horizonte
HISTÓRIA – O dia 11 de setembro marca a história dos povos na América Latina por ser a data do golpe militar no Chile, que agora completa 50 anos, instaurando uma das ditaduras mais sanguinárias da região. De 1973 a 1990, a junta militar liderada pelo general Augusto Pinochet governou o Chile com mão de ferro, assassinando, torturando, perseguindo e exilando milhares de pessoas, com o aval e o apoio dos Estados Unidos e de empresários poderosos, contando com o silêncio cúmplice da imprensa.
Os informes Rettig e Valech, que trazem dados levantados por comissões da verdade e reconciliação para vítimas de prisão política e tortura, estimam que 31.686 pessoas foram afetadas diretamente pela ditadura. Dessas, 3.227 casos são de pessoas assassinadas ou desaparecidas como política de Estado. Aproximadamente 20 mil pessoas foram exiladas, uma cifra significativa em relação aos números absolutos da população chilena. Tudo isso em nome de tornar o Chile o laboratório para o modelo neoliberal econômico, posteriormente expandido para outros países dependentes.
No dia 11 de setembro de 1973, os chilenos acordaram com uma sublevação da Marinha. O presidente Salvador Allende, socialista eleito democraticamente pela coalizão Unidad Popular (UP), logo rumou para o Palácio de La Moneda, sede do poder Executivo, buscando negociar a retirada de civis e coordenando a resistência.
Desde que foi eleito, em 1970, seu governo foi alvo do fascismo em forma de milícias de extrema-direita, greves de caminhoneiros, desabastecimentos e de propostas de lei barradas pelo Congresso. Apesar disso, o período da UP foi marcado por grandes conquistas da classe trabalhadora, como a nacionalização do cobre, em 1971, a abertura de cursos técnicos e uma efervescência cultural liderada pelo cantor e militante comunista Victor Jara.
No dia do golpe, Allende tentou se comunicar com a população por várias rádios, bombardeadas em seguida. Tanques seguiam rumo ao palácio presidencial. Por volta das 10h30, seu último discurso foi emitido pela Rádio Magallanes. Nele, Allende denunciou os militares golpistas, a intervenção estadunidense e afirmou que não renunciaria. Pagaria com sua vida a lealdade do povo. Após intenso bombardeio aéreo, o Palácio de La Moneda foi invadido por tropas golpistas e o presidente morreu. A versão oficial foi que ele tirou sua própria vida para não cair nas mãos dos militares, mas ainda há questionamentos no país de que ele foi executado.
Foram 17 anos de repressão brutal, que marcaram mais de uma geração. Durante o regime militar, militantes comunistas da resistência armada e da institucionalidade foram sumariamente executados. Mas a resistência sempre perseverou, na figura dos familiares dos desaparecidos e mortos, liderada pelas mulheres, nas lutas dos estudantes, nas denúncias feitas pelos exilados.
Com a derrota de Pinochet no plebiscito de 1988, que previa eleições em 1990, começa o processo de transição democrática. Uma transição incompleta, que não destituiu Pinochet do cargo de comandante do Exército nem de senador. O ditador faleceu em 2006, sem ter sido condenado por seus crimes na esfera judicial chilena.
Outra marca desse período é o neoliberalismo, implementado pelos militares e legitimado na Constituição de 1980, redigida pelos fascistas e aprovada em um plebiscito fraudulento. Ainda é, até hoje, a Constituição que rege o Chile, mantendo o país como um dos mais desiguais da América Latina e submisso aos Estados Unidos.
Com as agitações iniciadas em 2019, esperava-se um processo que culminasse em uma nova Constituição para enterrar o neoliberalismo. No entanto, a proposta feita por uma assembleia eleita pelo povo foi rechaçada em uma campanha liderada por grandes empresas e grupos de comunicação, valendo-se de fake news disparadas em massa por telefone e redes digitais.
Aos 50 anos do golpe militar no Chile, fica a memória de Salvador Allende, Victor Jara e outros milhares de trabalhadoras e trabalhadores que lutaram contra o fascismo e o neoliberalismo. Essa semente não foi esmagada e nos traz a memória de que o neoliberalismo é a herança maldita das ditaduras na América Latina.
