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sexta-feira, 3 de maio de 2024

Viva os 130 anos de Canudos!

Os registros dos primeiros ocupantes de terras da fazenda Belo Monte, depois conhecida como Arraial de Canudos, são de 1893. Nos grotões sertanejos do extremo Norte da Bahia, próximo a Sergipe, cercanias do rio Vaza-Barris, funda-se a comunidade que chegou a abrigar mais 20 mil pessoas, população superior a várias cidades e capitais do Brasil à época. Os fundadores foram pobres do campo, desterrados, sitiantes, os famélicos, “flagelados”, “fanáticos” das manchetes dos jornais burgueses. Comunidade arregimentada na adesão voluntária ao projeto social do místico religioso Antônio Conselheiro, que arrastava seguidores nas peregrinações e pregações pelo Sertão. 

Natanael Sarmento | Recife


LUTAS DO POVO BRASILEIRO –  A “questão da Terra” é antiga e contemporânea no Brasil. Das Capitanias Hereditárias aos dias correntes, cinco séculos de latifúndios concentrados e exploração de mão-de-obra escrava ou trabalhadores em condições análogas à escravidão. 

Hoje, 1% dos estabelecimentos rurais concentra 47% das terras agrícolas. Mesma essência da exploração de riquezas: exaurimento do solo em extrações minerais, devastação das florestas, usurpação das terras indígenas e quilombolas. Difere do início da colonização apenas pelos métodos e novas técnicas. Subsistem crimes no campo contra posseiros, indígenas e quilombolas. Canudos é uma história passada, mas também “contemporânea” das lutas presentes de camponeses pelo direito à terra e à vida.   

Contexto histórico  

No final do século 19, o capitalismo conhecia a primeira depressão econômica mundial. A economia agrária brasileira, dependente do mercado externo importador de nossos produtos primários: açúcar, café, algodão, couro, minérios, outros, é duramente afetada. A crise é agravada pela seca que assumia feições dramáticas no Nordeste brasileiro dos Sertões de Deus e do Diabo da Terra do Sol.

A abolição da escravidão contraria oligarquias da lógica patrimonial senhorial da Casa Grande e Senzala. Militares jovens e antigos se encrespam em disputas por salários e títulos. Jornais açulam disputas políticas entre liberais e conservadores. Republicanos, clubinho de dúzia de intelectuais. Com 49 anos de reinado, Pedro II deixava as intrigas da governança correrem soltas. Monarquia cai no golpe militar de 15 de novembro de 1889, sem opor resistência.  Apesar da ruptura, mudanças mínimas no rearranjo do poder. Parte de cúpula militar não deixa passar o cavalo selado do poder, monta e jamais se afasta completamente. 

Sob Monarquia ou República, as governanças são exercidas pelos ricos, ambas verdadeiras plutocracias. A política estatal é condomínio de ricos latifundiários, comerciantes, industriais, financistas, executada pelos representantes, filhos, apadrinhados, bacharéis, militares, clericais, os homens brancos e “doutores”. A política institucional é pacto de elites. Para os pobres das cidades e dos campos, sobretudo dos Sertões, o Estado significava o poder da polícia e do cobrador dos impostos.

Fundação e fundadores

Os registros dos primeiros ocupantes de terras da fazenda Belo Monte, depois conhecida como Arraial de Canudos, são de 1893. Nos grotões sertanejos do extremo Norte da Bahia, próximo a Sergipe, cercanias do rio Vaza-Barris, funda-se a comunidade que chegou a abrigar mais 20 mil pessoas, população superior a várias cidades e capitais do Brasil à época. Os fundadores foram pobres do campo, desterrados, sitiantes, os famélicos, “flagelados”, “fanáticos” das manchetes dos jornais burgueses. Comunidade arregimentada na adesão voluntária ao projeto social do místico religioso Antônio Conselheiro, que arrastava seguidores nas peregrinações e pregações pelo Sertão. 

 Objetivamente, a comunidade Canudos expressava o estágio da luta de classes dos camponeses, sob o misticismo religioso popular, em contraponto ao Estado burguês das oligarquias e do clero católico oficial.

O que foi?

Canudos foi uma experiência histórica de comunidade camponesa pobre, emancipada da exploração latifundiária, livre da opressão Estatal. Sociedade comunal com trabalho social sem patronato, sem perseguição de capitães-do-mato, baseada na divisão coletiva do trabalho. Produzia além da subsistência e comercializava excedentes em cidades da região. Sociedade livre da falsa moral da castidade e da indissolubilidade conjugal, pregada (e não praticada) pelos padres católicos, vários deles com filhos e outras práticas não tão castas.  Havia liberdade sexual voluntária: casavam, descasavam, acasalavam os interessados. Livre de pagamentos para uso e fruição da terra, das casas, sem aluguéis ou impostos. Também livres da repressão policial, sem polícia regular e sem cadeias. Proibia-se o uso de bebidas alcóolicas. Os casos raros de infratores, contraventores e criminosos eram banidos do Arraial. Utopia? Nada disso. A comunidade existiu, resistiu e foi destruída pelos donos do poder do Brasil.

