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segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Jamile Abdel Latif: “Palestinos não desistem! Palestinos resistem!”

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Desde o início de outubro, o Estado de Israel ataca milhões de palestinos na Faixa de Gaza. O que a mídia burguesa não conta é que, há oito décadas, esse mesmo Estado (hoje governado pelo terrorista Benjamin Netanyahu) é apoiado pelo Governo dos EUA e massacra o povo palestino, ceifando vidas e sonhos, saqueando e destruindo o território, assassinando por fome e por bombas. Para falar sobre a dor e a resistência palestina, o jornal A Verdade entrevistou Jamile Abdel Latif, advogada, representante do Comitê de Solidariedade ao Povo Palestino de Campinas (SP).

Larissa Mayumi e Marta Fontenele | Campinas (SP)


A Verdade – Obrigada por aceitar nossa entrevista nesse contexto de luto, em que já são mais de cinco mil crianças e quase três mil mulheres palestinas assassinadas, além de mais sete mil pessoas feridas.

Jamile Abdel Latif – Acreditamos que há mais pessoas mortas. Existe uma lista com o nome e documento da pessoa, a hora que essa pessoa é levada para um hospital, onde é feito um atestado de óbito, onde é levado o corpo ou um pedaço de corpo que sugira que a pessoa foi morta, porque há corpos explodidos por bombas. As pessoas estão soterradas e escrevem seus nomes no próprio corpo. Numa explosão, se um pedaço de corpo for encontrado, e não a pessoa, é óbvio que ela faleceu. Mas a gente sabe que existem ainda muitas pessoas soterradas e, como está tudo caótico, as pessoas que não foram para o hospital é porque estão soterradas. Mas, oficialmente, elas não são dadas como mortas.

Diante desse cenário, existe o direito ao luto?

Os psiquiatras e psicólogos dizem que, quando você perde a sua casa, você enfrenta uma sensação de luto. Quando você perde um membro do seu corpo (um olho, um braço, uma perna), você tem um permanente luto. Esse luto você nunca vai recuperar. O que nós não estamos tendo é, de fato, sequer o direito a um luto digno. O que eu quero dizer com isso: quando você consegue enterrar um filho, um marido, um pai, um irmão, com muita tristeza, você ainda vivencia o luto. Como é quando você não sabe se morreu? Dá pra imaginar o número de pessoas soterradas? Basta ver as imagens: a CNN mostra bombardeio, ela não mostra o sofrimento das pessoas, ela não mostra as crianças chegando ao hospital chorando, não mostra a cirurgia sendo realizada ali no chão porque não tem mais lugar, com pessoas sujas e tem que fazer a cirurgia porque se não vai gangrenar. É uma tentativa para a pessoa não morrer e é sem anestesia, porque Israel não permite a entrada de analgésicos.

Enterrar é uma necessidade do ser humano. A pior coisa é você não conseguir enterrar uma pessoa amada. E imagina para uma mãe o último abraço de uma criança que foi martirizada. Quando você acha que não conseguiu proteger seu filho, quando você vê um filho todo estropiado, você enterra uma parte dele, ou pior, quando você nem sabe como morreu e se está morto. Nem, de fato, o direito ao luto nós temos. Nós não conseguimos enterrar nossos mortos sem que um bombardeio esteja acontecendo.

E como têm vivido e resistido aqueles que sobreviveram?

Estão destruídos. Eles se tornam mortos-vivos. Quando alguém perde a casa, perde sua dignidade também. Perde tudo o que trabalhou na vida, sua proteção, a proteção aos seus filhos. E nós, mulheres, somos muito mais apegadas à casa do que o homem, porque a gente trabalha em casa. Pessoas que enlouquecem, pessoas que perdem a sanidade mental. Perder seus filhos, não poder cuidar dos seus filhos, é uma dor pior ainda que essa de não saber se estão vivos!

Eu penso na pessoa vítima de um edifício que foi bombardeado por Israel. Ela não sabe se os seus entes queridos estão soterrados vivos, sofrendo de fome. Imaginar o peso de tudo isso em cima de você, fome, sem se mexer, sem nada. Ou se morreram e talvez nunca ache o corpo! Imagina cada bombardeio, você abraçar seus filhos, que estão sujos, sem tomar banho há um mês, sem comer comida quente, sem tomar água, tomando água de mar misturada com açúcar, chorando, sem dormir. Quem é que dorme com medo, com bombardeio?