Victor Jara: o violão dos trabalhadores e o canto dos andaimes para alcançar as estrelas
No último dia 28 de agosto, após 50 anos, os militares responsáveis pelo fuzilamento do cantor chileno Victor Jara foram condenados pela Justiça chilena. Os assassinos receberam sentenças de 8 a 25 anos de prisão. A condenação faz parte de um expediente para punição de colaboradores do regime até então impunes.
Ao receber a condenação, o general da reserva Hernán Chacón Soto, de 86 anos, suicidou-se, exemplificando a covardia dos militares latino-americanos em não cumprir sentenças de reparação. Chacón, em 1973, era um dos interrogadores do Estádio Chile, local onde foram levados milhares de prisioneiros.
Victor Jara é um dos principais nomes da história da classe trabalhadora latino-americana. De origem campesina e militante do Partido Comunista, tinha consciência do papel dos artistas para a revolução e também da importância de ter artistas oriundos da classe trabalhadora, como ele próprio.
Com uma trajetória marcada pela vivência entre as periferias de Chillán e Santiago, trabalhou com teatro, dança e música, desenvolveu uma obra profundamente marcada pelo resgate do folclore, seguindo o trabalho de Violeta Parra, artista responsável por catalogar mais de mil tradições e cancioneiros folclóricos por todo o Chile. Violeta também foi uma das incentivadoras da carreira musical de Victor Jara, sendo sua tenda cultural o palco de suas primeiras apresentações. Jara se casou em 1960 com a bailarina inglesa Joan Turner, bailarina da primeira companhia de balé do Chile, e mais tarde uma das pessoas à frente de iniciativas de popularização da dança e da criação do Balé Popular.
O movimento Canção Nova Chilena surge em 1969, com a mobilização da classe artística para a eleição da Unidad Popular. A partir de então, um movimento de vários artistas e grupos musicais se empenhou em resgatar ritmos e instrumentos dos povos originários, em trazer em suas letras vivências da classe trabalhadora, suas lutas e bandeira do socialismo. Victor Jara é o idealizador e principal nome do movimento, sendo responsável por compor o hino da coalizão.
Durante esse período, também foi professor de teatro em uma universidade técnica criada pelo governo de Allende. Alternava esse ofício com o de cantor e compositor propagandista, fazendo turnês por todo o Chile, sendo aclamado pelos trabalhadores, além de tocar em vários países e divulgar, assim, o programa para o socialismo que passava por uma experiência de poder em seu país.
No dia do golpe militar, Victor Jara foi à universidade auxiliar seus companheiros. Todos foram detidos e levados ao Estádio Chile. Lá, foi reconhecido pelos militares, que o submeteram a bárbaras sessões de tortura, ao ponto de quebrarem suas mãos. No dia 16 de setembro, foi fuzilado com 44 tiros. Seu corpo teria sido jogado em vala comum se não tivesse sido reconhecido por um funcionário do necrotério, militante do Partido Comunista, que avisou a sua viúva. Com o reconhecimento do corpo, o cantor foi sepultado e logo sua família teve que partir ao exílio.
Antes de sua morte, escreveu um poema no estádio, que confiou a uma pessoa que tinha mais chances de sobreviver. Esse texto foi recebido no exílio por Joan Jara e amplamente publicado. Diz um trecho:
Somos cinco mil
Nesta pequena parte da cidade
Somos cinco mil
Quantos somos em total nas cidades e em todo o país?
Somos aqui dez mil mãos que semeiam e fazem as fábricas andarem.
Quanta humanidade com frio, fome, pânico, dor, pressão moral e loucura!
Seis dos nossos se perderam no espaço das estrelas.
Um morto, golpeado como nunca imaginei que se podia golpear um ser humano.
Os outros quatro quiseram livrar-se de todos os temores, um pulando no vazio, outro golpeando a cabeça contra um muro,
mas todos com o olhar fixo da morte.
Que espanto causa o olhar do fascismo!
Levam a cabo seus planos com precisão de artista sem importar-se com nada.
O sangue para eles é medalha
A matança é ato de heroísmo.
Em memória das vítimas da ditadura militar de Pinochet e de todas as gerações afetadas pela sua política sanguinária. Viva Chile, viva o povo, vivam os trabalhadores!
*Clarice Oyarce, militante do Movimento de Mulheres Olga Benario em Minas Gerais, nascida e criada no Chile.
Matéria publicada na edição nº 279 do Jornal A Verdade.