A ideologia e o fanatismo

A religiosidade da ideologia da burguesia usa dois pesos e duas medidas: os seguidores do bispo, da Igreja Católica, das promessas de vida eterna no Céu, formam o rebanho do Bom Pastor. E serão todos recompensados, no Juízo Final, os bons cristãos! Os seguidores do Conselheiro da pregação do Céu na Terra são heréticos, fanáticos, desviados do caminho da Salvação. E pagarão pelos pecados. 

 Na doutrina mística do líder espiritual de Canudos, a salvação celestial se alcançava na Terra, na vitória da luta de Deus contra o Demônio, que a seca, a fome desse fim de mundo não é obra de Deus, é do Cão.

A Igreja Católica perdia milhares de fiéis para o “Fanático”.  Dos palácios episcopais às paróquias interioranas, os seguidores do Conselheiro são tratados como fanáticos, idólatras, profanos, etc. O catolicismo oficial doutrinava a obediência à ordem vigente e prometia o Céu na vida eterna após a morte. O “Fanático” mesclava o cristianismo primitivo messiânico de Nova Era de paz e prosperidade na Terra.

Tal religiosidade mística, traço cultural típico dos sertanejos, expressava uma “forma de consciência” histórica, isto é, de contradições e de lutas de classes. O Conselheiro arauto da “Nova Era”, mensageiro de Deus na declaração de guerra contra o Diabo, foi o “intelectual organizador da cultura” das massas camponesas para si. A identificação das privações, secas, fome e todas as maldades e misérias do mundo atribuídas ao Satanás não gerou imobilismo, ao contrário, produziu insurgência civil. Clamou, e foi atendido, pelo povo sofrido, para buscar a salvação do Senhor, plantar e colher, orar e derrotar o Demônio aqui na Terra.

Guerra épica

Canudos ameaçava os poderosos. Subtraía e escasseava mão-de-obra explorada pelos ricos fazendeiros da região e os fiéis das paróquias católicas oficiais. Na visão da elite, era inaceitável pobres definirem por conta própria trabalho, religião, sociedade, os próprios destinos, livres de patrões, da Igreja e do Estado. Exemplo perigoso demais, que não podia contaminar, não podia prosperar e devia ser destruído. 

Canudos enfrentou cinco ataques do Exército brasileiro. Repeliram quatro, impondo humilhantes derrotas ao “glorioso Exército de Caxias”, até o fim, sem rendição.

Nessa guerra épica de Davi contra Golias, absolutamente desproporcional em termos militares, números de homens, quantidade e qualidade das armas, destaca-se a valentia dos sertanejos, a capacidade militar dos comandantes militares de superar e vencer oficias treinados em academias que demonstraram prepotência, despreparo e crueldade no genocídio de Canudos para servir à burguesia.

Para invadir e destruir Canudos, a última campanha utilizou 20 mil soldados e quatro generais sob observação local do ministro da Guerra. Marcharam 20 batalhões com tropas de dez estados. O governo dissipou milhões, que dariam para construir casas e fazer a reforma agrária com direito à terra, implementos agrícolas, treinamento e infraestrutura para a comercialização dos produtos gerados, garantir vida digna para esses brasileiros pobres que o Estado dos ricos extermina.

Nessa “heroica façanha militar” da “Guerra do Fim do Mundo”, como a denomina Mário Vargas Llosa, cinco mil soldados do Exército brasileiro perderam a vida. Os milhares de camponeses das covas comuns não foram contabilizados para evitar registros.   

Em 1897, o Arraial foi invadido, incendiado e devastado. Sobraram escombros dos casebres de barro e taipa e da igreja. Um cemitério a céu aberto, cadáveres insepultos aos montes, pelas ruas e casas. O Céu na Terra do Sol dos pobres não pôde mais resistir aos canhões e metralhadoras modernas. 

Dos 20 mil habitantes, poucos sobreviveram. Os homens mortos, os feridos, são executados segundo a ordem de não fizer prisioneiros. As mulheres e as crianças são sequestradas como esbulhos de guerra e distribuídos entre os saqueadores.

Lições da história

O legado mais importante é a capacidade de lutar e resistir do nosso povo, pelo direito à sua emancipação, trabalho e terra, decidir a sua história. Justamente por isso Canudos foi exterminado. E a sua memória é tão manipulada e se tenta apagar. Na estratégia da dominação, há o lugar dos monumentos para lembrar os “heróis” e o do “esquecimento” ou sepultamento dos inimigos de classe. Tratado pelos historiadores tradicionais como fanatismo típico do Brasil arcaico e do passado. Como episódio “triste” numa região de pobres miseráveis. A localidade de Canudos, fisicamente banida pela inundação de águas represadas. Simbolicamente, desaparece, afogada. O sangue derramado é lavado e encoberto pelas águas. Só que não.  

Canudos, a mais expressiva luta camponesa contra a opressão da História do Brasil. Os seus combatentes são os verdadeiros heróis do povo. Vivem e viverão, na eterna memória dos que lutam contra as injustiças sociais, defendem a reforma agrária, lutam pela emancipação dos trabalhadores dos campos e das cidades e pelo socialismo. 

E viva a luta do povo brasileiro!

Natanael Sarmento é doutor em História e membro do Diretório Nacional da UP

Matéria publicada na edição nº284 do Jornal A Verdade

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