Gaza está sem esgoto. É sexta vez, que Israel bombardeia o esgoto e o sistema elétrico de Gaza desde 2005. Essas pessoas já não tinham geladeira, porque, desde então, Israel nunca permitiu que as peças entrassem para consertar. As pessoas têm, no máximo, quatro horas de energia elétrica em suas casas. Os hospitais têm geradores, mas as casas, não. A vida é pré-histórica, porque, como disse Israel em 2006: “Vamos fazer os palestinos voltarem à Idade da Pedra”. E foi o que fizeram.

Pode-se comparar o que está acontecendo hoje na Faixa de Gaza com o que aconteceu em 1948? Qual o prejuízo para as mulheres palestinas?

Primeiramente, danos econômicos. Essas pessoas em Gaza perderam tudo o que tinham, absolutamente tudo: casa, carro, tudo mais. Então essas mulheres convivem com doenças, e pessoas adoecem por falta de tratamento de esgoto. Hoje, elas estão há mais de um mês sem água. Se você observar as fotos, tá todo mundo sujo, porque as pessoas estão sem tomar banho. Elas estão bebendo água do mar, colocando açúcar, porque não tem água potável. Cerca de 60% das mulheres grávidas têm subnutrição, que se repete em toda a população. Tudo isso traz na gente uma perda moral, um enfraquecimento não apenas físico, mas também moral. Quase metade das crianças de Gaza tem pensamentos suicidas, porque elas não têm esperança. Jesus dizia que “Onde tem esperança, tem tudo. Onde não tem, não tem mais nada”. Eles estão vivendo hoje em locais, como abrigos da ONU, onde Israel bombardeia, que tem 600 pessoas e apenas um banheiro. Imagina essas mães quando há bombardeios, a cada 10 minutos agora. Os tanques entrando, bombas de fósforo, uma fumaça cinza.

Dias antes do atual conflito, foi realizado um encontro de mulheres palestinas e israelenses, em Jerusalém, reivindicando o fim do conflito de décadas. Como os movimentos de mulheres têm enfrentado essa situação?

Nós temos vários movimentos sociais de palestinas, união de mulheres e marcha de mulheres. E as pessoas acham que a mulher palestina briga contra a opressão machista e tudo mais. Não! A gente nem espaço tem pra isso. Primeiro a gente quer viver. Pra gente essa pauta é pequena. Primeiro, a gente quer viver, a gente quer que nossos filhos tenham escolas. Israel fecha as escolas da Cisjordânia por dois anos e meio. Nós temos problema de subnutrição, Israel controla os alimentos que podem entrar em Gaza, de propósito, para nos manter subnutridos. Israel não quer que as crianças palestinas tenham felicidade. Israel proíbe a entrada de chocolate e massas. A nossa briga hoje é pela sobrevivência e, de fato, as mulheres estão unidas nessa briga com os seus parceiros, com seus irmãos, com seus maridos, com seus pais. Queremos vida, liberdade, dignidade, a gente quer poder trabalhar, a gente quer que nossos filhos possam ir para a escola estudar, a gente quer ter direito de não destruírem as nossas casas. 

Os palestinos têm demonstrado toda a sua resistência. Como você e tantos outros têm resistido?

É saber que você está com a justiça, que você não roubou a terra de ninguém e nós somos um povo muito religioso. Os palestinos amam a vida, amamos a terra. A maior parte dos palestinos é de camponeses. Então temos um apego muito grande a nossa terra. Nós realmente temos raízes milenares. E a Palestina é linda! Somos muito conectados aos nossos ancestrais. Quando começou todo esse genocídio, no início, eu pensei: “Realmente, queria morrer. Deus, me leva. Não aguento mais!”. E aí senti meu falecido pai falando: “Não, levanta! Leva nosso grito de justiça, nosso grito de ânimo para nossos resistentes! Palestinos não desistem! Palestinos resistem! Nós vamos transformar!”.

Entrevista publicada na edição nº 283 do Jornal A Verdade.

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